quarta-feira, 12 de outubro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 23

Lisboa dos sete calinas

António Cagica Rapaz

A noite caíra, sem qualquer empurrão suspeito, na grande área de Lisboa, com o Tejo a espreguiçar-se até Cascais, os carros no vaivém da Ponte e os sete calinas a prepararem-se para ir à vida. O mais novo acordara os outros e todos tomaram um banho sumário, havendo a registar que só um não utilizou o sabonete Lix. Seis de cada sete calinas usam Lix, o sabonete das estrelas da noite lisboeta.

Os calinas são primos dos califas e sete como os pecados capitais (normal, para quem vive e actua em Lisboa), sete como os dias da semana, as partidas do Mundo e os mercenários da coboiada.

O Ildefonso Refractário afivelou o cinto de crocodilo manhoso, ajustou a camisa às riscas (onde se destacava uma gravata de seda com flores) e vestiu o casaco aos quadrados, lenço vermelho na algibeira e inglema do Benfica na lapela. Antes de sair, deitou uma vista de olhos ao jornal que a vizinha Manuela enfiara por baixo da porta. É Verão, o defeso assentou arraiais, é tempo de ler anúncios.

O dedo indicador deteve-se num recanto onde aparecia uma inserção designada Lista Desclassificada que mostrava os complementos de guarda. Lá figuravam chuva, fatos, fios, fiscal, florestal, freio, jóias, livros, marinha, napos, redes e republicana. Sublinhou dois e virou a página…

Enquanto o Alfredo Candongueiro aparava a ponta dos bigodes e o Raul Canhoto cuspia na biqueira dos sapatos de verniz, o Ildefonso detinha-se num anúncio que rezava assim: “Empresário jugoslavo de férias no Algarve tem ainda disponíveis quatro elementos em excelente estado de conservação – VIGARICH, armador de jogo, MATOBICH, ponta de lança, ATAVIC, guarda-redes e KAXOTELICH, ponta esquerda. Enviar propostas a TIANIC – Loulé”.

Como o primo da cunhada do seu vizinho do quarto dianteiro é adjunto do assessor do treinador do Lisboa A7, o Afonso Maurício começou logo a calcular percentagens com uma máquina gamada num supermercado “Pão com azeitonas”.

Os calinas tinham por hábito descer a escada à hora da novela brasileira, quando o silêncio reina no prédio e as ruas ficam desertas. Mas nessa noite já o genérico estava no ar e o Ildefonso nada de dar ordem de saída. O Chico Apolo desligou o receptor e dirigia-se para a porta quando o Ildefonso o deteve, num gesto brusco. O grupo reuniu-se à volta dele para soletrar a seguinte oferta: “ AOS CLUBES APOSTADOS NA EUROPA – Não sou brasileiro, nem jugoslavo, mas português; não tenho joanetes, nem bicos de papagaio; não bebo, não fumo, não frequento lupanares, bares, cafés, pubs, drugstores, sociedades de recreio, filarmónicas, filantrópicas, casinos nem outros antros de perdição. Deito-me antes das 22 horas, não tenho bigode nem cabelo encaracolado à força, não exibo camisas berrantes, não acelero em carros espalhafatosos, não sustento mamonas e, como não bebo, é-me fácil dar o litro. Não me drogo e chuto com os dois pés. Sou dinheiro em caixa, se não como goleador, pelo menos como peça de museu. Respostas ao desapartado 10 A”.

O Diogo Bombeiro um dia largou uma andorinha na loja da Maria Antónia que a obrigou a perfumar a casa com alecrim. De outra vez, no Parque, levantou quatro filas. Às tantas, começou a queixar-se da barriga e já estava a causar pânico quando o Ildefonso deu um salto na cadeira. Tinha ali a melhor do ano. O Rafael Charuto arregalou o olho guloso e leu com crescente entusiasmo a oferta invulgar: “Tenho os dedos finos, longos e ágeis, as unhas arredondadas, cuidadas, envernizadas. Deliro com os contactos humanos, anseio pelo ambiente viril dos balneários onde evoluem na sua nudez máscula atletas de perfil grego; não receio os apertos nas bichas nem no metropolitano em horas de muita ponta; não refilo quando me beliscam e garanto que suportaria com donaire as cargas de avançados machões; tenho braços esbeltos e sólidos, nunca apanhei raios infravermelhos nem ondas curtas no rádio, apenas levei no cúbito; não uso brinco mas brinco com usos obsoletos e costumes aburguesados; adoro os direitos dos homens, gosto deles livres, directos, atrevidos, desinibidos e assumidos; quando me sinto numa boa, agarro com as duas mãos. Se acreditam que posso dar um bom guarda-redes, escrevam ao Zázá Doçura – Beco dos Requebros Meigos – Lisboa, boa, boa”.

O Ildefonso rapou da esferográfica e sublinhou repetidamente. Com outro gesto senhorial reuniu o grupo. Em silêncio trocaram beijos nas faces bem barbeadas, apertaram-se nos braços vigorosos e, um a um, saíram escada abaixo, rua fora, noite adentro. Começava a vida na estranha Lisboa dos sete calinas…

Preito ao bom malandro do Mário Zambujal…

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 72

Raízes

António Cagica Rapaz

- Era bonito, não era?

- Como diz, é comigo?

- Sim... queira desculpar, mas aqui, junto a este muro, de repente, senti uma grande saudade da lota. Era bonito, não era? Agora, ao fim da tarde, a fortaleza até me parece escura e triste, um mostrengo inútil.

- Sim, tem razão, é uma tristeza...

- Antigamente a fortaleza abrigava a lota, enquadrava o movimento das barcas, das chatas, dos pescadores, dos vendedores, dos almocreves, estendia uma sombra protectora, era um presépio permanente.

- É verdade, a lota deixou um vazio enorme.

- De cada vez que me sento neste muro, parece-me ouvir ainda vozes cruzadas, a cantilena dos vendedores, os gritos, os dichotes, a grande azáfama da vida arrematada em lotes...

- Ena, o amigo tem veia poética.

- Bem gostaria, bem gostaria, mas mal consigo exprimir o que sinto, o que me ficou de tudo isto, da beleza que Sesimbra encerrava. Já não é a mesma a nossa terra.

- Ah, o senhor é de cá...

- Não, não sou... isto é, nem sei bem...

- Não sabe?

- De facto não nasci em Sesimbra, mas para mim ser é pertencer, é gostar, é estar ligado, é sentir. Para muitas pessoas que cá nasceram, o Macorrilho era apenas um passadiço, ontem destapado, hoje coberto de areia, mas só um passadiço. A lota era aqui, hoje é na doca, tanto faz. Quem nasceu na rua do Norte ou na rua do Saco habituou-se a ter o mar à porta. Por isso, quando saem de casa, mal o olham, se o olham não o vêem e, se o vêem, não o sentem.

- Explique lá isso melhor...

- Olhe, eu não preciso de olhar o mar para saber de que cor está, que aspecto tem. Por exemplo, nas manhãs frescas de Inverno, quando a brisa sopra da terra, ele fica muito azul e enrugado como a pele do tio Vicente Faneca.

- Não sei quem é.

- Eu também não o conheci, já morreu há muito, mas li há tempos uma evocação que hoje me leva a imaginá-lo de barrete preto, bigode, olhar perdido no mar, em tardes de vendaval, nas escadinhas da rua dos Pescadores.

- Ah, já percebi, anda aí literatura caseira...

- É verdade, não nego. Leio tudo o que fala de Sesimbra, assino os dois jornais da terra. Sesimbra, para mim, não foi o acaso de um nascimento, mas uma escolha, uma paixão. Comecei por vir de férias, com os meus pais, depois casei, continuei a vir e acabei por cá comprar uma casinha.

- Temos então um pexito por adopção...

- Sabe, se calhar, o ideal é viver em Lisboa e vir cá, espaçadamente, para saborear em momentos escolhidos, isolados, em escapadelas. Por vezes, ao cair da tarde, sinto como um chamamento do mar. A minha mulher já conhece os sintomas e prepara tudo para virmos. De repente, aí vamos nós, ponte fora, Apostiça abaixo, Cotovia à vista, Sesimbra é já aqui e que bom que é. Assim, contra a corrente, fora do tempo, apanhamos Sesimbra em sossego, desprevenida. Contemplamos o mar, passeamos na orla da noite e depois vamos jantar como dois namorados. Umas vezes ouvindo o murmúrio das vagas e saboreando a sopa rica de peixe do Hélder. Outras vezes, fugimos para o campo e vamos ao São Jorge, à Aiana, conversar com o Zé Martins enquanto a Dona Manuela nos prepara uma deliciosa cataplana. A felicidade é bem capaz de ser isto, momentos como estes, não sei.

- Cá temos outra vez o poeta...

- Com os anos e a leitura dos jornais, passei a conhecer nomes de ruas, nomes de pessoas e até alcunhas. Acho interessante e às vezes apaixonante a forma como certos escritos nos falam das pessoas, nos revelam a alma de Sesimbra, com ternura e poesia. Bem gostaria de ter conhecido o padre João, as armações, as ruas enfeitadas e tantas outras coisas. É verdade...

- Tem razão. E é curioso porque nunca vi as coisas por esse prisma. Bem vê, o meu caso é diferente, eu conheço toda a gente...

- Ah, o senhor é de cá!

- Olhe, já não sei. Para lhe falar com franqueza, depois de tudo o que me disse, já não sei se sou de cá. O meu amigo é muito mais de cá do que eu. E no entanto nasci cá, moro é no campo.

- Felizardo. Desculpe a minha tagarelice, quando gosto não me contenho...

- Eu é que lhe agradeço, aprendi muito. Olhe, se calhar, esta conversa, bem trabalhada, era capaz de dar uma crónica jeitosa.

- Talvez, só que eu a falar ainda dou um jeito, agora a escrever...

1994

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 22

O novo do Restelo

António Cagica Rapaz

Artur Jorge veio ao mundo do futebol vestido de azul, azul e branco do F.C. Porto. Depois, trocou o azul pelo preto e cruzámo-nos nos degraus da Sé Velha, em Coimbra, onde ele chegou no ano em que eu saí, em 1965. Mais tarde, defrontámo-nos no campo e desencontrámo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, ele em Germânicas, eu em Românicas.

Da sua alta linhagem de jogador está tudo dito. Aliando à eficácia o recorte do gesto, a classe ao poder concretizador, Artur Jorge foi um jogador de excepção. E, para além do futebolista, existia já o homem inteligente e lúcido. Aprofundou os seus conhecimentos nas oficinas de Leste, introduziu-lhe o toque de artista boémio latino e aí temos uma fórmula que poderá levar longe as caravelas da Cruz de Cristo.

É difícil e aleatório fazer prognósticos, mas aposto na capacidade de Artur Jorge. Os seus primeiros passos de treinador foram dados à ilharga do grande mestre José Maria Pedroto, e este apadrinhamento é uma garantia, um atestado de mérito. Recentemente, deixou o berço de Guimarães, trocando Afonso Henriques por Vasco da Gama. O primeiro conquistara o território nacional, o segundo foi ao fim do mundo. Curiosa e paradoxalmente, nada quer com os Brasis e prefere recrutar marinheiros lusitanos. Ao remar ao Restelo, Artur Jorge não escolheu o caminho marítimo para a facilidade…

Se ele começou de azul, azul eu fui durante anos, até conhecer o futebol por dentro. Cedo me habituei às apaixonantes narrativas que levantavam ferro na foz do clube, quando os irmãos Rio puseram pé no convés. Pouco a pouco, fui-me familiarizando com os nomes de Artur José Pereira, César de Matos, Pepe, Augusto Silva, Capela, Vasco, Feliciano, Serafim, Amaro, Elói, Bernardo, Quaresma, José Pedro e Rafael. O herói dessas evocações era José Manuel Soares, o idolatrado Pepe, jogador genial ceifado por morte estranha na Primavera da vida.

A roda do tempo foi levando esses nomes e outros surgiram, Pedroto, Matateu, Castela, Figueiredo, Di Pace, Vicente, José Pereira, Perez, etc.

Ainda assisti, numa bela tarde de sol, nas Salésias, ao adeus de Serafim das Neves, em jogo contra o Torriense onde pontificava o admirável Forneri. Na inauguração do Estádio do Restelo, em tarde cinzenta, após manhã chuvosa, fiquei sentado no topo sul, a ver o Belenenses vencer o Sporting…

Nesse tempo, nos anos cinquenta, o Belenenses era um dos quatro grandes, e o título de campeão conquistado em Elvas era uma relíquia, por tudo e por ser o único. Mais tarde haveria uma Taça de Portugal e umas Taças de Honra, ocasionais e subalternas. Embora fosse, reconhecidamente, o menos grande dos quatro, o Belenenses era uma equipa altiva, orgulhosa dos seus pergaminhos, do seu sangue azul, do seu brazão reluzente, velho aristocrata de cofres vazios mas cravo na lapela e monóculo em riste. Era também uma equipa sem sorte que conheceu o píncaro do desespero em 1955 quando o campeonato lhe fugiu nos últimos instantes, crucificada com um golo de Martins, do Sporting.

Foi o canto do cisne, nunca mais o Belenenses voltou a aparecer na recta final para discutir o título. Daí para cá, o velho fidalgo foi-se contentando com algumas sortidas esporádicas, guerrilhas estéreis, lutando mais pela sobrevivência do que pela glória.

Progressivamente, foi-se desfazendo das jóias de família que viu partir com a morte na alma e uns magros tostões no bolso. Abalaram Yaúca para o Benfica, Peres para o Sporting e o Magriço José Pereira, o Pássaro Azul, para o Beira-Mar. A tal fatalidade ancestral abateu-se ainda sobre Vicente, um símbolo do clube, enquanto o mano Matateu envelhecia tristemente, descendo aos trambolhões a escada da degradação.

Inúmeros treinadores passaram pelo Restelo, Fernando Vaz, Riera, Otto Glória, Fuch e mesmo Helénio Herrera, o mago que formou a equipa dos bebés de Belém, com o habitual esquerdo Tito na ponta direita, Inácio a médio de ataque, Paz no meio da defesa e, na extrema esquerda, Bezerra. Para marcar golos lá estavam o grande Matateu e o esperançoso Vítor Silva. Estrearam-se contra o Braga, ganhando por 9-3, com seis golos do Matateu e festival dos três irmãos Mendonça, no outro lado. Um jogo inolvidável, a que tive a felicidade de assistir.

Os anos 60 acentuaram o declínio do Belenenses. As caravelas azuis deixaram de se fazer ao alto mar. Cheias de rombos no casco, receavam a crista das vagas e contentavam-se com a calma podre da doca de Belém. Os timoneiros sucederam-se, marujos entraram e abalaram, mas o Belenenses não tinha ânimo nem ideal para voltar a sulcar os mares profundos da alta competição. As ondas assaltaram a Torre de Belém, isolando o clube cada vez mais, cortando-lhe as saídas, reduzindo-o inexoravelmente à dimensão de agremiação de bairro. Do grande clube restava a saudade e o orgulho ferido.

Mudados foram os equipamentos, com retorno ao figurino romântico do passado, apitos soaram por todo o lado para quartos de hora à Belenenses, mas em vão…

Até que, em 1970, com as promessas de outro mago, ecoaram as trombetas, os arautos percorreram as ruas, as gaivotas sobrevoaram alvoroçadas as caravelas pintadas de novo, o coração belenense voltou a encher-se de esperança. Mas tudo acabou em novo naufrágio, total, definitivo. Os olhares perderam-se no oceano indiferente, o estádio ficou vazio e sombrio, fustigado pelo vento que fazia ondular a bandeira da Câmara Municipal de Lisboa, espinho cravado na alma azul.

Mas o Belenenses nasceu na praia, o sonho renasce em cada maré nova. E se os adeptos do clube da Cruz de Cristo foram sofrendo na carne, ano após ano, desaire atrás de derrota, foram ao mesmo tempo retemperando a fé e moderando a ambição. E hoje o povo azul junta-se de novo na praia, esperando ver as caravelas fazerem-se ao mar. Talvez a Índia seja longe de mais para elas, é provável que a Europa não seja para já. É sabido que na aurora das grandes empresas aparecem sempre os velhos do Restelo, mas a História não se escreve com passividade agoirenta. Artur Jorge saberá até onde poderá ir, aproveitando o vento das boas vontades, navegando à bolina, fugindo às borrascas, evitando o escorbuto das dissidências, conduzindo a nau com mão firme. E talvez daqui a um ano, quando chegados à baía do Jamor, o gajeiro posso gritar do alto da gávea: Taça à vista!

Boa sorte, Artur Jorge, novo do Restelo!

1981


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 71

Helder

António Cagica Rapaz

- Dona Cremilde, marque um quarto d’ hora...

Invariavelmente, absorvida pelos cafés e pelas sandes, quando a dona Cremilde se lembrava do bilhar já lá ia meia hora.

Candidamente, nós esquecíamo-nos de perguntar, naturalmente. Era no velho Ribamar, ainda e só café, muito antes de ser o restaurante mais emblemático de Sesimbra.

Não era fácil ser filho do Chagas, poeta da noite, mais sonhador que comerciante, paixão e orgulho ao leme do seu Ribamar onde se cantava o fado e de onde saia o arquinho e balão.

O Hélder cresceu a ver o pai puxar pelo Ribamar, encher Sesimbra de festa, deliciar-se ao microfone, viver em frenesim.

O pai Chagas foi um homem dinâmico e inovador que soube transmitir ao Hélder a vontade de lutar, de progredir na profissão, sem esquecer os prazeres da vida, entre eles a música. Ou não tivesse ele próprio tido uma bela voz...

O aparecimento dos Beatles despertou no Hélder o desejo de fazer música a sério e assim nasceram os Zambras. Foi um período maravilhoso, anos sessenta, com alegria, entusiasmo, num universo de boa camaradagem, cumplicidade e entreajuda, desde o pai Chagas até ao mestre Henrique Sineiro que foi patrocinador, motorista, apoiante da primeira hora e, sobretudo, um grande amigo.

Um acidente de viação frustrou-lhe os planos de entrada na Força Aérea e obrigou o Hélder a enfrentar mais cedo do que previra a vida real. Foi o início da epopeia...

Primeiro, ficou à frente do Ribamar, quatro anos de luta que culminaram com a abertura do Pedra Alta, de sociedade. Depois, foi o novo Ribamar, na marginal, bem de frente para o oceano. Mais tarde, seria a vez do Angelus, em Santana, casa aberta por um antigo empregado do velho Ribamar, nos anos cinquenta, marés da vida.

A carreira profissional do Hélder Chagas é notável, determinação, rigor, bom gosto, simpatia, exigência, qualidade, tudo quanto explica que o seu Ribamar seja um dos 100 melhores restaurantes de Portugal.

Mas o mais valioso é que o Hélder soube fazer-se Homem sem vender a alma por dinheiro, sem esquecer a poesia nem os valores essenciais da vida, os afectos, a dignidade, as raízes. Continua a ter o mesmo olhar bondoso, o mesmo sorriso bonito, certamente feliz por ter conseguido construir o que, a certa altura, decidiu ser a sua carreira, aquilo que o pai sonhou sem ter podido concretizar.

A tia Cremilde continua a cozinhar para o Hélder que, sempre que pode, vai comer com a mãe, para felicidade de ambos. Mal se adivinha nela uma pontinha de orgulho, tanta é a ternura em que envolve o menino...

2000

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 21

O homem das Arábias

António Cagica Rapaz

O Boeing 747 aterrou na Portela ao cair da noite, depois de sobrevoar a ponte sobre o Tejo onde os carros se cruzavam como formigas ou pirilampos, contra o relógio e a favor da telenovela.

Os secretários particulares do Xeque trataram das formalidades aduaneiras, e as dezoito malas de Sua Alteza foram de imediato metidas numa carrinha que as levou para o hotel Ritz onde duas suites esperavam a comitiva.

O Rolls cinzento metalizado arrancou suavemente, deixou para trás a Rotunda do Relógio e misturou-se com os outros carros na avenida do Brasil. Sua Alteza o Xeque Ali Aulad honrava Lisboa com a sua presença…

O Xeque tinha as malas em forma de barril, a sua estatura era normal e a gordura super. Ali Aulad fazia acompanhar pelo primo Ben Gala, também ele descendente do venerando emir Al Fayate, irmão do todo poderoso Al Manak.

A notícia da chegada do homem das Arábias fora abundantemente divulgada por todos os órgãos de informação. A televisão instalara todo o material necessário e mobilizara uma equipa de reportagem para transmitir em directo a chegada da eminente personalidade. Entre sorrisos e salamaleques, o Xeque Ali Aulad (via intérprete) declarou que a sua estada entre nós significava para ele um regresso às origens e que tencionava efectuar uma peregrinação a lugares de grande significado histórico e simbólico como Al Piarça, Al Kântara, Al Bufeira e Ben Fika. Em seguida, confirmou o ambicioso projecto de constituir uma sociedade de responsabilidade incalculável destinada à exploração paralela e simultânea do turismo e do futebol, a FUTOTEL.

O seu grande sonho era possuir uma poderosa equipa de futebol capaz de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Por diversas razões, a importação de vedetas em declínio acabara por se revelar desastrosa, sobretudo pelas dificuldades de adaptação ao clima e ao modo de vida. Arábia só dita porque vista e vivida é uma aflição, admitiu o Xeque. Por isso, em vez de aliciar jogadores para torrarem ao sol do deserto, resolveu trazer os petrodólares e fundar uma equipa na Europa, visto que uma formação no Médio Oriente jamais poderia ser campeã europeia, por óbvias razões de ordem geográfica que não escaparam à perspicaz análise de Ali Aulad.

A escolha do nosso País para berço dessa organização e sede do Clube, deveu-se aos laços de sangue existentes entre os dois povos e ao fascínio que Portugal sempre exerceu sobre ele. E mais não se dignou dizer Sua Alteza que, após profunda reverência, se retirou para os sumptuosos aposentos a fim de efectuar a sua oração da noite, virado para a Aldeia do Meco…

No dia seguinte, todos os jornais desportivos apresentavam um anúncio de página inteira que rebentou como uma bomba no meio futebolístico português. O Xeque Ali Aulad propunha-se comprar, perdão, contratar a qualquer preço trinta jogadores, três treinadores, três secretários técnicos, três preparadores físicos e três massagistas, os melhores do mercado, dando-se alguma preferência aos que tivessem nomes de consonância árabe. Sabendo que, fatalmente, todos estariam já ligados por contrato a clubes portugueses, Ali Aulad proponha-se pagar quanto fosse preciso para obter as necessárias desvinculações. Assim se lançava uma operação diabólica de consequências delirantes…

No próprio dia, o hall do Ritz enchia-se de caras conhecidas, jogadores, dirigentes, treinadores, massagistas e endireitas vindos dos quatro cantos do país. Os campos ficaram desertos, ninguém apareceu aos treinos, o futebol português parou, ficou suspenso de uma decisão, de um gesto magnânimo, de um cheque do Xeque.

Os secretários particulares de Sua Alteza convidaram quatro jornalistas da especialidade para constituírem um júri para apreciar as credenciais dos candidatos. Começaram a mover-se influências, cunhas, pedidos, súplicas, um inferno, um atropelo de Al Binos, Al Meidas; Al Banos, Al Fredos, Al Ves, Ben Tos, Al Hinhos, Al Bertos e até um certo Al Iveira que garantia ser craque de respeito. Alguém afiançava que o treinador ideal seria Al Lison, quando fez uma entrada tumultuosa um tal Mourinho que gritava histericamente, que ninguém merecia mais do que ele, porque era mouro, mais que mouro, Mourinho. Poderia ser treinador, mas se fosse preciso ainda fazia uma perninha como guarda-redes, sendo homem para se prestar a vários papéis. Ninguém ficou surpreendido…

O hall do hotel mais parecia a Bolsa, com os valores em órbita, acções em alta e outras em queda, vertiginosa e desesperadamente. Choviam propostas, respostas, contrapropostas e promessas. Jogadores que ganhavam trinta contos por mês já se viam a auferir trezentos, e os desta escala multiplicavam por vinte. Era a caverna do Ali Bábá, só que os ladrões eram muito mais de quarenta.

Do Porto chegou, radiante, Ali Queta que veio descobrir o primo Ali Kate que julgava desaparecido, enferrujado. Estava-se em pleno delírio, quando o craque Al Bino arregalou os olhos. Seria possível? Estaria a sonhar? Seria miragem? Antes que a visão se esfumasse, já a futura estrela petrolífera se apressava a assinar o contrato, sofregamente, sem ler, de cruz, embriagado pelas palavras, deslumbrado, sem se aperceber das areias movediças do documento. Á saída, o ambiente era o mesmo do átrio de um liceu em dia de exames, com a euforia dos aprovados e a tristeza dos chumbados. Os novos ricos da bola desceram ao Fontória e ao Nina, e festejaram o acontecimento com champanhe que lhes soube a petróleo.

Quando, no dia seguinte, acordaram, o sol golpeou-lhes os olhos, o barulho do eléctrico bombardeou-lhes os ouvidos e a boca sabia-lhes a areia do deserto. E foi então que o Al Meida disse ao Al Berto. “Eh, pá, que história é essa de bater com o coirão? Os gajos disseram que a malta tem de dobrar a parada se não suarmos o coirão? Parece que não confiam na gente!”

Quando a Tina e a Dina se levantaram, os rapazes voltaram ao Ritz e pediram para falar com o secretário particular, Al Truísta. Intrigava-os aquela história do coirão porque estavam habituados a dar o litro, a ir a todas, a dar no osso, a esfarraparem-se todos e não admitiam que alguém pusesse em causa a sua entrega ao jogo. Então o Al Truísta sorriu cinicamente e disse-lhes que eles não tinham lido bem o contrato. Com efeito, eles nada tinham lido, assinaram apenas com os números e a visão das notas a bailarem-lhes diante dos olhos. Ora uma cláusula do contrato previa que todo o contratado se comprometia a saber de cor o Alcorão um mês após a assinatura do documento vinculativo. Caso o livro sagrado dos maometanos não fosse devidamente decorado, estava previsto que Sua Alteza Ali Aulad teria direito a uma indemnização por danos e perdas, morais e materiais, igual a dez vezes o valor fixado no compromisso. Só isto. E assim se concretizava uma monumental burla devidamente legalizada, um conto do vigário maior do que o Saará.

A Polícia, alertada de imediato, nada pôde fazer pois os craques haviam assinado de sua livre vontade, e as assinaturas haviam, entretanto, sido reconhecidas. Treinadores, jogadores, dirigentes e massagistas deitavam as mãos à cabeça e batiam com ela nas paredes do Ritz. Os chumbados da véspera vinham gozar o prato e houve cenas certamente chocantes. Intervieram rapidamente advogados para tentar resolver a delicada questão e abafar o escândalo que cobria de vergonha e ridículo o futebol indígena. Por fim, os secretários de Sua Alteza condescenderam e propuseram uma rescisão amigável que, ainda assim, custou a cada um, no mínimo, quinhentos contos. Os mais gulosos, os que pensavam ir ganhar fortunas, tiveram de desembolsar para cima de mil e quinhentos contos.

Sua Alteza jantou em Al Fama, passeou na Mouraria, depois recolheu ao Ritz e nunca mais foi visto. No dia seguinte, as empregadas da limpeza do hotel encontraram nas suites vários turbantes, barbas postiças e um maço de Três Vintes.
Os falsos árabes sumiram-se e ficaram os verdadeiros camelos. O recomeço dos treinos fez-se com beiço caído e risinhos irónicos…


1981

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 70

O fado

António Cagica Rapaz

Eles conhecem o caminho, aproam à Marisqueira, amarram o cabo a uma mesa, aguentam a abordagem de um ou outro pendura de giga pronta a receber qualquer teca de brandy ou Aveleda, dizem “saúde” várias vezes e, quando a caldeira começa a ferver, levantam ferro, rumo ao Espadarte Clube.

Sobre as magníficas lajes, cadeiras e mesas com velas que emprestam ao ambiente a mortiça luz castiçal das noites de fado em que há no ar o ciúme, a paixão, a navalha e o canalha...

Instalado o rebanho dos turistas, surgem os boémios locais para beber um copo e tentar sacar uma lady, ainda que entradota. Com os copos, a partir da uma da manhã, todas elas têm dezoito anos, afiança o Ernesto Corneta.

Corre-se a cortina e entra o Zé Manel que traz o fatinho azul escuro e gravata. Os guitarristas avançam, o fado instala-se na noite. Os turistas olham com curiosidade, os conquistadores ardem de impaciência.

O Zé Manel, como sempre, canta “É tão bom ser pequenino”. Depois, agarra o copo, molha a garganta e segreda qualquer coisa ao guitarrista. Coloca-se no meio da pista, ar gingão, põe-se em bicos de pés e lança, com desdém “Se queres ir embora, vai”. Claro que ninguém vai porque o Zé Manel tem raça e os turistas aplaudem com calor, Fada very good...

Ainda as palmas não cessaram e já o estrangeirame se vê com uma pandeireta na mão e um reco-reco sobre a mesa. É o folclore que chega, aguardado com ansiedade pelos caçadores especiais que, na penumbra, traçaram o seu plano de ataque.

Mal o António do Porto arranca os primeiros acordes da gaita de beiços, eis que os dados estão jogados e os comandos lançados. Qual suicida, o “Gaivota” é o primeiro. Uma ligeira vénia diante do marido, duas palavras que ninguém entente e a mulher já se levanta para dançar. Elas são civilizadas, simpáticas, desinibidas, é festa, férias são férias. Quando a marcha acaba, a dama não tem tempo de se sentar porque os outros passam ao ataque, todos dançam com a disponível senhora. Agora já não há vénia nem outro protocolo. De braços no ar, aproximam-se da mesa, dançando sozinhos, fazendo o gesto clássico com o dedo indicador a circundar e já está, é à balda, estamos com a nossa gente. O marido, quase grosso, toca desajeitadamente a pandeireta e ri-se com cara de parvo...

Corre-se a cortina e todos os olhares convergem para a porta. Entra o Júlio Silva, o meu rico Júlio, o John Português.

O Zé Manel olha para o Valdemar e diz “Está tudo estragado”.

O Júlio avança, Good night para a direita, Hello para a esquerda e ele aí está na mesa de um casal alemão para aceitar o copo que lhe oferecem. Quando lhe perguntam se vai cantar, franze o nariz, encolhe os ombros e diz que não se sente em forma. O folclore acaba. O Pinhal acende bruscamente uma luz branca e crua, ruidosamente contestada pela assistência, põe de novo o Rose Garden numa rotação errada e alguém grita “Vai pr’a casa, vai”. O Pinhal abala porta fora, sem dar as boas noites ao “Trinitá”...

De novo o fado. Há protestos por parte dos conquistadores que preferem música de dança para tentarem aproximações.

O Zé Manel vai no terceiro parafuso e parece mal disposto.

Lá do fundo, uma voz, “Ó Júlio””.

O Júlio, sorri, falsa modéstia, encolhe de novo os ombros, olha pr’ó Zé Manel, olha pr’ó sô Zé Brás, levanta-se, saúda a plateia que repete “Ó Júlio, ó Júlio” e coloca-se atrás dos fadistas. Afinal, o Júlio sempre vai cantar. Murmura ao ouvido do guitarrista o que todos adivinham e prepara-se para cantar (pois o que havia de ser?) o fado do cigano que matou o cavalo na feira da Agualva. A malta faz coro, o Júlio ganha calor. A certa altura, lá do fundo, uma voz “Ah, fadista!”. Os turistas repetem “Ah, fadista!”, o entusiasmo vai alto. O Júlio ataca com vigor e, quando o cigano se prepara para matar o cavalo, uma voz grita: “Mijão!”.

É o desastre. O Júlio fica branco, o Zé Manel ri-se, as nuvens de fumo parecem de chumbo, o fado seca na garganta do fadista, mata o cavalo, não mata o cavalo? A sua expressão é dura, finca os dedos nas costas dos guitarristas, acaba com o cavalo e vai-se embora. Os turistas olham-se, olham-no, sem compreender, o Júlio está a ferver. De repente, o autor da provocação levanta-se e vai ter com o Júlio.

- Boa noite, ó mestre!

- Ah, foste tu? Julgava que era o “Gaivota”...

E o fado continua, ainda a noite é uma criança, é tudo no gozo, para engatar o Júlio. Às tantas, tudo canta, minha gente. O Zé Manel bisa “É tão bom ser cavalo”, perdão, “É tão bom ser pequenino”, e, quando o “Trinitá” fecha a porta, já o chamador gritou pela companha toda...

1983

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 71

Até ao meu regresso*
António Cagica Rapaz
Há muitos anos ouvi contar o caso, não sei se verídico, de uma mulher que abalou, praia fora, em direcção ao mar, gritando, repetidamente, que se ia afogar. Quando a água lhe chegou à cintura, olhou para trás e perguntou: “Então, ninguém me vem salvar?”. Claro, ninguém foi. E ela desistiu de se afogar…
Assim (quase) estou eu, anunciando que deixo de escrever para, afinal, estar de volta, um mês depois. Contudo, não é bem a mesma coisa e passo a explicar.
A minha decisão de interromper a colaboração não foi ditada por uma qualquer crise de vedetismo nem por capricho idiota. Entendamo-nos bem, eu sou apenas um colaborador, não estive na corrida para o Prémio Nobel, não vou passar à posteridade, e a hipotética evidência que estes escritos possam conferir não ultrapassa a curva da Alfarrobeira. A questão é simples, embora algo delicada, pois entra na esfera da susceptibilidade que, como os gostos, não se discute, cada um tem a sua, é assim, acabou-se.
Poderia eu, hoje, retomar as minhas redacções feitas em casa, molhando o aparo no tinteiro e torcendo a língua no canto da boca, como se nada tivesse acontecido. Podia, claro que podia, era mais simples, ninguém me levava preso. Porém, achei que vos devia uma explicação. Não porque os meus estados de espírito sejam importantes para o futuro da humanidade, mas apenas porque me parece normal e salutar esclarecer, e porque o tema se reveste de certo interesse especulativo. Devo, aliás, dizer que considero excessivas as apreciações elogiosas que me fizeram neste espaço, no mês passado, só explicáveis pela bondade dos seus autores. E que elas em nada contribuíram para o meu regresso. Pela simples razão de que nada tinha contra o jornal ou os seus colaboradores. A questão é muito antiga e tem a ver com a atitude de algumas pessoas… Já lá vamos.
Quem me conhece sabe que não sou vaidoso, nunca armei em vedeta nem tenho birras. Apenas sucede que, até hoje, tenho tido o privilégio de escrever em total independência. E por gosto. Mesmo quando era pago, só escrevia o que me apetecia e dava prazer. Gosto de escrever, mas, por vezes, a motivação dilui-se, sinto vontade de parar. Há muitos meses que andava para o fazer. Aconteceu agora. E explico porquê.
Aqueles que têm o hábito e a bondade de me ler, já repararam que pouco falo de mim, apenas o necessário para situar e enquadrar. Falo, sim, dos outros, de pessoas de quem gosto, que admiro ou que, simplesmente, acho interessantes. Tiro-lhes o retrato de corpo inteiro, pinto-as com as cores da minha amizade, da minha fantasia e ofereço-lhes o modesto destaque que está ao meu alcance proporcionar. Recordo-me que o meu primeiro artigo num grande jornal (Diário de Lisboa, 1971) foi dedicado ao Fragata, um jogador excepcional, um gigante, um exemplo e um símbolo do futebol sesimbrense.
Tenho procurado dar prazer às pessoas sobre quem escrevo bom número das minhas crónicas, e também aos leitores para os quais o importante é a qualidade do escrito. Depois, penso igualmente em mim, porque cobro à partida uma parte do prazer que procuro dar. E muitas vezes gosto de ler o que escrevo…
Dizem que amor com amor se paga, mas raramente tenho tido reacções das pessoas a quem consagro as minhas crónicas. Não esperaria agradecimentos, mas uma palavrinha, um sinal de conivência, de cumplicidade, de sintonia afectiva. Perante estes silêncios (e muitos têm sido), fico com a desagradável sensação de estar a errar o alvo, a escrever no vazio, a cumprir uma obrigação, a pregar um sermão que ninguém me encomendou. Dizia a minha mãe que “quem faz festas a galegos mais galego é”. E tinha muita razão, pelos vistos. É estranho que alguém (e não foi só um) a quem dedico um artigo “nem à merda me mande”, como diz o nosso bom povo.
É estranho, desagradável e dá que pensar…
Há, no entanto, quem considere que a pessoa que escreve não deve preocupar-se com as reacções dos outros, nada deve esperar, deve apenas escrever.
Talvez, mas não é assim que vejo e sinto as coisas. Para mim, há uma partilha, uma interacção, uma troca, um movimento circular, uma corrente que se deveria estabelecer entre quem escreve e quem lê. Admito que possa haver certa indiferença, certa distância entre escritor e leitor num universo amplo, numa grande cidade ou à escala nacional.   
Mas, num jornal como o nosso, numa terra pequena, a dimensão afectiva é muito maior e reencontramos o universo ingénuo das representações na Vila Amália, em cada dia 1 de Dezembro da nossa Mocidade extinta. Lá íamos, com emoção com entusiasmo e deslumbramento, perante o olhar embevecido dos nossos familiares e amigos, bondosos e parciais, que aplaudiam ruidosa e orgulhosamente as nossas piruetas no palco. Aqui, escrevo sobre os meus amigos (serão?), sobre vizinhos, parentes, vivemos na mesma terra, na mesma rua, na porta ao lado, é outra coisa, cruzamo-nos a cada esquina. Por isso, a tal dimensão afectiva é tão grande. A reacção dos outros não é só um bálsamo e um estímulo, é também um sinal, uma orientação, diz-nos se estamos a escrever o que gostam de ler, se vale a pena, se estamos no bom caminho. Por estas razões e porque tenho escrito muitas coisas por amizade e por amor, não entendo e dificilmente aceito certas atitudes. Contudo, quero frisar que não me considero pedra essencial. Fazer este jornal é uma cruzada, trabalho de Hércules que exige paixão e sacrifício. Pela minha parte limito-me a escrever ao correr da pena, mas sem o esforço e a prosa vigilante do Carlos Batista não haveria jornal. É ele, de facto, a trave mestra, com a primeira ajuda do Pedro Filipe, é bom não esquecer. Eu só dou um jeitinho para torcer o rabo ao bicho, na molhada…
O jornal é filho de todos nós e quem faz um filho fá-lo por gosto, é bem sabido.
Daí que possa haver da nossa parte (em uns mais do que noutros, não sei) uma sensibilidade exacerbada que pode levar-nos a aceitar menos bem certas reacções. Ou a falta delas.
Há uma pessoa já falecida sobre a qual escrevi várias vezes, sempre com ternura e admiração, repetidamente, o melhor que pude, ao longo dos anos. E nunca, nem uma só vez, um dos familiares me disse, ao menos, que leu. É muito estranho. E há vários casos destes, esquisitos, surpreendentes…
Ora, como só escrevo sobre pessoas de quem gosto, acabo por me encontrar frequentemente com elas, com familiares, com amigos íntimos. Obrigatoriamente. E é este o nó da questão. Perante estes silêncios estranhos, que fazer? Perguntar-lhes se assinam “O Sesimbrense”? Se o lêem? Todo? Mesmo a última página? Se, por acaso, por venturosa coincidência, por miraculoso conjunto de circunstâncias, por virtude da brisa do poente, os seus delicados olhinhos se pousaram na modesta croniqueta que tive a ousadia de consagrar ao paizinho, à tia ou ao avó de Vocência? Ou simplesmente fingir que não sei que eles leram? Fazer como se “O Sesimbrense” não existisse ou eu nunca tivesse escrito? Naturalmente, nada disto é vital, mas desagrada, dá vontade de provocar um incidente diplomático.
Há também quem se sinta na obrigação de dizer qualquer coisa, sabendo que eu sei que leram o que escrevi. E então sai uma alusão elíptica, sintética, magra e insípida. Mas a honra está salva, não posso dizer que não deram sinal. Se eu estivesse longe, como já estive, não teria esta percepção, não sentiria este mal-estar. Porém, eu vejo, falo, sento-me à mesa com estas pessoas, é essa a diferença.
Claro, há o reverso da medalha. E por isso aqui estou, de novo. Porque o Zacarias, de longe, por gestos, me pediu para continuar. Quando há amizade, não são precisos discursos nem palavras rebuscadas, basta um sorriso cúmplice, uma piscadela de olho, o tal sinal de liques.
Volto porque o Luís Rafael Pinto se mostrou desiludido; porque o Xico me escreveu e telefonou de Sines; porque a minha antiga professora no Liceu de Setúbal, a Dra. Auzenda, faz questão de assinar o jornal e é uma pessoa maravilhosa; porque o tio do Afonso Maurício, o Eng. António Fonseca, me recordou a mensagem do general; porque a Micá exigiu que continuasse; porque a minha tia Lucinda me ia dando uma tareia; por isso, por aquilo, porque há pessoas que me dão vontade de escrever, de partilhar com elas esta saborosa aventura de vasculhar o sótão à procura de ideias, e de ajudar a preencher esta última página.
Volto, mas não venho fazer qualquer favor, não penso nem um segundo que faço falta. Ninguém faz verdadeiramente falta, e este episódio é apenas isso, uma peripécia insignificante.
O general disse aos soldados: “Se vocês recuam, morrem. Se avançam, morrem. Então, para quê recuar?”.
Por isso, não recuo. Fico é com mais responsabilidades e cada vez menos temas, menos assuntos, pois as fontes de inspiração não são inesgotáveis. Mas, enquanto for capaz e me der prazer, terão de me aturar. Depois, não se queixem. A culpa foi de todos quantos me ralharam, me pediram, me compreenderam e não me deram tréguas. Até ao meu regresso…
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* Publicado em O Sesimbrense de Janeiro de 1997.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 20

Distâncias

António Cagica Rapaz

Um dos temas que maior curiosidade desperta no público é o das relações entre treinador e jogadores. Para uns, o modelo deve ser um Yustrich autoritário, para outros um Cândido de Oliveira professoral ou, ainda, um fantasista tipo Helénio Herrera. São todos eles figuras do passado, mas a bola continua a ser redonda. Os jogadores têm agora mais bigodes do que antes, mas ainda não usam calça comprida, antes persistem em jogar de calção, símbolo da brincadeira que, basicamente, o futebol deve constituir, diversão saudável, encontro e festa, desporto sempre, apenas um jogo.

O terceiro homem (além do treinador e do jogador) é o dirigente, responsável pela contratação dos outros dois. E por ele nos chega, ano após ano, a aberração do despedimento do treinador que, sendo o mesmo homem, o mesmo profissional, deixa de ser considerado competente, às vezes, ao fim de poucos meses.

Por isto ou por aquilo, é sempre o treinador a vítima, como se os jogadores fossem perfeitos e impolutos. Assim, já saíram de Belém o belga Henri Dupireux e três brasileiros, Cláudio Garcia, Paulo Roberto e René Simões.

Como dizia Eça, é uma bengalada higiénica, tão cheio está o futebol português de técnicos e jogadores brasileiros. Nomes como os de Otto Glória, Zézé Moreira ou Flávio Costa merecem respeito, mas hoje a quantidade abafa a qualidade e compra-se gato por lebre.

No Paris Saint-Germain, aconteceu uma coisa curiosa, com uma despromoção para cima. Devido aos maus resultados, o técnico Gerard Houiller (antigo professor de inglês) foi afastado do comando da equipa, mas promovido a manager, passando a supervisar toda a organização do futebol. Há dois anos foi campeão de França e elogiado não só pelo título mas igualmente pela forma como conduziu a equipa, com espírito de união e conquista, solidariedade e ambição. Porém, os resultados não perdoam e o mesmo homem, com os mesmos métodos, é agora afastado…

A propósito deste tema, recordei-me de duas notícias que li há pouco tempo. Em Paris comentava-se abundantemente a atitude de Artur Jorge, frio e distante para com os seus jogadores, após a derrota em Cannes.

Ao mesmo tempo, um jornal português informava que, no início desta época, o treinador desejado pelos jogadores do Benfica era Quinito.

Achei curioso este paralelo e, porque o tema é interessante, aqui deixo o meu ponto de vista, tanto mais que conheço bem os dois treinadores em questão.

No relacionamento com os jogadores não há receita única. O treinador é um homem, um indivíduo, com o seu temperamento, o seu carácter, as suas convicções, os seus princípios, os seus valores. E cabe-lhe dirigir vinte ou trinta homens que são outros tantos indivíduos com as suas particularidades. Daí, a evidente dificuldade da função de treinador.

Saía eu de Coimbra, em Junho de 1965, quando o Artur Jorge chegou. Não chegámos a ser companheiros de equipa, fomos apenas adversários. Quanto ao Quinito, foi meu companheiro no Belenenses, em 1971.
Já nesse tempo, Quinito era um hedonista, dentro e fora do futebol que encarava como uma actividade eminentemente lúdica, na sua acepção pura de jogo, brincadeira, representação, pantomina, fonte de prazer. Evidenciava uma alegria permanente e contagiante que não o impedia de ser um belíssimo jogador e um bom colega. Como treinador, não perdeu a fantasia nem o sorriso. Acrescenta-lhe alguma poesia, um grãozinho de loucura calculada, e aí temos o belo Quinito que consegue criar um clima agradável, com a adesão e a cumplicidade dos jogadores que lhe são dedicados, um bocado no estilo Robin dos Bosques e companhia.
Artur Jorge é diferente, tem o perfil ideal para treinador, formado em boa escola, e assenta os seus conhecimentos técnicos num passado de futebolista de eleição.

Nas relações com os jogadores, Artur Jorge passa por ser distante, pouco dado a intimidades. Neste cotejo benigno, há quem veja na toada familiar, no tom coloquial de Quinito um estilo de outro tempo em que o futebol era uma romaria dominical, quando os jogadores eram modestamente pagos e se vivia do amor à camisola, do bairrismo, da carolice, do espírito de sacrifício. Era o tempo da palmadinha nas costas, da vibração intensa, do ideal poético, era a Académica da laranjada como prémio de jogo.

Hoje o futebol é uma máquina poderosa e infernal que movimenta milhões e que não se compadece com nem recorre a sentimentalismos piegas. O treinador não tem que andar de braço dado com os jogadores. Estes são profissionais bem pagos, às vezes a peso de oiro, e a única coisa que se lhes pede é profissionalismo. Não há lugar a cumplicidade de larachas nem copos, não há choradinhos mas sim e apenas aplicação total de profissionais a quem se exige o cumprimento de uma missão. Só isso.

Depois, são os resultados que falam e aprovam ou reprovam os métodos. Virtualmente, pode haver cambiantes mas, na prática, processos bons são os que levam à vitória. E amanhã, os mesmos processos poderão ser banidos se não produzirem os mesmos efeitos, se não conduzirem ao triunfo e à glória.

Por isso, não há fórmula única, e o Espinho não é o F.C. Porto. Quinito terá razão em ser jovial enquanto ganhar, tal como Artur Jorge poderá ser (se o é) distante enquanto conquistar títulos. Os vencedores têm sempre razão…


Nota - Seis meses depois, Quinito assinava pelo F.C. Porto

1987

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 69

Frank Sintinas

António Cagica Rapaz

Foi o Manel António que me chamou a atenção para o homenzinho discreto, de boné, que guardava as sentinas. De facto, o homem era parecido com o Frank Sinatra, sobretudo de perfil. E desta forma nasceu a figura do Frank Sintinas, assim mesmo, pronunciado à nossa moda, à pexita.

As alcunhas, tão ao gosto da nossa gente, são muitas vezes mordazes, maldosas, cáusticas e raramente exprimem ternura. Neste caso, Frank Sintinas é fruto de inspiração benigna, imagem poética, só entre nós, como para arrancar o homem à banalidade cinzenta de uma existência obscura, através de uma comparação resplendente. Esta alcunha, aliás, nunca chegou a ser divulgada, era apenas uma simpática brincadeira, um sinal de liques, jogo de cumplicidade, sem ponta de maldade. Pelo contrário, o modelo era admirável, Sinatra, o som inesquecível da bossa nova no crepúsculo, naquela hora mágica em que o sol se põe por trás dos mastros altos dos veleiros ancorados na doca, de onde começavam a chegar os veraneantes, lobos do mar raso, vestidos de branco, bronzeados, em busca da noite...

As sentinas são os magníficos azulejos de Sesimbra, testemunhos de um passado que idealizamos, vestígios de um tempo que o ciclone levou e que alguns tentam desenterrar, esgravatando na areia da memória como os pescadores faziam, procurando moedas, fios e medalhas, mal acabava o vendaval.

As sentinas, como o jardim, eram o refúgio de pescadores idosos, remando contra a solidão, tertúlia de nostalgia, loja de companha de velhos de terra. O nosso Frank era o guardião do templo e do tempo, do bom tempo de pescarias fabulosas, do mau tempo de vendavais intermináveis, do tempo que a todos foge em cada maré vazia. O Frank Sintinas, sem saber, era conservador do museu, moderador de debates perpassados de melancolia, o passado eternizado nos azulejos. Frank Sintinas é a ironia inocente que nos leva a contemplar com um sorriso, sem pretensões moralistas, sem dogmas nem ilusões, velhos de terra que nós já somos também...

1992

sábado, 17 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 70

Superveniente*
António Cagica Rapaz
Há tempos a minha tia Lucinda fez-me chegar uma mensagem segundo a qual a tia Líbia gostaria de me ver. No universo já meio quimérico das férias da minha meninice, nas Caixas, a tia Líbia não era figura predominante, talvez por morar muito longe da minha casa, aí a uns bons oitenta ou cem metros, o que era considerável na minha minúscula aldeia. O meu centro de gravidade situava-se algures entre a casa do tio Júlio e da tia Clarisse, por um lado, e a do tio Justino e da tia Conceição por outro.
A tia Líbia tinha duas filhas, um filho e um marido epiléptico. O filho, o Bernardino, não era meu companheiro assíduo de brincadeira nem das fainas agrícolas. O nosso relacionamento era mais distante, não havia a intimidade que tinha com o Julinho, por exemplo.
Os anos passaram, a nossa infância ficou mais longe, diluída na ribeira dos Torrões, e só muito mais tarde voltei a encontrar-me com o Bernardino. E se a tia Líbia agora me queria ver tal se deve em grande parte a esse encontro que ocorreu em meados de 1971 no cenário agreste, ventoso, detestável, do Campo de Tiro da Serra da Carregueira.
Depois de Mafra e do Porto, fui ali colocado e designaram-me para chefiar a Unidade de Mobilização que era, no fundo, a secretaria geral da soldadesca ali incorporada.
Está bem de ver que aquilo para mim era chinês, mas tropa é assim, obedece e desenrasca. Felizmente havia o sargento-ajudante Manso que de facto me ajudou muito, apesar de ser um bocado surdo. Ele é que sabia de requerimentos, notas e outra papelada e, graças às suas indicações, lá fui levando a água ao meu moinho, conservando a escrita em dia, ou melhor, em meio dia porque à tarde eu estava autorizado a sair para os treinos do Belenenses.
A certa altura a minha curiosidade foi espicaçada ao verificar que os vários processos de amparo de família que por ali passavam eram todos, mas mesmo todos, sem excepção, arquivados, caixote do lixo. Admirado, perguntei ao Manso o porquê de tal procedimento e ele explicou-me simplesmente, dizendo que não eram supervenientes. Trocado por miúdos significava aquele palavrão que os rapazolas não tinham metido os papéis na devida altura, “atempadamente” como agora se ouve dizer.
Os processos de amparo deviam ser obrigatoriamente apresentados pelos mancebos (assim era designada a carne para canhão) no dia em que iam à inspecção. Ora está bem de ver que, nesse dia, nenhum mancebo, por mais cebo que tivesse entre os dedos do pé esquerdo, tinha o menor conhecimento das leis, regras, disposições ou regulamentos militares.
Sofridos e amargurados eles iam, com o rabo entre as pernas e a pila à mostra, desfilar diante do júri que lhes aplicava sem hesitar o caminho de apurado nos lombos magrizelas. Alguém imaginava que era logo nesse dia que se tratava do processo de amparo? E o que era isso dos processos de amparo? Eles queriam era fugir dali sem olhar para trás.
Segundo acto: o mancebo, transido de frio e medo, era incorporado no Campo de Tiro onde não aparecia como no arraial da festa das Chagas uma loiraça a perguntar “ó simpático, vai um tirinho?”.
Passado algum tempo começaram a ouvir dizer que havia quem saísse da tropa por amparo de pai ou mãe e, vai daí, alguns apressavam-se a falar com o médico de família, iam à Junta de Freguesia e às Finanças e reuniam os documentos todos que entregavam cheios de esperança na tal Unidade de Mobilização. O Manso mandava-os para a Amadora ou para o Quartel General, já não sei bem, e depois voltava tudo para trás com a menção “arquive-se”. Ponto final, morria ali a esperança. Porquê? Porque, como explicava o sargento-ajudante Manso, não eram supervenientes. Queria ele dizer na sua que a doença do pai ou da mãe só podia ser tida em consideração se tivesse acontecido depois do dia da inspecção. Ora praticamente todas as doenças invocadas e atestadas pelos médicos já tinham anos e anos pelo que deviam ter sido expostas no dia da inspecção. Como nunca era, por desconhecimento natural dos rapazes, vinha tudo para trás, arquive-se, caixote do lixo, inapelavelmente.
Como nunca gostei de pactuar com injustiças, resolvi procurar uma solução, uma artimanha para contornar esta legislação monstruosa e viciada. Com algum receio, o Manso lá me bichanou ao ouvido que a única forma era tornar o caso superveniente, ou seja, posterior à inspecção. Tal significava alterar as datas do atestado médico, da Junta de Freguesia, etc.  
Só que sugerir, aconselhar aos rapazes estas falcatruas era um exercício altamente perigoso. Estávamos em 1971 em plena guerra colonial e o risco era enorme, no mínimo prisão de Caxias, forte de Elvas, sei lá, Tarrafal, não faço ideia.
Na altura, para ser sincero, não me lembro se pesei os prós e os contras. Recordo-me de ter telefonado para a Amadora a um tal tenente Luís perguntando se não podíamos dar um jeito, ajudar os rapazes. A resposta foi agressiva, cínica, avisando-me de que não me metesse nisso porque era perigoso e depois se eles não trataram das coisas a tempo era com eles, paciência, que se lixassem. Se já estava indignado mais revoltado fiquei e foi nessa altura que me veio parar às mãos o processo do Bernardino. Eu nem sabia que ele estava lá na Carregueira, mas ao ver o processo lembrei-me dos ataques epilépticos do pai e decidi fazer qualquer coisa, não pensei no risco, procurei apenas ajudá-los, a ele e à família. Porque era justo, eu sabia que era verdade tudo quanto estava no processo. Por isso havia que torná-lo superveniente. Chamei o Bernardino, expliquei-lhe tudo muito claramente e ele lá foi, antes de tudo, falar com o Dr. Leite, o bom doutor de Santana, que lhe aldrabou novo atestado fingindo que a epilepsia do pai era recente. O resto foi só reajustar as datas dos outros documentos e lá voltámos à carga. Agarrei no novo processo e enviei-o com o coração apertado.
Depois dele foram vários, quatro, cinco, não sei ao certo, desconhecidos, não sei se sinceros se golpistas, pouco me importava. Estava ao meu alcance ajudá-los e foi o que fiz, fiz o que pude, despachando vários processos aldrabados, recauchutados, à graça de Deus. Hoje apercebo-me do risco gravíssimo que corri. Mesmo sem denúncia, bastava que alguém se lembrasse de comparar os processos refeitos com os originais para ver que havia aldrabice. E não teria sido difícil saber quem era o responsável.
Felizmente não houve incidentes. Pelo contrário, meses depois recebíamos na Carregueira notas informando que os soldados tal e tal, já colocados noutras unidades, tinham passado à disponibilidade por amparo de pai ou mãe. Eu ficava contente por eles, apesar de não saber quem são.
O Manso, discretamente, sorria-me.
Feliz também ficou a tia Líbia quando o Bernardino disse adeus às armas e voltou para casa. Agradecida, levou um coelho à minha mãe. em parte também o Manso merecia agradecimento. Por isso, de alguma maneira, foi um coelho Manso…
Estes factos são autênticos, poderão ser verificados se no Quartel General restarem arquivos desse tempo. Apetece-me contá-los depois da visita que a tia Líbia me fez na Aiana, para me abraçar com a força dos seus 82 anos de sofrimento e labuta permanentes. E sentida gratidão, decerto.
Hoje tenho uma consciência mais nítida dos riscos enormes que corri. Uma denúncia ou uma olhadela mais atenta aos processos poderia ter tido consequências gravíssimas para mim. Não sei se na altura reflecti seriamente, só sei que senti o dever moral de fazer o que estava ao meu alcance para combater uma dupla injustiça, a guerra e uma regulamentação viciada.
Foi a minha maneira de lutar contra um sistema iníquo e hoje sinto, se não orgulho, pelo menos a consciência do dever cumprido. Estava ao meu alcance e fiz. Não encolhi os ombros nem pactuei activamente como esse tal tenente Luís (por sinal também miliciano), antes agi e, felizmente para aqueles rapazes, com sucesso positivo.
Não me considero um herói, não peço à Câmara uma rua ou beco com o meu nome, basta-me a recordação da emoção da tia Líbia. Por ela e por todas as outras mães valeu a pena.
Mas também é verdade que, apesar de não ter na lapela o emblema nem constar da lista dos heróicos lutadores antifascistas, provavelmente terei feito mais que muitos conjurados da bica e bagaço que andaram tão escondidos em luta clandestina que ninguém deu por eles, ninguém descobriu rasto dos seus actos.
No fundo não mereço recompensa por que me limitei a aldrabar. É certo que se tratava de um poder injusto, mas não é bonito mentir. Por outro lado, a tia Líbia deu-me um coelho, é mais do que suficiente.
E já agora terminemos com um sorriso sobre a atitude de muitas pessoas e com uma alusão à guerra colonial: “Mesmo que viremos a casaca, a gola é nossa…”

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*Publicado em O Sesimbrense de Dezembro de 1995.