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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 23

Lisboa dos sete calinas

António Cagica Rapaz

A noite caíra, sem qualquer empurrão suspeito, na grande área de Lisboa, com o Tejo a espreguiçar-se até Cascais, os carros no vaivém da Ponte e os sete calinas a prepararem-se para ir à vida. O mais novo acordara os outros e todos tomaram um banho sumário, havendo a registar que só um não utilizou o sabonete Lix. Seis de cada sete calinas usam Lix, o sabonete das estrelas da noite lisboeta.

Os calinas são primos dos califas e sete como os pecados capitais (normal, para quem vive e actua em Lisboa), sete como os dias da semana, as partidas do Mundo e os mercenários da coboiada.

O Ildefonso Refractário afivelou o cinto de crocodilo manhoso, ajustou a camisa às riscas (onde se destacava uma gravata de seda com flores) e vestiu o casaco aos quadrados, lenço vermelho na algibeira e inglema do Benfica na lapela. Antes de sair, deitou uma vista de olhos ao jornal que a vizinha Manuela enfiara por baixo da porta. É Verão, o defeso assentou arraiais, é tempo de ler anúncios.

O dedo indicador deteve-se num recanto onde aparecia uma inserção designada Lista Desclassificada que mostrava os complementos de guarda. Lá figuravam chuva, fatos, fios, fiscal, florestal, freio, jóias, livros, marinha, napos, redes e republicana. Sublinhou dois e virou a página…

Enquanto o Alfredo Candongueiro aparava a ponta dos bigodes e o Raul Canhoto cuspia na biqueira dos sapatos de verniz, o Ildefonso detinha-se num anúncio que rezava assim: “Empresário jugoslavo de férias no Algarve tem ainda disponíveis quatro elementos em excelente estado de conservação – VIGARICH, armador de jogo, MATOBICH, ponta de lança, ATAVIC, guarda-redes e KAXOTELICH, ponta esquerda. Enviar propostas a TIANIC – Loulé”.

Como o primo da cunhada do seu vizinho do quarto dianteiro é adjunto do assessor do treinador do Lisboa A7, o Afonso Maurício começou logo a calcular percentagens com uma máquina gamada num supermercado “Pão com azeitonas”.

Os calinas tinham por hábito descer a escada à hora da novela brasileira, quando o silêncio reina no prédio e as ruas ficam desertas. Mas nessa noite já o genérico estava no ar e o Ildefonso nada de dar ordem de saída. O Chico Apolo desligou o receptor e dirigia-se para a porta quando o Ildefonso o deteve, num gesto brusco. O grupo reuniu-se à volta dele para soletrar a seguinte oferta: “ AOS CLUBES APOSTADOS NA EUROPA – Não sou brasileiro, nem jugoslavo, mas português; não tenho joanetes, nem bicos de papagaio; não bebo, não fumo, não frequento lupanares, bares, cafés, pubs, drugstores, sociedades de recreio, filarmónicas, filantrópicas, casinos nem outros antros de perdição. Deito-me antes das 22 horas, não tenho bigode nem cabelo encaracolado à força, não exibo camisas berrantes, não acelero em carros espalhafatosos, não sustento mamonas e, como não bebo, é-me fácil dar o litro. Não me drogo e chuto com os dois pés. Sou dinheiro em caixa, se não como goleador, pelo menos como peça de museu. Respostas ao desapartado 10 A”.

O Diogo Bombeiro um dia largou uma andorinha na loja da Maria Antónia que a obrigou a perfumar a casa com alecrim. De outra vez, no Parque, levantou quatro filas. Às tantas, começou a queixar-se da barriga e já estava a causar pânico quando o Ildefonso deu um salto na cadeira. Tinha ali a melhor do ano. O Rafael Charuto arregalou o olho guloso e leu com crescente entusiasmo a oferta invulgar: “Tenho os dedos finos, longos e ágeis, as unhas arredondadas, cuidadas, envernizadas. Deliro com os contactos humanos, anseio pelo ambiente viril dos balneários onde evoluem na sua nudez máscula atletas de perfil grego; não receio os apertos nas bichas nem no metropolitano em horas de muita ponta; não refilo quando me beliscam e garanto que suportaria com donaire as cargas de avançados machões; tenho braços esbeltos e sólidos, nunca apanhei raios infravermelhos nem ondas curtas no rádio, apenas levei no cúbito; não uso brinco mas brinco com usos obsoletos e costumes aburguesados; adoro os direitos dos homens, gosto deles livres, directos, atrevidos, desinibidos e assumidos; quando me sinto numa boa, agarro com as duas mãos. Se acreditam que posso dar um bom guarda-redes, escrevam ao Zázá Doçura – Beco dos Requebros Meigos – Lisboa, boa, boa”.

O Ildefonso rapou da esferográfica e sublinhou repetidamente. Com outro gesto senhorial reuniu o grupo. Em silêncio trocaram beijos nas faces bem barbeadas, apertaram-se nos braços vigorosos e, um a um, saíram escada abaixo, rua fora, noite adentro. Começava a vida na estranha Lisboa dos sete calinas…

Preito ao bom malandro do Mário Zambujal…

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 21

O homem das Arábias

António Cagica Rapaz

O Boeing 747 aterrou na Portela ao cair da noite, depois de sobrevoar a ponte sobre o Tejo onde os carros se cruzavam como formigas ou pirilampos, contra o relógio e a favor da telenovela.

Os secretários particulares do Xeque trataram das formalidades aduaneiras, e as dezoito malas de Sua Alteza foram de imediato metidas numa carrinha que as levou para o hotel Ritz onde duas suites esperavam a comitiva.

O Rolls cinzento metalizado arrancou suavemente, deixou para trás a Rotunda do Relógio e misturou-se com os outros carros na avenida do Brasil. Sua Alteza o Xeque Ali Aulad honrava Lisboa com a sua presença…

O Xeque tinha as malas em forma de barril, a sua estatura era normal e a gordura super. Ali Aulad fazia acompanhar pelo primo Ben Gala, também ele descendente do venerando emir Al Fayate, irmão do todo poderoso Al Manak.

A notícia da chegada do homem das Arábias fora abundantemente divulgada por todos os órgãos de informação. A televisão instalara todo o material necessário e mobilizara uma equipa de reportagem para transmitir em directo a chegada da eminente personalidade. Entre sorrisos e salamaleques, o Xeque Ali Aulad (via intérprete) declarou que a sua estada entre nós significava para ele um regresso às origens e que tencionava efectuar uma peregrinação a lugares de grande significado histórico e simbólico como Al Piarça, Al Kântara, Al Bufeira e Ben Fika. Em seguida, confirmou o ambicioso projecto de constituir uma sociedade de responsabilidade incalculável destinada à exploração paralela e simultânea do turismo e do futebol, a FUTOTEL.

O seu grande sonho era possuir uma poderosa equipa de futebol capaz de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Por diversas razões, a importação de vedetas em declínio acabara por se revelar desastrosa, sobretudo pelas dificuldades de adaptação ao clima e ao modo de vida. Arábia só dita porque vista e vivida é uma aflição, admitiu o Xeque. Por isso, em vez de aliciar jogadores para torrarem ao sol do deserto, resolveu trazer os petrodólares e fundar uma equipa na Europa, visto que uma formação no Médio Oriente jamais poderia ser campeã europeia, por óbvias razões de ordem geográfica que não escaparam à perspicaz análise de Ali Aulad.

A escolha do nosso País para berço dessa organização e sede do Clube, deveu-se aos laços de sangue existentes entre os dois povos e ao fascínio que Portugal sempre exerceu sobre ele. E mais não se dignou dizer Sua Alteza que, após profunda reverência, se retirou para os sumptuosos aposentos a fim de efectuar a sua oração da noite, virado para a Aldeia do Meco…

No dia seguinte, todos os jornais desportivos apresentavam um anúncio de página inteira que rebentou como uma bomba no meio futebolístico português. O Xeque Ali Aulad propunha-se comprar, perdão, contratar a qualquer preço trinta jogadores, três treinadores, três secretários técnicos, três preparadores físicos e três massagistas, os melhores do mercado, dando-se alguma preferência aos que tivessem nomes de consonância árabe. Sabendo que, fatalmente, todos estariam já ligados por contrato a clubes portugueses, Ali Aulad proponha-se pagar quanto fosse preciso para obter as necessárias desvinculações. Assim se lançava uma operação diabólica de consequências delirantes…

No próprio dia, o hall do Ritz enchia-se de caras conhecidas, jogadores, dirigentes, treinadores, massagistas e endireitas vindos dos quatro cantos do país. Os campos ficaram desertos, ninguém apareceu aos treinos, o futebol português parou, ficou suspenso de uma decisão, de um gesto magnânimo, de um cheque do Xeque.

Os secretários particulares de Sua Alteza convidaram quatro jornalistas da especialidade para constituírem um júri para apreciar as credenciais dos candidatos. Começaram a mover-se influências, cunhas, pedidos, súplicas, um inferno, um atropelo de Al Binos, Al Meidas; Al Banos, Al Fredos, Al Ves, Ben Tos, Al Hinhos, Al Bertos e até um certo Al Iveira que garantia ser craque de respeito. Alguém afiançava que o treinador ideal seria Al Lison, quando fez uma entrada tumultuosa um tal Mourinho que gritava histericamente, que ninguém merecia mais do que ele, porque era mouro, mais que mouro, Mourinho. Poderia ser treinador, mas se fosse preciso ainda fazia uma perninha como guarda-redes, sendo homem para se prestar a vários papéis. Ninguém ficou surpreendido…

O hall do hotel mais parecia a Bolsa, com os valores em órbita, acções em alta e outras em queda, vertiginosa e desesperadamente. Choviam propostas, respostas, contrapropostas e promessas. Jogadores que ganhavam trinta contos por mês já se viam a auferir trezentos, e os desta escala multiplicavam por vinte. Era a caverna do Ali Bábá, só que os ladrões eram muito mais de quarenta.

Do Porto chegou, radiante, Ali Queta que veio descobrir o primo Ali Kate que julgava desaparecido, enferrujado. Estava-se em pleno delírio, quando o craque Al Bino arregalou os olhos. Seria possível? Estaria a sonhar? Seria miragem? Antes que a visão se esfumasse, já a futura estrela petrolífera se apressava a assinar o contrato, sofregamente, sem ler, de cruz, embriagado pelas palavras, deslumbrado, sem se aperceber das areias movediças do documento. Á saída, o ambiente era o mesmo do átrio de um liceu em dia de exames, com a euforia dos aprovados e a tristeza dos chumbados. Os novos ricos da bola desceram ao Fontória e ao Nina, e festejaram o acontecimento com champanhe que lhes soube a petróleo.

Quando, no dia seguinte, acordaram, o sol golpeou-lhes os olhos, o barulho do eléctrico bombardeou-lhes os ouvidos e a boca sabia-lhes a areia do deserto. E foi então que o Al Meida disse ao Al Berto. “Eh, pá, que história é essa de bater com o coirão? Os gajos disseram que a malta tem de dobrar a parada se não suarmos o coirão? Parece que não confiam na gente!”

Quando a Tina e a Dina se levantaram, os rapazes voltaram ao Ritz e pediram para falar com o secretário particular, Al Truísta. Intrigava-os aquela história do coirão porque estavam habituados a dar o litro, a ir a todas, a dar no osso, a esfarraparem-se todos e não admitiam que alguém pusesse em causa a sua entrega ao jogo. Então o Al Truísta sorriu cinicamente e disse-lhes que eles não tinham lido bem o contrato. Com efeito, eles nada tinham lido, assinaram apenas com os números e a visão das notas a bailarem-lhes diante dos olhos. Ora uma cláusula do contrato previa que todo o contratado se comprometia a saber de cor o Alcorão um mês após a assinatura do documento vinculativo. Caso o livro sagrado dos maometanos não fosse devidamente decorado, estava previsto que Sua Alteza Ali Aulad teria direito a uma indemnização por danos e perdas, morais e materiais, igual a dez vezes o valor fixado no compromisso. Só isto. E assim se concretizava uma monumental burla devidamente legalizada, um conto do vigário maior do que o Saará.

A Polícia, alertada de imediato, nada pôde fazer pois os craques haviam assinado de sua livre vontade, e as assinaturas haviam, entretanto, sido reconhecidas. Treinadores, jogadores, dirigentes e massagistas deitavam as mãos à cabeça e batiam com ela nas paredes do Ritz. Os chumbados da véspera vinham gozar o prato e houve cenas certamente chocantes. Intervieram rapidamente advogados para tentar resolver a delicada questão e abafar o escândalo que cobria de vergonha e ridículo o futebol indígena. Por fim, os secretários de Sua Alteza condescenderam e propuseram uma rescisão amigável que, ainda assim, custou a cada um, no mínimo, quinhentos contos. Os mais gulosos, os que pensavam ir ganhar fortunas, tiveram de desembolsar para cima de mil e quinhentos contos.

Sua Alteza jantou em Al Fama, passeou na Mouraria, depois recolheu ao Ritz e nunca mais foi visto. No dia seguinte, as empregadas da limpeza do hotel encontraram nas suites vários turbantes, barbas postiças e um maço de Três Vintes.
Os falsos árabes sumiram-se e ficaram os verdadeiros camelos. O recomeço dos treinos fez-se com beiço caído e risinhos irónicos…


1981