quarta-feira, 22 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 14

Com musas ou sem elas

António Cagica Rapaz

- Só se nasce poeta!

Foi mais ou menos isto que ouvi ao meu recente amigo Alfredo Farinha, um jornalista que admiro há muitos anos e a cuja mesa só há pouco tempo os caprichos da vida me levaram a sentar. E foi aquele axioma pronunciado beatificamente como remate de uma cavaqueira em que foram evocadas as insuficiências de treino dos rematadores portugueses.

Na opinião de Alfredo Farinha, os treinadores portugueses não consagram o tempo e a atenção que deveriam ao capítulo do remate ao golo. A mesma opinião não tem Peres Bandeira que garante insistir nesse particular.

Nos jogos, a situação é diferente, pelos nervos, pela oposição dos adversários, e, sobretudo, pela severidade do público que não perdoa uma falha.

Daqui arrancámos para uma análise que nos levou até ao campo da poesia, através da sentença de mestre Alfredo e da qual eu, modestamente, discordo…

Contrariamente ao que apressadamente alguns poderão concluir, o futebol e a poesia apresentam aspectos que se tocam, como os extremos. O nó da questão situa-se na primazia a conceder ao dom ou à técnica, ao génio criador ou ao trabalho de preparação. Eu defendo a tese de que não se fabrica um goleador, enquanto Alfredo Farinha preconizava a preparação afincada, o treino insistente, o aperfeiçoamento técnico a esse fim. Como sempre, a virtude está no meio. O treino (quem ousará contestar?) é indispensável, por maior que seja o talento do jogador. Todavia, o goleador tem de possuir o dom, o instinto, a centelha. Para Alfredo Farinha, só o poeta nasce, ou seja, o dom vem do berço, e só o poeta o traz, não o futebolista.

Ora, meu caro Alfredo Farinha, num campo como noutro as opiniões divergem. Mesmo na poesia nem todos os teorizadores concedem o primado ao dom, não sendo o poeta universalmente reconhecido como possuidor de um talento inato. É verdade que Platão assim pensava e, para ele, a criação poética era fruto da inspiração, dádiva do sonho, obra das musas. Todavia, o seu compadre Aristóteles não alinhava nessa equipa e defendia que a poesia era, antes de tudo, um produto da razão, da técnica, do trabalho lúcido, do esforço metódico. Com ele alinhou Horácio, e o exemplo mais flagrante desta linha de pensamento é um poema de Edgard Allan Poe (O Corvo), todo ele construído segundo apuradas regras de lucidez, lógica e cálculo. Hoje, Poe teria utilizado um computador…

Portanto, nem só engenho nem apenas trabalho, nem só musa nem apenas técnica. O poeta e o futebolista estão na mesma situação porque um e outro criam, produzem poemas e golos, evasão, sonho e fuga ao real circundante.

O jogador é um artista cuja exibição não pode ser garantida pelo facto de haver treinado a sério durante toda a semana. O futebolista é um homem que pode não estar inspirado naquele dia, àquela hora, no instante preciso do remate decisivo. Vinte horas de treino não garantem golos nem exibição fulgurante. Cada jogo é uma experiência diferente, não um trabalho de rotina. As condições físicas, materiais, psicológicas, variam de jogo para jogo, a tensão nervosa, o peso do público, o estado do terreno, o vento, um gesto, um grito, um apito, um nada pode prejudicar o toque que se desejaria vitorioso.

A preparação, o treino sério, são indispensáveis mas não suficientes para assegurar o êxito. No caso dos goleadores, as coisas são ainda mais complicadas pela multiplicidade das suas características. Há os especialistas no jogo de cabeça (Águas, Torres, Madeiros) que também marcam com os pés; há os baixinhos, ratos da pequena área (Arsénio, Gaia, Tito); os rematadores de longe (Eusébio, Caiçara, Lúcio, Mendes); os de disparo fácil e imprevisível (Matateu); os calculistas (Néné); os dribladores envolventes (Manuel Fernandes) e os ocasionais (Humberto). Alguns reúnem várias destas características, a panóplia é grande.

Os calmeirões são privilegiados, tanto os gigantes (Torres) como os entroncados, tipo Peyroteo. Os mais espectaculares serão, porventura, os que disparam petardos do meio da rua, obtendo golos de bandeira. Os avançados peitudos, demolidores, mais em força do que em jeito, podem (sim senhor, amigo Farinha) aperfeiçoar a técnica, trabalhar o toque de bola, burilar o estilo, segundo o prisma aristotélico. Mas esses serão sempre rematadores e não forçosamente goleadores, só renderão enquanto a força durar.

Para os caçadores, os ratos da área, como o Arsénio, o Gaio ou, em especial, o Gerd Muller, não há métodos nem treino específicos. Não se aprende, nasce, é o faro, o instinto, o tal dom que lhes permite estar no sítio exacto, no instante preciso para desviar para a baliza o remate torto de um companheiro, para recargar uma bola que o guarda-redes largou, para aproveitar a fífia do defesa. Este sentido de oportunidade não se ensina, está no indivíduo, é o dom da musa de que Platão fala, o dom que Alfredo Farinha reserva aos poetas.

Devemos ainda distinguir os goleadores da bola corrida dos da bola parada. Nos primeiros tem de haver instinto, decisão, cálculo veloz, reflexos apurados. Com a bola parada, é toda uma arte de colocar o esférico numa pequena saliência do terreno, o golpe de vista à barreira, a escolha do pé, a inclinação do tronco, o doseamento do efeito e a aplicação do remate. Curiosamente, neste capítulo há um nome que estava predestinado, Platini, que obviamente é herdeiro de Platão, tem um dom inquestionável, um talento invulgar. Mas também tem de Aristóteles o gosto pelo trabalho esmerado com que ensaia a marcação de livres que, nos seus pés, são mais de meio golo.

No fundo, o ideal é possuir o dom dos deuses ou das musas e trabalhar seriamente. E o que nos vale é que podemos ter opiniões parcialmente divergentes, mas acabamos sempre por nos entender. E isto, meu caro Alfredo Farinha, talvez porque as musas de Platão nos tenham concedido os dons de abertura de espírito, do gosto do diálogo aberto e transparente, da tolerância e do bom senso, sem pretendermos o monopólio nem o exclusivo da razão. Ou, simplesmente, talvez por gostarmos de futebol e de participar em debates que acabam sempre com a vitória da amizade, a derrota da arrogância e o empate das opiniões…

1982

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