segunda-feira, 3 de outubro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 71

Helder

António Cagica Rapaz

- Dona Cremilde, marque um quarto d’ hora...

Invariavelmente, absorvida pelos cafés e pelas sandes, quando a dona Cremilde se lembrava do bilhar já lá ia meia hora.

Candidamente, nós esquecíamo-nos de perguntar, naturalmente. Era no velho Ribamar, ainda e só café, muito antes de ser o restaurante mais emblemático de Sesimbra.

Não era fácil ser filho do Chagas, poeta da noite, mais sonhador que comerciante, paixão e orgulho ao leme do seu Ribamar onde se cantava o fado e de onde saia o arquinho e balão.

O Hélder cresceu a ver o pai puxar pelo Ribamar, encher Sesimbra de festa, deliciar-se ao microfone, viver em frenesim.

O pai Chagas foi um homem dinâmico e inovador que soube transmitir ao Hélder a vontade de lutar, de progredir na profissão, sem esquecer os prazeres da vida, entre eles a música. Ou não tivesse ele próprio tido uma bela voz...

O aparecimento dos Beatles despertou no Hélder o desejo de fazer música a sério e assim nasceram os Zambras. Foi um período maravilhoso, anos sessenta, com alegria, entusiasmo, num universo de boa camaradagem, cumplicidade e entreajuda, desde o pai Chagas até ao mestre Henrique Sineiro que foi patrocinador, motorista, apoiante da primeira hora e, sobretudo, um grande amigo.

Um acidente de viação frustrou-lhe os planos de entrada na Força Aérea e obrigou o Hélder a enfrentar mais cedo do que previra a vida real. Foi o início da epopeia...

Primeiro, ficou à frente do Ribamar, quatro anos de luta que culminaram com a abertura do Pedra Alta, de sociedade. Depois, foi o novo Ribamar, na marginal, bem de frente para o oceano. Mais tarde, seria a vez do Angelus, em Santana, casa aberta por um antigo empregado do velho Ribamar, nos anos cinquenta, marés da vida.

A carreira profissional do Hélder Chagas é notável, determinação, rigor, bom gosto, simpatia, exigência, qualidade, tudo quanto explica que o seu Ribamar seja um dos 100 melhores restaurantes de Portugal.

Mas o mais valioso é que o Hélder soube fazer-se Homem sem vender a alma por dinheiro, sem esquecer a poesia nem os valores essenciais da vida, os afectos, a dignidade, as raízes. Continua a ter o mesmo olhar bondoso, o mesmo sorriso bonito, certamente feliz por ter conseguido construir o que, a certa altura, decidiu ser a sua carreira, aquilo que o pai sonhou sem ter podido concretizar.

A tia Cremilde continua a cozinhar para o Hélder que, sempre que pode, vai comer com a mãe, para felicidade de ambos. Mal se adivinha nela uma pontinha de orgulho, tanta é a ternura em que envolve o menino...

2000

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