quarta-feira, 29 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 15

Laterais ao ataque

António Cagica Rapaz

O futebol português está a ser varrido por uma maré de controvérsia, flagelado por uma guerra acesa entre os principais clubes que convidam, seduzem e aliciam jogadores dos seus mais perigosos competidores, não só para se reforçarem mas também para irem lançando a confusão e a cizânia.

Um dos casos mais badalados é o do defesa-direito portista Gabriel, um homem que foi, anos a fio, titular do seu clube e da selecção nacional, um jogador em evidência pelas suas espectaculares características ofensivas que fazem dele mais um avançado do que um defesa.

E porque se falou no F.C.Porto, vem-me ao espírito a imagem do pujante Virgílio, o lateral-direito por excelência, vigoroso, generoso, leão de Génova e das Antas. Também ele, como Gabriel, foi dono e senhor da camisola 2 da equipa das quinas, um degrau abaixo de Pedroto, no mesmo corredor direito onde armava jogo o maestro e capitão da nossa selecção. Natural do Entroncamento, Virgílio não terá sido um fenómeno nem um fora de série no aspecto técnico. Aliás, o Porto não precisava de tanto pois, para ir à linha centrar para a cabeça demolidora do Jaburu, lá estava o serpenteante Carlos Duarte, um malabarista fulgurante que formava asa com Hernâni, esse inesquecível e talentoso futebolista, dos maiores de sempre do nosso País e que não recearia o confronto com qualquer das vedetas de hoje. A menos teria o bigode, mas sobrar-lhe-ia classe, fibra e génio criador…

No princípio dos anos 60, começaram a surgir os laterais ofensivos, homens que não se contentavam em defender, antes abalavam campo fora. Se não me engano, um dos primeiros foi Gualter que deu nas vistas em Guimarães e acabou prematuramente nas Antas. Antes, porém, houve em Setúbal um esboço de inovação, através das exibições cristalinas de um compadre alentejano chamado Polido, belo executante que brilhou ao lado de jogadores de alta craveira técnica como foram Emídio Graça e o fininho Vaz. No mesmo Vitória dispôs, mais tarde, Pedroto de três laterais desenvoltos (Conceição, Carriço e Rebelo) que transformavam lances defensivos em ataques envolventes, com a cumplicidade e a arte de José Maria, Tomé ou Jacinto João.

Assim foi crescendo a luta das classes lateralizadas onde havia duas escolas opostas. Uma, conservadora, a dos defesas de raiz que preferiam desarmar, cortar, dobrar, interceptar e deixar para outrem a tarefa ofensiva. Outra, moderna, nova raça de laterais que entendiam ser o ataque a melhor defesa, jogando atirados para a frente, saindo das linhas atrasadas de bola no pé e cabeça levantada. O exemplo clássico dos conservadores é o meu amigo Hilário da Conceição, um magnífico defesa-esquerdo, de estatura mundial, dos poucos a quem Garrincha não trocou os olhos nem fez morder o pó. Se Eusébio foi o mais fulgurante dos Magriços, Hilário foi o mais regular, com um padrão elevado de exibições, seguro, maduro, impecável, sem quebras nem hiatos. Mas Hilário não era, propriamente, um homem de ataque e contentava-se em passar a bola ou cruzar (com o pé direito) para o barulho. Por isso, na ponta final da sua brilhante carreira, conheceu as atribulações de um duelo de pergaminhos com um rival da nova escola, o benfiquista Adolfo, de crinas ao vento e um pé esquerdo desinibido, ou não fosse ele um antigo extremo.

O arquétipo do lateral atacante era o famoso italiano Giacinto Fachetti que, em duas passadas, galgava até à área do adversário, lançando o pânico e semeando a perturbação. Não era um primor de técnica, mas tinha umas pernas intermináveis, era eficaz, jogava bem de cabeça e aparecia a rematar. Mais perfeito tecnicamente, mas mais comedido nos avanços, era o alemão Schnellinger, futebolista do mais fino recorte, dos melhores do Mundo, de sempre.

Na CUF, tínhamos um dos bons valores com que o futebol português contou durante muitos anos. Refiro-me ao excelente, ao pendular Francisco Lourenço Ramalho Abalroado, um senhor defesa à antiga, dificílimo de passar, muito rápido, óptima colocação e muita ratice. Atacar não era o seu forte, embora, às vezes, desse o seu saltinho lá à frente. Preferia o nosso Chico a sobriedade e a segurança, entregando de pronto a bolinha no pé esquerdo mágico do Emídio Simões Úria, cinquenta e quatro quilos de raro engenho, talento puro e pólvora na bota franzina.

O Abalroado tem um nome de conotação bélica, daqueles que ficam no ouvido, como Lança, Atraca ou Fragateiro. Talvez por isso, chegou a ter a injusta fama de violento, quando afinal foi sempre correcto. Rijo, abnegado, leal, sentindo a camisola, encorajando os companheiros, o Chico Abalroado nunca foi famoso, mas jogou muitas épocas no escalão maior, sempre titular, sempre em bom plano.

O futebol é cada vez mais polivalência, inspiração e pulmão para correr o campo todo, abaixo, acima, em acordeão, em carrossel, em maratona, sem rigidez táctica nem estatismo suicida. Os laterais (tal como os centrais, aliás) têm de ser os homens do relançamento do jogo, o primeiro compasso do movimento ofensivo, efectuado o desarme ou recebida a bola do guarda-redes. Um lateral como o brasileiro Júnior é defesa, médio, avançado, é um recital de futebol.

É próprio dos laterais abalarem campo fora e voltarem atrás, como eu volto agora ao princípio da crónica, para imaginar que o Gabriel, durante anos nas Antas e tão habituado a avançar, é bem capaz de não travar na linha de cabeceira e só parar em Alvalade, correndo como se fosse um extremo, segundo a expressão imortalizada pelo lendário Nuno Brás do alto do seu laço janota.

E não é impossível que, nesta guerra cruzada entre os mais poderosos, surjam situações curiosas pois todos sabemos que os extremos trocam-se

1983

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