quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 19

Fado

António Cagica Rapaz

O sol entra tarde na estreita rua da Esperança onde as manhãs frescas trazem consigo um cheirinho a maresia. Na taberna do Manel o fado substitui o sol preguiçoso, e o Toni de Matos canta os amores difíceis da Maria do Céu (que nasceu e cresceu na Madragoa) com o Chico que mais ama o mar do que o Céu da Maria.

Enquanto a tia Lucília pendura a gaiola dos canários à porta, os miúdos partem para a escola, assobiando, e o Tonecas, ainda a mastigar o papo-seco matinal, dirige-se para a oficina do sô Silva, bate-chapa e retoques na pintura. É uma manhã de Lisboa…

À hora de almoço, o Tonecas corre para casa onde a mãe já fritou os carapaus. A rua adquire a sua animação habitual, com as vizinhas em diálogos cruzados de janela a janela, entre duas camisas penduradas. Na taberna do Manel é ainda o fado, quente e aristocrático, de Maria Teresa de Noronha, até ao noticiário da uma, na Emissora.

Depois de comer, o Tonecas mete duas tangerinas nas algibeiras largas do fato-macaco e vai sentar-se ao sol, no passeio, em frente da casa da Mariana. É um namora discreto, quase envergonhado…

Quando a noite começa a cair sobre Lisboa, a luz da tasca do Manel recorta-se nas pedras da rua e ouve-se a voz do Carlos Ramos pedindo a alguém para não vir tarde.

A vida decorria tranquila e rotineira quando, um dia, na taberna do Manel, à hora do vinho e à luz de um fado do Tristão da Silva, o sôr Alfredo (sócio dos Águias da Luz e conhecedor em coisas de bola) se abeira do Tonecas e o convida para um treino, à experiência, com os craques do seu glorioso clube. O Tonecas olha-o, surpreendido e intimidado, incrédulo e desconfiado. Ele num treino com as vedetas do futebol?! E então? – replica o sôr Alfredo que o observara dias a fio, à hora do almoço, após o paleio e o galanteio. Jeito não faltava ao Tonecas, disso ninguém duvidava, só ele próprio descria. O sôr Alfredo insiste, afiança, garante, aposta, seguro da sua experiência e do seu faro infalível.

O Tonecas, de garrafa na mão e cabeça à roda, passa diante da casa da Mariana sem dar os dois habituais toques na vidraça, mais em jeito do que em ousadia…

Enquanto come o feijão com arroz e o pão com chouriço, vai imaginando, através da garrafa mágica de tinto da quartola do Manel, o que irá ser o treino com os ídolos da sua juventude. Até aqui o futebol tem sido a sua grande e única paixão, mas uma adoração distante, marcada pela timidez e pela modéstia de filho de um embarcadiço que se esqueceu de regressar, e pelas nódoas de óleo no fato-macaco de bate-chapa de bairro.

Depois de jantar, vai dar uma volta, desce à beira do Tejo e contempla os horizontes que a eventualidade imprecisa de um treino já traça no seu espírito alterado. Depois de beber um bagaço arrojado ao balcão do Manel, e mais tarde do que o costume, volta a casa onde a mãe ficara a ouvir o teatro da Emissora.

Mal adormece e já se vê de camisola vermelha, correndo, driblando, marcando golos no estádio vazio onde só o sôr Alfredo e meia dúzia de adeptos ferrenhos aplaudem com entusiasmo. No final do treino, os craques felicitam-no, antes do melhor duche da sua vida. Sorri e regala-se sob a água quente, sente-se um herói. A mão treme-lhe ao desenhar o risco ao lado nos cabelos molhados que descem sobre um rosto iluminado por um sorriso resplendente. Dois directores esperam-no ao lado do sôr Alfredo e, ali mesmo, fica combinado um jantar no fim do qual, entre o charuto e o uísque, ele assina o contrato. No seu devaneio onírico, o Toneca vê-se ao volante de um carro descapotável como nunca entrara na oficina do sô Silva, tendo ao lado uma loiraça bem diferente da doce mas modesta Mariana. Num apartamento moderno, para as bandas de Benfica, anda numa roda viva, sem tempo para uma saltada à rua da Esperança nem memória para a mãe, os amigos ou a Mariana. Esqueceu o fado, as guitarras vibrantes e o tinto do Manel, tendo passado a frequentar cabarés duvidosos, com música ruidosa, mulheres espampanantes e champanhe de segunda.

Até que dá por si a esbanjar dinheiro e saúde, afastado da equipa, desterrado para divisões secundárias, no soturno esquecimento de tabernas tristes, sem fado nem amigos. Vê a sua pobre mãe envelhecida e prostrada, Mariana resignada e infeliz, casada com outro, enquanto o sô Silva trespassa a oficina.

Ao acordar, salta vigorosamente da cama, aperta nos braços e beija repetidamente a mãe surpreendida, e corre a casa da Mariana. Grita-lhe que quer casar com ela e, ao chegar ao trabalho, exige que o sô Silva lhe garanta que nunca há-de trespassar a oficina. Nesse dia há mais fado no ar, o sol brilha com mais fulgor na rua da Esperança, o Tonecas faz malabarismos com a bola de borracha, depois do almoço, no meio da rua, e é levado em ombros pelos colegas, contagiados pela sua alegria.

E tudo isto para grande espanto do sôr Alfredo que continua sem perceber por que motivo o Tonecas não quer ir ao treino e se recusa a ouvir os prognósticos doirados sobre o seu futuro de vedeta dos Águias da Luz…

PS – O Tonecas e a Mariana casaram, tiveram muitos meninos e foram muito, muito felizes.

Sem comentários:

Enviar um comentário