segunda-feira, 6 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 61

Chico Cagica

António Cagica Rapaz

A mais longínqua recordação situa-se na rua Amália, ainda eu não morava na paralela rua Monteiro. Andava na escola da Rosa Manão e, num fim de tarde, fui lá a casa. Pelo tempo fora, ocasionalmente, voltei, por cima da loja do Justino das mobílias, depois na avenida e, por fim, lá em cima, junto à estrada nacional. E, de cada vez, lá ficava horas esquecidas, ao ponto de, em véspera de Natal, me ter deixado enredar nas teias luminosas de um pinheirinho que ajudei a enfeitar. Já a minha mãe andava na rua à minha procura, espavorida, quando me lembrei das horas. Em casa do Chico era assim, eu ia e ficava, ficava sempre...

Conservo a lembrança de um universo de serenidade, de suavidade acolhedora e segurança, sobretudo segurança. Era como se aquela casa estivesse ao abrigo de toda e qualquer ameaça, como se o vendaval, a chuva, os lances dolorosos da vida ficassem à porta, passassem ao largo. Era um perfeito porto de abrigo, a vida controlada, só marés cheias, brisa de feição, um cantinho onde nos apetece enrolar e ficar. E eu ficava, ficava sempre...

Do Chico futebolista não me lembro, apenas ouvi elogiosas referências às suas qualidades de extremo-direito. Mais ouvi que era dotado para todos os desportos. No Central, eterno Central, situo o Chico campeão de bilhar de dimensão quase mítica, reforçada pela raridade das suas exibições. Vi-o jogar algumas vezes, poucas, momentos fugazes, parêntesis de meio da tarde, entre a bica e a lota. Ficou-me a imagem da facilidade, o jeito simples e solto, o gesto certeiro de quem sabe, de quem joga como respira, com a naturalidade dos eleitos. E conservei na retina o pormenor do estilo, o taco que deslizava no interior do arco formado pelo indicador com o polegar enquanto, sobre a mesa, apoiava o mínimo afastado do anelar. Este e o médio constituíam o suporte do braço. Era o estilo do Chico, nunca vi outros dedos assim colocados...

Continuo a vê-lo com o casacão escocês de cotoveleiras de cabedal, o sorriso caloroso e discretamente malicioso, certa timidez simpática.

Depois saía a caminho da lota onde foi figura destacada, símbolo de uma profissão e de uma época. Foi um homem sério, trabalhador e generoso. O Chico tinha um dom, um toque mágico, daqueles que as fadas põem em certos berços, tinha uma classe natural, uma aura maravilhosa, verdadeiro encanto. E era um bonito homem, não era, Maria Eugénia?

Revejo a azáfama da lota às onze da noite, o luar de Verão, e o Chico, vindo da praia, com o seu ar desportivo, a chegar à esplanada do Zé Filipe, a beijar a Maria Eugénia que esperou por ele horas a fio, uma vida quase inteira. Diz-se que as pessoas felizes não têm história, mas o Chico e a Maria Eugénia tiveram uma bela história de amor, formaram um casal maravilhoso, eternamente enamorados. Disse Paul Valéry que morre cedo quem os deuses amam, diz-se tanta coisa, mas tudo está por dizer, da vida, da morte, do porquê das coisas, do sentido da existência.

A imagem do Chico continua a evocar verões eternos, com a lota à beira da fortaleza, as esplanadas do Central e do Filipe, a exuberância da Isabel e o fulgor do Pepita, a magia de um tempo bonito, traineiras e gaivotas, o Chanoca, o Chagas, o Benjamim, o Zé Ângelo e o Mário Martelo.

Revejo o Chico remando no “Bambino” minúsculo e arredondado, na praia do tio Abel, com a Ema e o Graciano, a caminho da jangada. Revê-lo-ei sempre com o casacão escocês, com aquele sorriso insinuante e bom. E quando vou lá a casa, ainda fico, fico sempre. Como o Chico ficou em nós...

1996

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