sexta-feira, 24 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 64

Anos sem solidão*
António Cagica Rapaz
«… o mesmo alarve que agora comia meio leitão ao almoço e cujos gazes faziam murchar as plantas.»
Esta frase não foi copiada de uma redacção desencantada nos arquivos do Professor Leal nem do diário de caserna de um furriel miliciano observador e minucioso. O meu tio Justino Casimiro Rosa (também, e sobretudo conhecido por Justino Come-figos) bem poderia ter redigido a sentença em questão.
O tema é dos que mais apreciava, é verdade, mas o seu vocábulo teria sido mais directo, cru e expressivo. Não, não foi ele. Trata-se de uma passagem do maravilhoso romance «Cem anos de solidão», de Gabriel Garcia Marquez que é moralmente responsável por tudo quanto vem a seguir…
Meio leitão ao almoço não conheço quem coma, mas contava-se uma história semelhante na pachorrenta e soluçante camioneta do Covas que conduzia os juniores (e não júniores, como saiu por gralha) do Desportivo por este distrito fora. Distrito que até tinha um jornal apregoado pelo Domingos Pacancas. “É o jornal Distrito de Setúbal!” gritava o bom Domingos.
Pum!,!, replicava a rapaziada brincalhona, sabendo que ele afinava.
Este «Pum» assim evocado está muito ligado à prosa vigorosa do mestre Gabriel como vereis pelo andar desta carruagem do Covas onde se contava que o Tóninho Cebola era rapaz de boa embocadura.
Algures, entre Coina a Velha e o Barreiro, dizia-se que o pai o levou um dia a uma caldeirada de homens, justificando que o seu Tóninho era de pouco alimento. Ora, segundo se constou, o belo Tóninho não se cansava de gabar as canejas que estavam uma maravilha, que nunca vira canejas assim…
E, ao mesmo tempo, ia enchendo o prato de fígado de tamboril.
Enquanto os outros iam falando, o Tóninho limpou a caldeirada quase toda! E o que vale é que o meu Tóninho é de pouco alimento, como dizia o pai Cebola. Só não comeu o tacho porque tinha asas e voou antes do Tóninho lhe deitar a unha. Desta e de outras histórias se lembra o Leão enquanto vai assando frangos maiores do que os do Eduardo. Só que o Eduardo os dava em casa e fora enquanto o Leão os vende. Em casa e na rua, sempre sorridente, sempre bem disposto, este Leão, rei do Canino…
O Saricoté tocava gaita de beiços, o Tóninho lambia os beiços, o António José Pereira contava anedotas e o Vitinha explicava que deixara entrar a bola por cima da cabeça (e foi golo, claro), sem meter a mão… para não ser penalty. Ah, leão!!! És tu, não és?!!!
Isto hoje não vai lá muito em maré de poesia nem romantismo, não me chegou o rumor brando da folhagem nem a melancolia das longas tardes pálidas…
Mas é assim, deu-me para aqui, embora não ceda à vertigem do impudor nem da grosseria, passíveis de cartão amarelo, no mínimo.
A culpa é do Gabriel Garcia Marquez e de quem me ofereceu os «Cem anos de solidão». Francamente, eu não sou destas coisas, mas aquela dos gases e a dos «arrotos bestiais à mesa» (é verdade, página 79, pela minha saúde), caíram-me no goto, não sei, arrastaram-me para esta pouca vergonha que inclui cenas eventualmente chocantes, bem contrárias à minha sensibilidade delicada e às recomendações e mandamentos do catecismo.
Não que eu tenha renunciado às coisas belas, aos sentimentos nobres, às pieguices ocasionais, mas a vida não é só lirismo e crepúsculos suaves.
Às vezes há concertos de harpa e dança, «darpeidança», como dizia o tio Nuno com a sua maravilhosa e desassombrada malícia…
Claro, as convenções sociais, os preconceitos e a hipocrisia condenam certas manifestações espontâneas, tapamos os olhos, a boca e os ouvidos, estrangulamos outras exclamações do nosso organismo, contorcemo-nos e, sobretudo, não falamos nessas coisas que, afinal, são as que mais fazem rir. Mas só em privado, nunca no salão da marquesa onde se chama viúva à xaputa…
Porque respeito as normas, parâmetros e cânones é que nunca revelei (isto agora a propósito dos gases) que o Luís Rafael Pinto Cascais (também e sobretudo mais conhecido por Luís Papa-rebuçados) murchava as flores dos vasos da D. Beatriz, não com gases, mas com abundantes mijadelas. Não, ele não urinava nos vasos. Não, o Luís mijava nas flores, com raiva e com gozo, pela calada da manhã, de cada vez que a severa mestra lhe batia. O senhor Faustino, coveiro e jardineiro, bem procurava descobrir a causa da epidemia, mas debalde, de balde, de lupa, de gatas, nada…
Confesso que já senti vontade de dar a conhecer esta tenebrosa malvadez, mas contive-me, ao contrário do Luís. Porém, agora, volvidos 40 anos, há prescrição. Cem anos de solidão, quarenta anos, ó mijão!
Que o Luís fizesse murchar as flores através de rega ácida, é normal e compreensível. Só não consigo perceber como é que o outro (o do romance) murchava as flores expelindo gases, quando afinal nos diziam que ele vivia «sem anus de solidão»…
Estas malandrices sempre fizeram rir, mesmo se o riso for abafado como o daquelas meninas que faziam ginástica na sala ao lado da farmácia de cima, sob a orientação do velho treinador Desidério Hertzka, o tal que gritava «Zacarias, p’rá braca!».
Uma bela tarde, as meninas faziam uma flexão com um pé apoiado na trave da cadeia, e uma delas, com nome de rainha, (não insistam, não digo quem é) deixou escapulir um gás, uma ventosidade sonora que, evidentemente, provocou a risota geral e envergonhou mortalmente a rapariga. No fundo, trata-se de coisa natural, banal, só sai a quem joga, é fruta da época.
Pode sair caro como dizem que aconteceu com o Palmeirim, multado pelo polícia e que repetiu a dose por não ter trocado…
Francamente, para o que me havia de dar, vou perder o crédito todo. A Rosa Maria e a Emiliana vão ficar chocadas com esta prosa brejeira e talvez me «dezarrisquem» de primo.
Muita maluqueira fica por dizer e nem me arrisco a evocar sequer os nomes prestigiosos do Alfredo Filipe do Zé Pardal, mestres nestas cerimónias sonoras. Se o outro murchava as plantas, estes dois figurões devem ter deixado sem pinta de cor imperadores e gorazes na areia da lota. Enfim, se o Valdemar quiser ele que conte como foi que o Rogério conseguiu roubar a bola ao avançado do Ginásio de Cacilhas que vinha isolado.
Como foi que o malandro do Rogério lhe virou as costas e que gases largou para o outro desatar a rir e perder o controle da bola que o expedito guardião se apressou a agarrar.
Ele que conte se quiser, eu não sei, não vi, não estava lá. E mesmo que soubesse não dizia, porque não foi para contar cenas dessas que li a missa ao pé do padre João, que estudei latim e grego, literatura e fonética.
Que vergonha teria minha mãezinha se me visse aqui contar que o Rogério era um óptimo guarda-redes, mas não lhe dava com as mãos.
Francamente, isso são coisas para descarados como o Valdemar ou o meu primo capitão Domingos. Eu sou tímido de mais, que querem vocês?
Se o Vítor quiser que conte aquela do inglês, no Hotel do Mar, que achava que a retrete era o sítio certo para actos daquela natureza.
Se o Hélio entender ele que explique como foi que o outro levou os dedos à boca depois de ter batido com a mão na borda da barca, ao sacudir…
Eu não conto, era o que faltava, bem basta o que basta.
E, depois, disto tudo, venham cá dizer-me que é bom ler grandes escritores, gente instruída. Vejam o resultado, é só carga e malho.
Para ver se me absolvem, recordo um pedaço de prosa antiga, afiançando que «o dia nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs». Era dedicado ao tio Escuminha, não vem a propósito, mas acho bonito. E evoca o mar que abraça esta terra que amamos, onde todos nos conhecemos, onde nos cruzamos a cada esquina e onde nunca poderemos viver dias nem meses nem anos de solidão…
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*Publicado em O Sesimbrense de Maio de 1993.

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