quarta-feira, 29 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 15

Laterais ao ataque

António Cagica Rapaz

O futebol português está a ser varrido por uma maré de controvérsia, flagelado por uma guerra acesa entre os principais clubes que convidam, seduzem e aliciam jogadores dos seus mais perigosos competidores, não só para se reforçarem mas também para irem lançando a confusão e a cizânia.

Um dos casos mais badalados é o do defesa-direito portista Gabriel, um homem que foi, anos a fio, titular do seu clube e da selecção nacional, um jogador em evidência pelas suas espectaculares características ofensivas que fazem dele mais um avançado do que um defesa.

E porque se falou no F.C.Porto, vem-me ao espírito a imagem do pujante Virgílio, o lateral-direito por excelência, vigoroso, generoso, leão de Génova e das Antas. Também ele, como Gabriel, foi dono e senhor da camisola 2 da equipa das quinas, um degrau abaixo de Pedroto, no mesmo corredor direito onde armava jogo o maestro e capitão da nossa selecção. Natural do Entroncamento, Virgílio não terá sido um fenómeno nem um fora de série no aspecto técnico. Aliás, o Porto não precisava de tanto pois, para ir à linha centrar para a cabeça demolidora do Jaburu, lá estava o serpenteante Carlos Duarte, um malabarista fulgurante que formava asa com Hernâni, esse inesquecível e talentoso futebolista, dos maiores de sempre do nosso País e que não recearia o confronto com qualquer das vedetas de hoje. A menos teria o bigode, mas sobrar-lhe-ia classe, fibra e génio criador…

No princípio dos anos 60, começaram a surgir os laterais ofensivos, homens que não se contentavam em defender, antes abalavam campo fora. Se não me engano, um dos primeiros foi Gualter que deu nas vistas em Guimarães e acabou prematuramente nas Antas. Antes, porém, houve em Setúbal um esboço de inovação, através das exibições cristalinas de um compadre alentejano chamado Polido, belo executante que brilhou ao lado de jogadores de alta craveira técnica como foram Emídio Graça e o fininho Vaz. No mesmo Vitória dispôs, mais tarde, Pedroto de três laterais desenvoltos (Conceição, Carriço e Rebelo) que transformavam lances defensivos em ataques envolventes, com a cumplicidade e a arte de José Maria, Tomé ou Jacinto João.

Assim foi crescendo a luta das classes lateralizadas onde havia duas escolas opostas. Uma, conservadora, a dos defesas de raiz que preferiam desarmar, cortar, dobrar, interceptar e deixar para outrem a tarefa ofensiva. Outra, moderna, nova raça de laterais que entendiam ser o ataque a melhor defesa, jogando atirados para a frente, saindo das linhas atrasadas de bola no pé e cabeça levantada. O exemplo clássico dos conservadores é o meu amigo Hilário da Conceição, um magnífico defesa-esquerdo, de estatura mundial, dos poucos a quem Garrincha não trocou os olhos nem fez morder o pó. Se Eusébio foi o mais fulgurante dos Magriços, Hilário foi o mais regular, com um padrão elevado de exibições, seguro, maduro, impecável, sem quebras nem hiatos. Mas Hilário não era, propriamente, um homem de ataque e contentava-se em passar a bola ou cruzar (com o pé direito) para o barulho. Por isso, na ponta final da sua brilhante carreira, conheceu as atribulações de um duelo de pergaminhos com um rival da nova escola, o benfiquista Adolfo, de crinas ao vento e um pé esquerdo desinibido, ou não fosse ele um antigo extremo.

O arquétipo do lateral atacante era o famoso italiano Giacinto Fachetti que, em duas passadas, galgava até à área do adversário, lançando o pânico e semeando a perturbação. Não era um primor de técnica, mas tinha umas pernas intermináveis, era eficaz, jogava bem de cabeça e aparecia a rematar. Mais perfeito tecnicamente, mas mais comedido nos avanços, era o alemão Schnellinger, futebolista do mais fino recorte, dos melhores do Mundo, de sempre.

Na CUF, tínhamos um dos bons valores com que o futebol português contou durante muitos anos. Refiro-me ao excelente, ao pendular Francisco Lourenço Ramalho Abalroado, um senhor defesa à antiga, dificílimo de passar, muito rápido, óptima colocação e muita ratice. Atacar não era o seu forte, embora, às vezes, desse o seu saltinho lá à frente. Preferia o nosso Chico a sobriedade e a segurança, entregando de pronto a bolinha no pé esquerdo mágico do Emídio Simões Úria, cinquenta e quatro quilos de raro engenho, talento puro e pólvora na bota franzina.

O Abalroado tem um nome de conotação bélica, daqueles que ficam no ouvido, como Lança, Atraca ou Fragateiro. Talvez por isso, chegou a ter a injusta fama de violento, quando afinal foi sempre correcto. Rijo, abnegado, leal, sentindo a camisola, encorajando os companheiros, o Chico Abalroado nunca foi famoso, mas jogou muitas épocas no escalão maior, sempre titular, sempre em bom plano.

O futebol é cada vez mais polivalência, inspiração e pulmão para correr o campo todo, abaixo, acima, em acordeão, em carrossel, em maratona, sem rigidez táctica nem estatismo suicida. Os laterais (tal como os centrais, aliás) têm de ser os homens do relançamento do jogo, o primeiro compasso do movimento ofensivo, efectuado o desarme ou recebida a bola do guarda-redes. Um lateral como o brasileiro Júnior é defesa, médio, avançado, é um recital de futebol.

É próprio dos laterais abalarem campo fora e voltarem atrás, como eu volto agora ao princípio da crónica, para imaginar que o Gabriel, durante anos nas Antas e tão habituado a avançar, é bem capaz de não travar na linha de cabeceira e só parar em Alvalade, correndo como se fosse um extremo, segundo a expressão imortalizada pelo lendário Nuno Brás do alto do seu laço janota.

E não é impossível que, nesta guerra cruzada entre os mais poderosos, surjam situações curiosas pois todos sabemos que os extremos trocam-se

1983

segunda-feira, 27 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 64


António Cagica Rapaz

Por uma bela tarde de Verão, no início dos anos cinquenta, a tia Stella tomou corajosamente o volante do delicioso Ânglia preto rumo à Cotovia onde o tio Jó tivera a insólita lembrança de construir uma casa, no alto da charneca, num ermo, bem longe do mundo civilizado que girava em torno do Grémio e do Central.

No seu desejo de evasão fora acompanhado pelo tio Né, o garboso comandante dos Bombeiros, Hernâni Baptista.
A Cotovia era também o domínio de quatro rapazolas naquele paraíso protegido por soberbos pinheiros mansos, com bicicletas, espingardas de pressão de ar, ratoeiras para os pássaros, um mundo de aventuras que me fascinava. O entusiasmo levou-nos a combinar uma arriscada expedição para irmos armar aos pássaros na manhã seguinte. O melhor seria ficarmos lá, dormirmos na Cotovia. Eu dormi com o Luís Filipe e foi o início de uma bela amizade...

Assim nasceu a minha paixão pela Cotovia onde passei alguns dos mais agradáveis momentos da minha vida, graças à bondade do tio Jó e à paciência da tia Fernanda. O Luís Filipe vinha dar uns toques cabazeiros nos matraquilhos onde ele e o Joca eram fregueses certos da dupla que formei com o Zé. Enquanto a Carmelinda e a tia Fernanda limpavam a loiça, o António adormecia agarrado à telefonia a ouvir o relato e o tio Jó trocava dois dedos de conversa com o Jorge enquanto o Chico não chegava. O compadre Artur nunca tardava e o tio Nuno via-se aflito para impedir a Miss de cravar o dente no pudim que acompanhava o café suave que a aguardente do Jorge iluminava.

Muitos anos depois, voltei à Cotovia, a meio do ano, a meio da vida, em breve escala. Jantámos, conversámos longamente e preparámos o farnel para a expedição da caça na manhã seguinte.

Foi uma decisão repentina e inesperada. Precisávamos de falar, havia anos de certa distância, eu vivia em França, tínhamos muita coisa para contar, para evocar, para partilhar. Dormi na cama do Zé, bem enrolado nos cobertores, sensação agradável de conforto, ao desafio com a frescura húmida da noite.

Quase como dezenas de anos antes, acordei cedo para ir à caça. O tio Jó levou espingarda, mas não deu um único tiro. Eu levei um cajado e o saco do farnel. Percorremos quilómetros, embriagados pelo ar puro da manhã, mal nos preocupámos com coelhos ou perdizes. Apenas matámos saudades, antes aproveitámos o nascer do sol, a cumplicidade da natureza para conversar, muito, num diálogo a sós, único, inesquecível, entre homens, entre amigos, com muita ternura e cumplicidade. Há acontecimentos assim na nossa vida, e naquela manhã solitária e deslumbrante partilhámos muito mais do que o farnel e o cantil do vinho...

Na Cotovia das minhas recordações o Outono era eterno, havia sempre neblina e desejo de carapaus secos. E a Cotovia era, sobretudo, o tio Jó, um homem maravilhoso, admirável de bondade, inteligência, alma de artista, nobreza de sentimentos, delicadeza, trato fino, humor subtil, bom gosto, sentido estético, numa permanente celebração da vida. E uma franca generosidade, o prazer de partilhar a sombra doce do enorme pinheiro do altinho de S. João, a mesa, o convívio fraterno.

A caça, para ele, era apenas o pretexto para um bocado de exercício e estar com os amigos. A velha garagem foi transformada numa “Toca” acolhedora, com as relíquias e recordações da caça, o cantinho dos petiscos, o calor da amizade.

O Jorge era o seu velho mestre de armas que conhecia os cantos à casa, os abrigos, a direcção do vento, o canto dos pássaros.

Sem eles, a Cotovia não faz sentido...
1997

sexta-feira, 24 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 64

Anos sem solidão*
António Cagica Rapaz
«… o mesmo alarve que agora comia meio leitão ao almoço e cujos gazes faziam murchar as plantas.»
Esta frase não foi copiada de uma redacção desencantada nos arquivos do Professor Leal nem do diário de caserna de um furriel miliciano observador e minucioso. O meu tio Justino Casimiro Rosa (também, e sobretudo conhecido por Justino Come-figos) bem poderia ter redigido a sentença em questão.
O tema é dos que mais apreciava, é verdade, mas o seu vocábulo teria sido mais directo, cru e expressivo. Não, não foi ele. Trata-se de uma passagem do maravilhoso romance «Cem anos de solidão», de Gabriel Garcia Marquez que é moralmente responsável por tudo quanto vem a seguir…
Meio leitão ao almoço não conheço quem coma, mas contava-se uma história semelhante na pachorrenta e soluçante camioneta do Covas que conduzia os juniores (e não júniores, como saiu por gralha) do Desportivo por este distrito fora. Distrito que até tinha um jornal apregoado pelo Domingos Pacancas. “É o jornal Distrito de Setúbal!” gritava o bom Domingos.
Pum!,!, replicava a rapaziada brincalhona, sabendo que ele afinava.
Este «Pum» assim evocado está muito ligado à prosa vigorosa do mestre Gabriel como vereis pelo andar desta carruagem do Covas onde se contava que o Tóninho Cebola era rapaz de boa embocadura.
Algures, entre Coina a Velha e o Barreiro, dizia-se que o pai o levou um dia a uma caldeirada de homens, justificando que o seu Tóninho era de pouco alimento. Ora, segundo se constou, o belo Tóninho não se cansava de gabar as canejas que estavam uma maravilha, que nunca vira canejas assim…
E, ao mesmo tempo, ia enchendo o prato de fígado de tamboril.
Enquanto os outros iam falando, o Tóninho limpou a caldeirada quase toda! E o que vale é que o meu Tóninho é de pouco alimento, como dizia o pai Cebola. Só não comeu o tacho porque tinha asas e voou antes do Tóninho lhe deitar a unha. Desta e de outras histórias se lembra o Leão enquanto vai assando frangos maiores do que os do Eduardo. Só que o Eduardo os dava em casa e fora enquanto o Leão os vende. Em casa e na rua, sempre sorridente, sempre bem disposto, este Leão, rei do Canino…
O Saricoté tocava gaita de beiços, o Tóninho lambia os beiços, o António José Pereira contava anedotas e o Vitinha explicava que deixara entrar a bola por cima da cabeça (e foi golo, claro), sem meter a mão… para não ser penalty. Ah, leão!!! És tu, não és?!!!
Isto hoje não vai lá muito em maré de poesia nem romantismo, não me chegou o rumor brando da folhagem nem a melancolia das longas tardes pálidas…
Mas é assim, deu-me para aqui, embora não ceda à vertigem do impudor nem da grosseria, passíveis de cartão amarelo, no mínimo.
A culpa é do Gabriel Garcia Marquez e de quem me ofereceu os «Cem anos de solidão». Francamente, eu não sou destas coisas, mas aquela dos gases e a dos «arrotos bestiais à mesa» (é verdade, página 79, pela minha saúde), caíram-me no goto, não sei, arrastaram-me para esta pouca vergonha que inclui cenas eventualmente chocantes, bem contrárias à minha sensibilidade delicada e às recomendações e mandamentos do catecismo.
Não que eu tenha renunciado às coisas belas, aos sentimentos nobres, às pieguices ocasionais, mas a vida não é só lirismo e crepúsculos suaves.
Às vezes há concertos de harpa e dança, «darpeidança», como dizia o tio Nuno com a sua maravilhosa e desassombrada malícia…
Claro, as convenções sociais, os preconceitos e a hipocrisia condenam certas manifestações espontâneas, tapamos os olhos, a boca e os ouvidos, estrangulamos outras exclamações do nosso organismo, contorcemo-nos e, sobretudo, não falamos nessas coisas que, afinal, são as que mais fazem rir. Mas só em privado, nunca no salão da marquesa onde se chama viúva à xaputa…
Porque respeito as normas, parâmetros e cânones é que nunca revelei (isto agora a propósito dos gases) que o Luís Rafael Pinto Cascais (também e sobretudo mais conhecido por Luís Papa-rebuçados) murchava as flores dos vasos da D. Beatriz, não com gases, mas com abundantes mijadelas. Não, ele não urinava nos vasos. Não, o Luís mijava nas flores, com raiva e com gozo, pela calada da manhã, de cada vez que a severa mestra lhe batia. O senhor Faustino, coveiro e jardineiro, bem procurava descobrir a causa da epidemia, mas debalde, de balde, de lupa, de gatas, nada…
Confesso que já senti vontade de dar a conhecer esta tenebrosa malvadez, mas contive-me, ao contrário do Luís. Porém, agora, volvidos 40 anos, há prescrição. Cem anos de solidão, quarenta anos, ó mijão!
Que o Luís fizesse murchar as flores através de rega ácida, é normal e compreensível. Só não consigo perceber como é que o outro (o do romance) murchava as flores expelindo gases, quando afinal nos diziam que ele vivia «sem anus de solidão»…
Estas malandrices sempre fizeram rir, mesmo se o riso for abafado como o daquelas meninas que faziam ginástica na sala ao lado da farmácia de cima, sob a orientação do velho treinador Desidério Hertzka, o tal que gritava «Zacarias, p’rá braca!».
Uma bela tarde, as meninas faziam uma flexão com um pé apoiado na trave da cadeia, e uma delas, com nome de rainha, (não insistam, não digo quem é) deixou escapulir um gás, uma ventosidade sonora que, evidentemente, provocou a risota geral e envergonhou mortalmente a rapariga. No fundo, trata-se de coisa natural, banal, só sai a quem joga, é fruta da época.
Pode sair caro como dizem que aconteceu com o Palmeirim, multado pelo polícia e que repetiu a dose por não ter trocado…
Francamente, para o que me havia de dar, vou perder o crédito todo. A Rosa Maria e a Emiliana vão ficar chocadas com esta prosa brejeira e talvez me «dezarrisquem» de primo.
Muita maluqueira fica por dizer e nem me arrisco a evocar sequer os nomes prestigiosos do Alfredo Filipe do Zé Pardal, mestres nestas cerimónias sonoras. Se o outro murchava as plantas, estes dois figurões devem ter deixado sem pinta de cor imperadores e gorazes na areia da lota. Enfim, se o Valdemar quiser ele que conte como foi que o Rogério conseguiu roubar a bola ao avançado do Ginásio de Cacilhas que vinha isolado.
Como foi que o malandro do Rogério lhe virou as costas e que gases largou para o outro desatar a rir e perder o controle da bola que o expedito guardião se apressou a agarrar.
Ele que conte se quiser, eu não sei, não vi, não estava lá. E mesmo que soubesse não dizia, porque não foi para contar cenas dessas que li a missa ao pé do padre João, que estudei latim e grego, literatura e fonética.
Que vergonha teria minha mãezinha se me visse aqui contar que o Rogério era um óptimo guarda-redes, mas não lhe dava com as mãos.
Francamente, isso são coisas para descarados como o Valdemar ou o meu primo capitão Domingos. Eu sou tímido de mais, que querem vocês?
Se o Vítor quiser que conte aquela do inglês, no Hotel do Mar, que achava que a retrete era o sítio certo para actos daquela natureza.
Se o Hélio entender ele que explique como foi que o outro levou os dedos à boca depois de ter batido com a mão na borda da barca, ao sacudir…
Eu não conto, era o que faltava, bem basta o que basta.
E, depois, disto tudo, venham cá dizer-me que é bom ler grandes escritores, gente instruída. Vejam o resultado, é só carga e malho.
Para ver se me absolvem, recordo um pedaço de prosa antiga, afiançando que «o dia nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs». Era dedicado ao tio Escuminha, não vem a propósito, mas acho bonito. E evoca o mar que abraça esta terra que amamos, onde todos nos conhecemos, onde nos cruzamos a cada esquina e onde nunca poderemos viver dias nem meses nem anos de solidão…
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*Publicado em O Sesimbrense de Maio de 1993.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 14

Com musas ou sem elas

António Cagica Rapaz

- Só se nasce poeta!

Foi mais ou menos isto que ouvi ao meu recente amigo Alfredo Farinha, um jornalista que admiro há muitos anos e a cuja mesa só há pouco tempo os caprichos da vida me levaram a sentar. E foi aquele axioma pronunciado beatificamente como remate de uma cavaqueira em que foram evocadas as insuficiências de treino dos rematadores portugueses.

Na opinião de Alfredo Farinha, os treinadores portugueses não consagram o tempo e a atenção que deveriam ao capítulo do remate ao golo. A mesma opinião não tem Peres Bandeira que garante insistir nesse particular.

Nos jogos, a situação é diferente, pelos nervos, pela oposição dos adversários, e, sobretudo, pela severidade do público que não perdoa uma falha.

Daqui arrancámos para uma análise que nos levou até ao campo da poesia, através da sentença de mestre Alfredo e da qual eu, modestamente, discordo…

Contrariamente ao que apressadamente alguns poderão concluir, o futebol e a poesia apresentam aspectos que se tocam, como os extremos. O nó da questão situa-se na primazia a conceder ao dom ou à técnica, ao génio criador ou ao trabalho de preparação. Eu defendo a tese de que não se fabrica um goleador, enquanto Alfredo Farinha preconizava a preparação afincada, o treino insistente, o aperfeiçoamento técnico a esse fim. Como sempre, a virtude está no meio. O treino (quem ousará contestar?) é indispensável, por maior que seja o talento do jogador. Todavia, o goleador tem de possuir o dom, o instinto, a centelha. Para Alfredo Farinha, só o poeta nasce, ou seja, o dom vem do berço, e só o poeta o traz, não o futebolista.

Ora, meu caro Alfredo Farinha, num campo como noutro as opiniões divergem. Mesmo na poesia nem todos os teorizadores concedem o primado ao dom, não sendo o poeta universalmente reconhecido como possuidor de um talento inato. É verdade que Platão assim pensava e, para ele, a criação poética era fruto da inspiração, dádiva do sonho, obra das musas. Todavia, o seu compadre Aristóteles não alinhava nessa equipa e defendia que a poesia era, antes de tudo, um produto da razão, da técnica, do trabalho lúcido, do esforço metódico. Com ele alinhou Horácio, e o exemplo mais flagrante desta linha de pensamento é um poema de Edgard Allan Poe (O Corvo), todo ele construído segundo apuradas regras de lucidez, lógica e cálculo. Hoje, Poe teria utilizado um computador…

Portanto, nem só engenho nem apenas trabalho, nem só musa nem apenas técnica. O poeta e o futebolista estão na mesma situação porque um e outro criam, produzem poemas e golos, evasão, sonho e fuga ao real circundante.

O jogador é um artista cuja exibição não pode ser garantida pelo facto de haver treinado a sério durante toda a semana. O futebolista é um homem que pode não estar inspirado naquele dia, àquela hora, no instante preciso do remate decisivo. Vinte horas de treino não garantem golos nem exibição fulgurante. Cada jogo é uma experiência diferente, não um trabalho de rotina. As condições físicas, materiais, psicológicas, variam de jogo para jogo, a tensão nervosa, o peso do público, o estado do terreno, o vento, um gesto, um grito, um apito, um nada pode prejudicar o toque que se desejaria vitorioso.

A preparação, o treino sério, são indispensáveis mas não suficientes para assegurar o êxito. No caso dos goleadores, as coisas são ainda mais complicadas pela multiplicidade das suas características. Há os especialistas no jogo de cabeça (Águas, Torres, Madeiros) que também marcam com os pés; há os baixinhos, ratos da pequena área (Arsénio, Gaia, Tito); os rematadores de longe (Eusébio, Caiçara, Lúcio, Mendes); os de disparo fácil e imprevisível (Matateu); os calculistas (Néné); os dribladores envolventes (Manuel Fernandes) e os ocasionais (Humberto). Alguns reúnem várias destas características, a panóplia é grande.

Os calmeirões são privilegiados, tanto os gigantes (Torres) como os entroncados, tipo Peyroteo. Os mais espectaculares serão, porventura, os que disparam petardos do meio da rua, obtendo golos de bandeira. Os avançados peitudos, demolidores, mais em força do que em jeito, podem (sim senhor, amigo Farinha) aperfeiçoar a técnica, trabalhar o toque de bola, burilar o estilo, segundo o prisma aristotélico. Mas esses serão sempre rematadores e não forçosamente goleadores, só renderão enquanto a força durar.

Para os caçadores, os ratos da área, como o Arsénio, o Gaio ou, em especial, o Gerd Muller, não há métodos nem treino específicos. Não se aprende, nasce, é o faro, o instinto, o tal dom que lhes permite estar no sítio exacto, no instante preciso para desviar para a baliza o remate torto de um companheiro, para recargar uma bola que o guarda-redes largou, para aproveitar a fífia do defesa. Este sentido de oportunidade não se ensina, está no indivíduo, é o dom da musa de que Platão fala, o dom que Alfredo Farinha reserva aos poetas.

Devemos ainda distinguir os goleadores da bola corrida dos da bola parada. Nos primeiros tem de haver instinto, decisão, cálculo veloz, reflexos apurados. Com a bola parada, é toda uma arte de colocar o esférico numa pequena saliência do terreno, o golpe de vista à barreira, a escolha do pé, a inclinação do tronco, o doseamento do efeito e a aplicação do remate. Curiosamente, neste capítulo há um nome que estava predestinado, Platini, que obviamente é herdeiro de Platão, tem um dom inquestionável, um talento invulgar. Mas também tem de Aristóteles o gosto pelo trabalho esmerado com que ensaia a marcação de livres que, nos seus pés, são mais de meio golo.

No fundo, o ideal é possuir o dom dos deuses ou das musas e trabalhar seriamente. E o que nos vale é que podemos ter opiniões parcialmente divergentes, mas acabamos sempre por nos entender. E isto, meu caro Alfredo Farinha, talvez porque as musas de Platão nos tenham concedido os dons de abertura de espírito, do gosto do diálogo aberto e transparente, da tolerância e do bom senso, sem pretendermos o monopólio nem o exclusivo da razão. Ou, simplesmente, talvez por gostarmos de futebol e de participar em debates que acabam sempre com a vitória da amizade, a derrota da arrogância e o empate das opiniões…

1982

segunda-feira, 20 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 63

O tio Plínio

António Cagica Rapaz

Era uma manhã fresca de sábado, com o sol filtrado pela bruma. Lá em baixo, o mar e a Pedra Alta, ali, a dois passos, o bairro dos pescadores e a Cruz solitária...

O tio Plínio baixou o som do rádio e pôs em nós aqueles olhos que viram morrer um século e nascer outro. O meu pai ainda chegou a trabalhar com o tio Plínio, na profissão de carpinteiro, na arte de marceneiro, no universo aconchegado da madeira, de cheiro tão familiar, com as mil ferramentas que ajudam a construir o presépio e o cenário das nossas vidas, do berço até ao caixão, bancos e mesas, camas e armários, vigas e barrotes, baús e caixas, pipas e selhas, soalhos e tectos, a certeza metálica do martelo, o prego a mergulhar na tábua. E, sempre, o cheiro, o bom cheiro da madeira...

O tio Plínio é um artista, músico de talento e hábil carpinteiro. Imagino-o a construir violinos com madeiras raras, linhas suaves e sonoridade celestial, juntando as duas artes em harmonia perfeita, a delicada e minuciosa junção das paredes do violino para colocação precisa das cordas e a fricção arrepiante do arco ligeiro.

Há algo de transcendente e místico na arte ancestral de trabalhar a madeira. Algo que tem a ver com as nossas raízes, a nossa segurança, agarrados à nossa terra. Mas, ao mesmo tempo, a madeira flutua, procura outros horizontes através de rios e mares. No fim da viagem, seca ao sol e aquece as noites frias da nossa solidão.

O carpinteiro é mágico, é Gepeto que cria sonho e realidade, protecção, aconchego no lar travejado, escorado por mão forte e amiga. Entre a sua oficina e a música, o tio Plínio criou um universo de harmonia, trabalha ao seu ritmo, acaricia a madeira, retoca, apara, ajusta, cola, acomoda, encaixa, prega. O tempo é o sol, as florestas levam anos a crescer, a vida escoa-se com lentidão. Importante é ir fazendo, com amor e paciência, falando com os amigos, ouvindo, mostrando, partilhando a celebração do culto da madeira, com ternura, quase com volúpia.

O mar fica lá em baixo e os carros não sobem escadas. Mais acima, no terreiro da Cruz, em tempos distantes, lançávamos estrelas em tardes sombrias de vendaval.

Algures, na rua da Caridade, há outro artista que, pacientemente, faz maravilhas em miniaturas de barcos. Tem a sua loja, o seu atelier de criação artística, o seu mundo, ali onde já cheira a mar, a dois passos da Galé. São figuras deste presépio que Sesimbra ainda é, a espaços, entre duas marés, nas entrelinhas, quando a olhamos do poial da nossa porta.

Quando passo na rua do Forno, deito um olho à oficina do tio Elias. Ambos carpinteiros, ambos homens bons, com nomes excelsos, Plínio e Elias.

Daí, talvez e em parte, o orgulho com que conservo, como coisa preciosa, um cartão de visita do meu pai, único, nunca vi outro, singelo, admirável.

Diz apenas: António Cagica Rapaz – Carpinteiro.


1995

sexta-feira, 17 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 63

Segundo andamento*

António Cagica Rapaz

O senhor Camilo José Cela é um maravilhoso escritor galego que, em 1989, conquistou o Prémio Nobel, graças ao seu estilo admirável, todo ele originalidade, ritmo poético, imaginação, fantasia, subtileza e humor fino, numa fluência mágica que faz das palavras seixos cantantes que vão rolando riacho abaixo para nosso deleite e encantamento.

E tem também uma pontinha de loucura, atrevimento e irreverência que bem me agrada, porque nenhum de nós é um bloco inteiriço e compacto, antes temos esquinas, becos insuspeitos, arestas e fendas, caves secretas, gavetas misteriosas e sótãos por arrombar.

Por isso, podemos fazer um discurso sério, sisudo, sentido, sofrido e doloroso para logo soltarmos uma saudável laracha, das que provocam sonoras gargalhadas capazes de rebentar com os cós das calças como gostaria que este fosse. Todos temos em nós a melancolia do Outono, a poesia da Primavera, o fulgor do Verão e os arrepios do Inverno…

Pois o nosso Camilo José pregou-me uma partida que bem vos conto.

Embalado pela excentricidade poética, pela fantasia deslumbrante dos seus “Onze contos de futebol”, atirei-me como gato a bofe à “Cruz de Santo André”. Imaginem a minha surpresa ao deparar com frases que me fizeram corar de (muito pouco) vergonha. Já lá vamos.

Todos sabemos que o peso das palavras, o seu impacte, a sua carga emocional dependem, fundamentalmente, do contexto, do enquadramento. Há coisas que passam com naturalidade quando são ditas, mas as mesmas palavras já nos chocam quando as vemos escritas, impressas no papel. Num jornal é menos grave, vai e vem, leva-o o vento, acaba no caixote de lixo. Mas um livro é coisa séria, pode ficar para a posteridade, entrar na História.

Vejam só o meu espanto ao ler, da autoria de Camilo José Cela, estas coisas alucinantes:

“…por vingança, mijou e cagou-lhe na roupa” (p. 36).

“e a pilinha escura de mais, além de ser de baixo de cu” (pág. 62); “…o don Alfonso era  mais de bufas do que de peidos” (pág. 87). 

Garanto que estas passagens são das mais suaves, havendo outras infinitamente mais chocantes, num universo de putas e proxenetas. É uma edição da DIFEL – Difusão Editorial – 1994.

Lembrei-me logo de um parente meu cujas tiradas coloridas ficaram célebres. Ora, depois do que li (e aqui não reproduzo), chego à conclusão de que, bem vistas as coisas, ele era um aprendiz na arte de cultivar a brejeirice. De facto, é de se ficar boquiaberto, incrédulo e abananado.

Ninguém se admira quando um bufão como o Herman José diz graçolas mal cheirosas, mas um poeta sublime como o nosso bom Camilo! É de bradar aos Cela da família toda cujos antepassados devem ter dado voltas e mais voltas nos jazigos.

Voltas de gozo, imagino, rindo a caixões despregados porque, provavelmente, aquilo já vem de longe, é hereditário, tudo malandragem, farsantes e desavergonhados.

No fundo, tudo isto é bem pouco significante, sendo porventura benigno e até salutar. Porque se Camilo José cela nos delicia com o seu talento e a sua imaginação delirante que nos levam ao êxtase, ao sonho e ao encantamento, ao mesmo tempo, chama-nos à realidade, bate-nos no ombro para nos recordar que artifícios e rigores postiços são ridículos.

Os preconceitos, a parcimónia, as convenções sociais, a etiqueta, a ética, a moral, o bom gosto, o bom tom e, sobretudo, a hipocrisia ditam e condicionam o comportamento público das pessoas. Em privado, sabe Deus… 

Se não acreditam, peçam ao Julião para contar a proeza épica do Diogo que, apenas com um sopro fulminante, levantou duas filas na geral do Parque. Diz a lenda que, na taberna da Maria “Antónia”, tiveram que perfumar com alecrim.

Não vos dou pormenores porque não fui testemunha olfactiva e também porque a minha mãezinha sempre me desaconselhou temas escabrosos. Ah, muito haveria a contar sobre o Parque! Que era ao ar livre. O que faria se fosse no tempo da ópera bufa…

Estas reticências e pruridos só existem porque levamos a vida demasiado a sério, esquecendo que estamos todos, desde que nascemos, condenados à morte.

Naturalmente, nada justifica nem deve ficar impune qualquer atentado ao próximo, à sua dignidade, às suas convicções, aos seus princípios, embora não seja fácil estabelecer padrões ou normas em coisas tão subjectivas como o bom gosto, o humor ou o sentido do ridículo.

Não gosto de hipocrisia nem de abusos, embora reconheça que os limites sejam, como referi, difíceis de estabelecer. A brejeirice pode até ter elegância e finura, e, por vezes, será mesmo aceitável algum excesso, mas em circunstâncias que só no contexto próprio nós sentimos poder definir.

Chocam-me a falsa nota, a derrapagem, o cabelo na sopa, o arroto à mesa, o “coiso” entalado na virilha, por exemplo. Cá está, não fui capaz de escrever o que queria, por pudor, por acanhamento, não sei. Ainda tenho muito que treinar para adquiri a espontaneidade dos desinibidos. Mesmo assim, não fui desajeitado de todo porque coiso tem um arzinho maroto e insinuante enquanto “testículo” é vocábulo técnico e insípido. Foi o que consegui arranjar, pois não escreveria “colhão”, palavra feia que alguém pudico como eu jamais usaria nem ousaria…

Por outro lado, estas coisas têm muito de cultural, embora não pareça.

Por exemplo, os fleumáticos britânicos são conhecidos por serem o suprasumo dos cavalheiros e disso vos dou um exemplo verídico.

Há um bom par de anos encontrou-se o meu amigo V. na casa de banho, mais propriamente nos urinóis, do Hotel do Mar, no primeiro andamento do “allegro despejato”.

Ora, está cientificamente provado que é nessa fase de arranque para a expelição inicial que a 92,7% dos homens sai o esforço furado, ou seja, a desejada saída sofre um duplo revés. Mais concretamente, faz-se não pela frente mas pelas traseiras e não no estado líquido mas no gasoso, sob forma de ventosidade, em geral sonora (os investigadores são formais).

Foi o que sucedeu ao meu amigo V. que, na calamitosa e funesta circunstância, fez o que 99% dos homens fazem, ou seja, olhou em volta, na esperança (defraudada, claro) de que não houvesse testemunhas ou, se houvesse, que os eu descuido tivesse passado despercebido.

Já agora, para cultura geral, é bom saber que os que não olham em redor só não o fazem por estarem com um torcicolo. Impedidos dessa verificação, ficam ainda mais aflitos e repetem a dose…

Portanto, resumindo e abreviando, sem mais salamaleques, o meu amigo V. estava a mijar e, como já estão a adivinhar, deu um pum, um traque, um peido, pronto, seco, conciso, bem aviado.

Posto o que, ao executar o inevitável movimento de rotação da envergonhada cabecinha, o seu olhar se cruzou com o de um indubitável súbdito de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, que estava, por seu turno, no segundo andamento da sacudidela. O meu amigo V. ficou para morrer. Desesperada e inutilmente, ainda apertou as nádegas, mas era tarde, já lá ia, o mal estava feito. Pior que isso, a expressão sonora dispensava tradução, é linguagem (salvo seja) universal, onomatopeido, com todas as letras.

Corado até à raiz dos cabelos encrespados, o meu amigo V. encolheu o resto, porque uma desgraça nunca vem só, arrumou a ferramenta e preparou-se para ouvir um raspanete azedo do “gentleman”. Para sua grande surpresa, de súbito, o súbdito virou-se, com um sorriso prazenteiro e cúmplice, dizendo:

- "It’s the right place to do it!” – ou seja, (para quem não sabe paquistanês) “é o sítio indicado para fazer estas coisas».

Foi uma cena comovedora e não garanto que não se tenham cumprimentado (depois de terem lavado as mãos, claro) e que não tenham ensaiado uma desgarrada, afinados que estavam os instrumentos.

Quem me perdoem as almas mais sensíveis, irmãs da caridade, antigos professores, amigos do peito e sócios do Arrifanense, mas de poeta e de louco todos nós temos um pouco.

Porém, graças à inspiração das musas, céleres como o vento norte, logo traçamos as nossas capas românticas, saudamos com gesto vago de chapéu de abas largas, fazemos amorável reverência e retomamos a nossa pose digna e irrepreensível.

Sede condescendentes, somos simples seres humanos, com as nossas fraquezas e os nossos jardins secretos onde nem sempre cheira a rosas.

Depois, a vida continua, estamos no Outono, deixamo-nos levar pela sensibilidade, as folhas secas nos bosques habitados por faunos e duendes, em tardes pálidas perpassadas de melancolia, na brisa doce do entardecer…

Ah, esta nossa alma de poetas, só ternura e requebros meigos!

Somos assim, enquanto dormita o mafarrico que está em nós. E então…

Camilo, faz mais daquilo!!!

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* Publicado em O Sesimbrense de Outubro de 1996.   

quarta-feira, 15 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 13

Botas de traves

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, o balneário do Desportivo ficava junto à escola dos rapazes, a uns bons cem metros do campo cercado por eucaliptos, junto ao ribeiro. Lá em cima era o terceiro anel, a eira do Valada...

As botas tinham traves que ressoavam no cimento e fascinavam o miúdo que eu era, quando assistia aos treinos do Desportivo. Vindos do mar, os homens trocavam as botas de água pelas botas de traves e lá iam dar umas voltas ao campo, meia dúzia de exercícios, muita ronha na ginástica e, por fim, a bolinha a saltitar, para contentamento do pessoal que lá ia para fazer horas para o almoço e relatar dois lances da barca, à mistura com piadas aos jogadores que vinham de fato-macaco, os que trabalhavam no gelo ou na oficina, outros de camisola grossa. Depois eram todos iguais, de calções e botas com traves arranjadas pelo tio Carlos Soromenho.

Quando a bola ultrapassava a vedação, a rapaziada corria-lhe atrás, para a apanhar, para a acariciar e, a contragosto, a despachar com um débil pontapé, próprio de quem só estava habituado a bolas de borracha e, excepcionalmente, a alguma de catechumbo manhoso das caixas de rebuçados do tio Chico da Cooperativa.

Era uma festa naquelas manhãs que cheiravam a eucalipto, com as maluqueiras do Ilídio, a queixada proeminente do Baeta pé-de-cChumbo, a peitaça do Manel Santana, a cara de pau do Miguel, a leveza do Isidro, o virtuosismo e a fragilidade do Zacarias, a velocidade do Zé Filipe, os petardos do Zé Broa, a presença do Jesus, os dribles do Barlona, as mãos de ferro e a preguiça do Rogério, o massacre do treino aos guarda-redes com que terminava cada sessão...

Ao domingo, mesmo com chuva, cumpria-se o ritual: almoço de bacalhau com grão, ouvindo A Vida é Assim, de José de Oliveira Cosme, no Rádio Clube Português, e corrida ligeira para ainda assistir à segunda parte das reservas. No filme das minhas recordações, o campo está sempre cheio de lama, mal se vêem as marcações e, na baliza, o intrépido Zé do Olho das defesas acrobáticas. O pessoal pouco liga ao João Manão, ao Azoia, ao Carlos Rosa, ao Joel Fartura ou ao Baguinho, as atenções já estão concentradas na primeira categoria. As vedetas aquecem, as reservas arrastam-se na lama, o Carlos Soromenho já tem o balde da cal à feição para compor os riscos, a eira do Valada impacienta-se, as nuvens negras sobem a serra vindas do mar onde ninguém se arrisca em tempo de vendaval.

Finalmente, ei-los que aparecem no topo da escada de madeira, por trás da baliza de baixo, o Santana à frente, o calção branco imaculado, a camisola cerise luminosa, a bola, a laranjinha, nas mãos. O público despede os reservistas e aplaude os heróis que vão enfrentar o Amora, lutar com garra. O Desportivo era uma questão de honra. Do peão chegam os gritos do Algarvio e na bancada soa a voz de trovão do João Mota...

Eu assistia, hipnotizado, só tinha olhos para a laranjinha, para as botas com traves, bem pretas de graxa, botas que me pareciam mágicas, com as de sete léguas ou as de cano alto do Corsário Negro ou do D’Artagnan. Era como se elas possuíssem íman para atrair a bola, bússola para a dirigir e canhão para a disparar à baliza. Calçar aquelas botas com atilhos brancos e traves que ressoavam no cimento era o meu sonho. Afinal, essa experiência viria a ser uma grande decepção. Nos juniores do Desportivo calcei, finalmente, as botas com traves, umas botas duras, remendadas, refugo das reservas, apesar da boa vontade do tio Carlos Soromenho. Mesmo assim, lá fomos percorrendo o distrito com o entusiasmo e o deslumbramento da nossa mocidade, mal dormindo antes de cada jogo, levados pelo sonho e pelos carros mais velhos do Covas. Era o tempo das ilusões, era bonito. Nunca mais haverá outro...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 62

no 67.º aniversário do nascimento de António Cagica Rapaz...

Ao reminho pela borda d’água

António Cagica Rapaz
É esta uma expressão que ouvi muitas vezes na boca do tio Jó, diminutivo por que ficou conhecido, em círculos restritos, esse homem admirável que foi João Baptista Gouveia.

A nossa língua está cheia de frases feitas, palavras soltas, expressões que ouvimos a cada passo, papagueadas, repetidas cansativamente. A rádio e a televisão enfiam-nos pelos ouvidos banalidades, fórmulas postiças, mimos de políticos e jornalistas modernaços. E lá vêm o “dado adquirido”, a “carta fora do baralho”, o “atempadamente”, o “estamos a falar de”. A par de “é assim”, “pronto”, “à maneira”, “passado dos carretos”, “óptimo”, “meu”, etc.

Os brasileiros têm uma graça natural, mas tal não é o nosso caso e já não há pachorra para ouvir “Então, tudo bem?”, a toda a gente, todos os dias. Pior ainda Atão, tude beem? no tom arrastado e pexito da nossa terra.

Mas quantas destas expressões existirão daqui por cinco anos?

A vida, mais ou menos longa, destas expressões depende, em parte, da sua qualidade intrínseca, da justeza do conceito, da sua sonoridade, mas também do universo afectivo, do contexto psicológico, do envolvimento emocional. Os filhos, muitas vezes, bebem as palavras dos pais, apanham-lhes as mímicas, os tiques e os trejeitos pois é natural estarmos mais atentos e receptivos quando se trata de pessoas de que gostamos.

A linguagem das pessoas de Sesimbra está, naturalmente, cheia de metáforas, alegorias e outras figuras de estilo ligadas à faina do mar, casos de ir à via, andar com a borda debaixo d’água, nem quero ver o mar ao bote, mar da neva, forrar a isca, safar a giga, etc.

O meu parente Cristiano costuma estar ao domingo de manhã junto ao muro da lota, sempre na conversa, a fazer o que ele chama “largar aparelho”. Podia ter dito “encher bóias” ou “iscar a caçada”, teria sido igualmente sugestivo. Expressões como estas são bem nossas, estão ligadas à nossa vida, ao nosso quotidiano, e são ricas, expressivas, coloridas.

Outras estão carregadas de malandrice, de segundos sentidos, como sucede com “lenha” ou “não te descalces que vais ao petróleo”.

O que acontece em Sesimbra também se verifica no campo, com a sabedoria popular a brotar em cada frase, aqui uma alusão à terra, ali uma nota sobre as nuvens, a chuva, o vento, numa ligação muito forte à Natureza, fonte de provérbios, rifões e sentenças, coisas que os antigos diziam e que seria pena deixar cair no esquecimento. Conservar este património é preservar a nossa identidade e a nossa especificidade cultural. E também é um acto de amor, sobretudo quando associamos a uma frase uma pessoa de que gostamos. Conservo um grande número de expressões e episódios saborosos ligados à minha mãe, à minha tia Lucinda, à minha prima Lucinda, ao tio Nuno, ao Jorge, partes bem apanhadas, alusões malandras, sinais de liques, bisca lambida pela cumplicidade, códigos quase secretos, a nossa cartilha, as nossas escrituras maliciosas.

Talvez por isso me lembrei hoje desta expressão que associo ao tio Jó e que evoca paz, suavidade, imensidão, olhos semi-cerrados, o chapinhar dos remos, uma pontinha de neblina, um barco de guerra ao longe, uma manhã de Setembro...

O pai do Manel, o tio António Casa Pia, costumava rematar um capítulo da conversa com a fórmula “Passou-se”, antes de prosseguir. O Manel e eu ficávamos amarrados ao fio da narrativa e íamos enchendo o nosso saco de aprendizes de velhos da terra, enquanto a tia Júlia fritava o peixinho, com amor, para os meninos que envolvia no mesmo olhar doce. Era ao fim da tarde, no Canino, “passou-se” há muitos anos.

Destes pequenos nadas se compõe o nosso presépio interior, caturrices, “cosas de viejos”, com diz o Patxi Andión naquela maravilhosa canção em que fala de flores, de alguns livros, de vinho, de solidão partilhada, de uma casa gelada, do rio que fica perto, do Inverno e dos frios que vão chegando...

1997

sexta-feira, 10 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 62

O Gil é dos nossos*

António Cagica Rapaz

Chamaram-lhe Hermenegildo, mas para nós foi sempre o Gil, um dos quatro Filipes, filhos do mar, amantes da baía que atravessavam em braçada larga.

O Gil é azul como o mar, como o céu, como o Belenenses que acompanhou, por que sofreu ao longo de uma vida que acabou na noite de ontem, nos braços do irmão Pedro, rodeado por amigos. Foi de repente, o coração ofereceu-lhe a suprema dávida de uma travessia rápida, poupando-o ao declínio, à solidão e à tristeza da velhice.

O Gil abalou, mar fora, olhando para trás, acenando, deixando em nós, os muitos amigos, o seu maravilhoso sorriso e uma grande saudade.

O Vítor Batista deve ter estado a acolhê-lo no outro extremo do mar da vida e já estarão, provavelmente, a retomar os comentários encalorados à volta do futebol...

O Gil é o "Zagaia", a praia, o muro da lota, o culto do sol, da camaradagem, da vida partilhada.

O coração não deixou que chegasse a velho e talvez tenha tido razão. Raras vezes o mar terá estado tão belo, tão calmo, tão azul como ontem. O mar era do Gil e o Gil é dos nossos...
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* Publicado no blogue Sesimbra e Ventos em 12 de Fevereiro de 2006.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 12

A Feira do Líbero

António Cagica Rapaz

Estávamos em 1963 e a tradição impedia os jogadores da Académica de alinhar nos torneios universitários de futebol porque, embora amadores no contexto profissional, éramos considerados profissionais entre os amadores puros. Porém, na Faculdade de Letras de Coimbra a proporção era de dez meninas para um rapaz, e esta escassez de recursos causava enormes dores de cabeça quando se tratava de formar uma equipa. Além disso, os homens de letras eram mais dados às filosofias e à literatura do que ao vulgar pontapé na bola. Por isso, a equipa das Letras era o bombo da festa, o pião das nicas. Fartos de cabazadas monumentais, resolveram nesse ano solicitar a minha ajuda e, para tal, conseguiram uma excepção, aliás só concedida porque os outros sabiam que a minha presença só poderia, no melhor dos casos, limitar a amplitude da tareia. Na baliza, jogava o Raposo, um madeirense que era o menos mau do conjunto. Em terra de cegos, fui acolhido com entusiasmo, e logo pus em prática uma táctica rudimentar mas razoavelmente eficaz. Dispus nove letrados atletas ao monte, à minha frente, ficando eu solto, às deixas, a fazer as dobras, a arrumar a casa, naquela zona crucial entre aquela trincheira atabalhoada e o nosso Raposo, atento e acagaçado. No final, perdemos por poucos e ainda fizemos o gosto ao pé. A parte curiosa da aventura é que no dia seguinte, no treino da Académica, José Maria Pedroso, com um sorriso malandro, disse-me que tinha assistido ao jogo da equipa das Letras. Com alguma surpresa minha, fui convocado para o jogo com o Benfica. Maiores que a surpresa só a minha alegria e o meu deslumbramento quando Pedroto me pôs a jogar na Luz, contra o Benfica, contra o Eusébio, dizendo-me apenas para fazer o que fizera na equipa das Letras. A experiência foi positiva, perdemos injustamente e repetimos o esquema nas Antas, onde empatámos. Foram os meus primeiros passos numa modesta carreira de líbero…

Tanto quanto me lembro, foi a Itália a pátria do sistema defensivo designado por ferrolho, o famoso catenaccio de que Picchi, do Inter, foi o primo signore.

Em Portugal, o Lusitano de Évora usava e abusava da ferrolhada, com uma barreira defensiva muito dura e fechada onde o líbero era, em regra, o Falé que jogava atrás de Teotónio, Polido, Paixão, Garcia, Athos e outros mosqueteiros de barba rija, contando na baliza com um seguro e arrojado Vital. Era aguentar, descascar e esperar o milagre de um contra-ataque providencial quase sempre protagonizado pelo solitário e hábil José Pedro. Mas o modelo era tosco e roçava o anti-jogo sistemático.

A meio dos anos 60, pontificava na Europa o admirável líbero Maldini, capitão do Milan, um futebolista maravilhoso só comparável a Franz Beckenbauer. Com efeito, Cesare Maldini, com o seu risco ao meio, era um jogador fino, elegante e excelente tecnicista. Com ele, o desarme, a intercepção e o corte eram apenas os primeiros movimentos de uma sinfonia atacante, saindo tranquilamente, bola dominada, cabeça levantada, campo fora.

Aqui reside a grande diferença entre o ferrolhista artesanal e o verdadeiro líbero que não se limita a destruir, antes começa a atacar partindo de trás, lançando os companheiros ou avançando em tabelinhas, abrindo jogo e, até, rematando. Assim jogava Maldini, assim nos encantou Beckenbauer.

Jogar a este nível é privilégio de eleitos, aliar a eficácia à beleza do gesto é dom em que os deuses não são pródigos. Temos visto bons defesas centrais, bons ferrolhistas, mas líberos virtuosos são raros. O verdadeiro líbero é o cirurgião de bisturi na ponta da bota, que corta com precisão e subtileza; é o gajeiro sem gávea mas que vê antes e ao longe, dominando com o olhar todo o campo; é o general que começa por organizar a defesa para logo decidir do rumo a dar ao movimento de ataque; é o empregado de café, nas horas de ponta, que resolve arrotear terreno, serpenteando por entre os adversários com a bola na bandeja; é o atirador de elite, com arma de mira telescópica, que escolhe o passe alongado e preciso ou o tiro certeiro à baliza; é o mestre, o maestro, a guilhotina dos ataques contrários e a génese das ofensivas da sua bandeira.

A este nível de exigência, só raros puderam ascender. Por isso, presto a minha homenagem ao talento transcendente de Beckenbauer, um jogador perfeito, um verdadeiro príncipe, jogando de cabeça levantada e bola domesticada, controlada na ponta da bota, submissa e obediente à arte e aos caprichos de mestre Franz.

Entre nós, há uma bela tradição de médios e defesas-centrais. Ouvi amiúde gabar o valor de Artur José Pereira, Augusto Silva e Albino, por exemplo. Recordo-me da finura e subtileza de Félix bem como da classe de Emídio Graça, jogadores de estilo moderno. Nos anos 50, a moda era a do defesa-central possante, vigoroso, como Manuel Passos, Raul Figueiredo, Artur ou Miguel Arcanjo.

O prenúncio da instituição do libero foi a fixação do quarto-defesa, no início dos anos 60. O médio esquerdo, em geral o de vocação mais defensiva, recuou uns metros e postou-se na linha do defesa-central, constituindo assim uma dupla que se opunha à outra novidade que foi a parelha de pontas-de-lança que enterraram o avançado-centro tradicional.

A guerra das estrelas no centro da defesa começou no Sporting, com a rivalidade Lúcio-Morato. Este, talvez por ser canhoto, foi deslocado para quarto-defesa, ficando Lúcio, bombardeiro terrível, dois passos atrás e mais para a direita. Mais tarde, tiveram os leões nova dupla de respeito formada pelo excelente Alexandre Batista e pelo eficaz José Carlos.

Porém, na primeira metade da década de 60, o grande senhor das estepes defensivas europeias chamou-se Germano de Figueiredo e foi um caso ímpar no futebol português. Jogador polivalente, senhor de uma técnica inexcedível, Germano carregou às costas, durante anos, o seu Atlético, venceu a doença, no Caramulo, e ainda arranjou forças para deslumbrar o mundo com a sua classe. Com a sua aura de monge, o ar professoral, foi apelidado de O lobo, talvez pela suavidade e certeza implacável das suas intervenções. Era o artista no meio de uma defesa rude e abnegada, sendo esta combinação indispensável. Porque um líbero, por melhor que seja, precisa de ter a seu lado um ou mais rachadores de lenha que vão à queima, que dão a cara, cabendo ao patrão da defesa entrar em cena no último acto, vibrar a estocada, prender o assassino, arrematar o lance, cortando orelhas, recolhendo as flores e a glória. Raramente é feita justiça aos valorosos e esforçados peões de brega.

Em Portugal, nos anos mais recentes, a par de centrais de marcação, como Eurico ou Freitas, dois jogadores se têm distinguido como líberos, Humberto Coelho e Rui Rodrigues. Humberto, mais atleta, Rui, mais esteta. Humberto cedo se mostrou um jogador altamente influente, eficiente, demolidor, omnipresente na sua área como diante das redes adversas, elemento determinante em termos de regularidade e rendimento. O farmacêutico Rui Rodrigues possuía o elixir do virtuosismo, os sais da serenidade, o ácido da visão, o comprimido do passe certeiro, o álcool da imaginação. O Rui foi um prodígio de classe, pés de veludo, toque requintado, execução suave, graciosidade no movimento, tudo à altura de Beckenbauer menos a personalidade, a ambição e a determinação de vencer.

O trono de Beckenbauer continua vago, apesar do reconhecido valor de homens como o austríaco Pezzey, o holandês Rudi Krol ou o argentino Passarella. As buscas prosseguem, está aberta a grande feira do líbero ou, se preferem à antiga portuguesa, a grande feira do livre…

1981

segunda-feira, 6 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 61

Chico Cagica

António Cagica Rapaz

A mais longínqua recordação situa-se na rua Amália, ainda eu não morava na paralela rua Monteiro. Andava na escola da Rosa Manão e, num fim de tarde, fui lá a casa. Pelo tempo fora, ocasionalmente, voltei, por cima da loja do Justino das mobílias, depois na avenida e, por fim, lá em cima, junto à estrada nacional. E, de cada vez, lá ficava horas esquecidas, ao ponto de, em véspera de Natal, me ter deixado enredar nas teias luminosas de um pinheirinho que ajudei a enfeitar. Já a minha mãe andava na rua à minha procura, espavorida, quando me lembrei das horas. Em casa do Chico era assim, eu ia e ficava, ficava sempre...

Conservo a lembrança de um universo de serenidade, de suavidade acolhedora e segurança, sobretudo segurança. Era como se aquela casa estivesse ao abrigo de toda e qualquer ameaça, como se o vendaval, a chuva, os lances dolorosos da vida ficassem à porta, passassem ao largo. Era um perfeito porto de abrigo, a vida controlada, só marés cheias, brisa de feição, um cantinho onde nos apetece enrolar e ficar. E eu ficava, ficava sempre...

Do Chico futebolista não me lembro, apenas ouvi elogiosas referências às suas qualidades de extremo-direito. Mais ouvi que era dotado para todos os desportos. No Central, eterno Central, situo o Chico campeão de bilhar de dimensão quase mítica, reforçada pela raridade das suas exibições. Vi-o jogar algumas vezes, poucas, momentos fugazes, parêntesis de meio da tarde, entre a bica e a lota. Ficou-me a imagem da facilidade, o jeito simples e solto, o gesto certeiro de quem sabe, de quem joga como respira, com a naturalidade dos eleitos. E conservei na retina o pormenor do estilo, o taco que deslizava no interior do arco formado pelo indicador com o polegar enquanto, sobre a mesa, apoiava o mínimo afastado do anelar. Este e o médio constituíam o suporte do braço. Era o estilo do Chico, nunca vi outros dedos assim colocados...

Continuo a vê-lo com o casacão escocês de cotoveleiras de cabedal, o sorriso caloroso e discretamente malicioso, certa timidez simpática.

Depois saía a caminho da lota onde foi figura destacada, símbolo de uma profissão e de uma época. Foi um homem sério, trabalhador e generoso. O Chico tinha um dom, um toque mágico, daqueles que as fadas põem em certos berços, tinha uma classe natural, uma aura maravilhosa, verdadeiro encanto. E era um bonito homem, não era, Maria Eugénia?

Revejo a azáfama da lota às onze da noite, o luar de Verão, e o Chico, vindo da praia, com o seu ar desportivo, a chegar à esplanada do Zé Filipe, a beijar a Maria Eugénia que esperou por ele horas a fio, uma vida quase inteira. Diz-se que as pessoas felizes não têm história, mas o Chico e a Maria Eugénia tiveram uma bela história de amor, formaram um casal maravilhoso, eternamente enamorados. Disse Paul Valéry que morre cedo quem os deuses amam, diz-se tanta coisa, mas tudo está por dizer, da vida, da morte, do porquê das coisas, do sentido da existência.

A imagem do Chico continua a evocar verões eternos, com a lota à beira da fortaleza, as esplanadas do Central e do Filipe, a exuberância da Isabel e o fulgor do Pepita, a magia de um tempo bonito, traineiras e gaivotas, o Chanoca, o Chagas, o Benjamim, o Zé Ângelo e o Mário Martelo.

Revejo o Chico remando no “Bambino” minúsculo e arredondado, na praia do tio Abel, com a Ema e o Graciano, a caminho da jangada. Revê-lo-ei sempre com o casacão escocês, com aquele sorriso insinuante e bom. E quando vou lá a casa, ainda fico, fico sempre. Como o Chico ficou em nós...

1996

sexta-feira, 3 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 61

Ninguém escreve ao coronel*

António Cagica Rapaz

Há pouco tempo, o nosso director escreveu no seu editorial que gostaria de receber mais cartas de leitores, com ideias, sugestões, críticas, pareceres, opiniões, enfim, tudo quanto possa ajudar a sentir, perceber, avaliar o impacte do jornal, podendo essas reacções auxiliá-lo numa orientação mais ao gosto do público, pró forma a melhor corresponder às suas expectativas e preferências.

Fez-me essa mensagem pensar num dos livros desse admirável escritor que é Gabriel Garcia Marquez, “Ninguém escreve ao coronel”.

Com efeito, o nosso director é coronel, reformado, mas coronel, sim senhor. Não é verdade que ninguém lhe escreva, pois ele recebe algumas cartas, mas, para tirar o máximo partido da situação, levo a coisa a um ponto extremo e decreto que ninguém escreve ao coronel. Desta forma posso apropriar-me, fugaz e inocentemente, de um belíssimo título de crónica, através de uma usurpação pontual que, afinal, constitui uma pequena homenagem ao autor de “Cem anos de solidão” e, sobretudo, dessa maravilha que é “O amor nos tempos de cólera”. Aproveito a deixa do nosso director, tenho um título bonito, só me falta o resto, o mais difícil, dar corpo ao conceito, compor o ramalhete, levar a carta a Garcia, ou seja, construir uma historieta. Ninguém escreve ao coronel, e então? Que enredo vou eu arranjar a partir daqui, não me dirão? Confesso que não sei. No momento exacto em que escrevo estas palavras não sei, só sei que o título é interessante e gostaria de o aproveitar. Para não acontecer o que se passou com outro título que um dia me veio à cabeça e que nunca cheguei a utilizar. Lembrei-me, assim, sei lá como, de “Aqui jazz”, referência melancólica, mesmo fúnebre, a melodias lânguidas que morrem de madrugadas em salas cheias de fumo, de álcool e solidão. Tal como agora, precisava de arranjar uma trama, uma história para justificar e ilustrar aquele belo título. Deixei para depois, esperei que a inspiração viesse e, um belo dia, vi o “meu” título no “Independente”, encimando uma homenagem a um músico de jazz que morrera. Paciência, acontece, nestas coisas é preciso cuidado.

Em 1971, tive a honra de manter uma rubrica de tonalidade desportiva, no “Diário de Lisboa”. Era o “Livre e Directo”, título sugestivo, com um trocadilho interessante, uma boa ideia, um achado. Um dia, discordei dos métodos pouco ortodoxos do responsável pela secção, e bati com a porta. Volvidos anos, descobri o meu título numa rubrica da Antena 1. Escrevi, pacatamente, com fotocópia de artigos a comprovar a paternidade, e pedi uma explicação. Não me responderam. Mais tarde, há pouco tempo, repeti a tentativa. Silêncio total. E a rubrica lá continua, às 6.ªs feiras. O apresentador, que se chama Costa Martins, terá, porventura, tido a mesma inspiração que eu, não sei. É possível, as palavras já existiam, não me pertencem, mas é legítimo ter alguma dúvida que o silêncio suspeito reforça. Enfim, eles lá saberão…

Por esta e por muitas outras, não deixo fugir a oportunidade que o nosso director, involuntariamente, me proporciona. O pior é que continuo sem encontrar o fio condutor e já não me fio muito na imaginação que os anos vão consumindo. Agora que comecei, tenho de ir em frente, como aqueles bravos nadadores que se lançavam da jangada, aproavam à doca, rumavam às Américas para, afinal, acabarem por dar meia volta e por ficar ao sol até arranjarem boleia de barco até à praia do tio Abel. Assim estou eu, todo catita por ter encontrado um pretexto hábil para utilizar o título do bom do Gabriel para acabar aqui a nadar em seco, sem saber como safar a machucha.

Como gosto de trocadilhos, e mais ainda do Garcia Marquez, saltou-me aos olhos o apelo do coronel-director. O seu SOS não me surpreende porque, de facto, as pessoas escrevem cada vez menos. Antigamente, sim, a prática epistolar era intensa, com o ritual do «espero que esta te vá encontrar de boa saúde que nós por cá todos menos mal, graças a Deus». Já não falo nas “cartas de amor”, pedaços de dor, sentidas de alguém”, na voz suave do Alberto Ribeiro.

O telefone, fixo e portátil (sobretudo o sublime e inefável telemóvel) matou a escrita, fez da carta letra morta. Olhem, esta é boa, “fez da carta letra morta”. Cá está o género de frase que ninguém diria ao telefone, é obra que só sai quando se escreve.

O telefone não só mata a escrita como faz definhar o discurso, fomenta a banalidade, cria hábitos de linguagem descuidada, popularucha, feia, até.

Não resisto a uma bicada mordaz no telemóvel, instrumento que tem real utilidade, a espaços, em certas circunstâncias, mas que se tornou um símbolo de piroseira, vaidade ranhosa e saloia. Convém levar o telemóvel na alcofa da praça porque, por vezes, é preciso tomar decisões de alto risco, como seja escolher entre as sardinhas do Júlio Galgão, o espadarte do Álvaro e os canivetes do Bacalhau. Nesses (ou noutros de similar gravidade) é conveniente consultar o marido, a filha, a sogra, enfim, o agremiado familiar em peso. Mas, mais que tudo, é preciso sacar do telemóvel, assumir um ar importante, gesticular a preceito para dar ideia do tamanho das sardinhas, rematar a conferência com vigor e autoridade, baixar a voz e a antena, meter o instrumento na alcofa e acabar por comprar duas postas de maruca congelada…

O telemóvel dá-nos a sensação de salvadores da pátria, de pessoas sobre cujos ombros repousa toda a responsabilidade do Mundo. Não podemos estar um segundo sequer incontactáveis, não podemos meter a viola no saco, ou seja, esquecer o aparelho algures, temos de estar sempre a postos, não vá o Clinton ligar-nos para sermos testemunha da sua indiferença perante as mulheres. Ou o secretário geral da ONU pedir a nossa opinião sobre as sanções ao Iraque. Que será do Mundo se dele nos alhearmos um minuto que seja? Por isso, é vê-los de telemóvel à cintura, quais pistoleiros do Far-West, prontos a disparar o discurso, a vociferar espalhafatosamente, na tomada das decisões que, ali junto à Fortaleza, podem mudar o rumo da História. E a angústia do telemóvel que não toca, já pensaram nisso? É um vexame, é uma vergonha, se ninguém nos liga. Quando o telefone toca dizemos a frase, mesmo se não for o senhor Joaquim Pedro, respiramos de alívio, sentimo-nos de novo importantes e realizados. Quando o silêncio se eterniza, quando as pessoas olham com um sorriso pérfido, de soslaio, o nosso aparelho inútil, mudamo-lo de mão, disfarçamos, quereríamos deitá-lo ao mar, mas se andamos com ele é para ser visto. É um drama, podem crer.

Por fim, em desespero de causa, ligamos nós, nem que seja para as informações. Ou fingimos que nos ligaram, falamos para o boneco. Mas sempre com o gestozinho a condizer…

Com tudo isto, quem sofre é a escrita, e o carteiro só não anda com a mala mais vazia porque distribui abundantemente as Caras, as Marias e outras revistas de elevado teor intelectual que fazem as delícias de gente ociosa e pouco propensa a reflexões metafísicas. Ora quem lê estas coisas, vê televisão a metro e fala demoradamente ao telefone, não escreve. Por isso, não surpreende o apelo do nosso coronel. E é pena que assim seja, não por ele, mas por todos nós, leitores (eu também sou leitor), a quem faria bem escrever, dar sinal, reagir, intervir, sair da passividade da leitura do jornal para uma atitude participativa. Por isso, junto a minha palavra à do nosso director e exorto-vos a que escrevam ao coronel. Por todas as razões e também porque ele é simpático e Giro, não é um militarão de má catadura.

Eu, às vezes, escrevo ao Coronel Barreto, embora não o conheça. Ou melhor, escrevo à minha tia Lucinda que mora na rua Coronel Barreto, personalidade de méritos indiscutíveis, com certeza, mas que ninguém sabe quem foi nem o que fez. Talvez não fosse má ideia darem às ruas nomes de pessoas que têm, de facto, a ver com Sesimbra. A verdade, é que aquela rua, por mais coronéis que lhe chamem, por mais Barretos que lhe enfiem, será sempre a rua da Lucinda. E não seria mais bonito?

Se me permite, meu coronel, retiro-me, missão cumprida…

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* Publicado em O Sesimbrense de Abril de 1998.