segunda-feira, 20 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 63

O tio Plínio

António Cagica Rapaz

Era uma manhã fresca de sábado, com o sol filtrado pela bruma. Lá em baixo, o mar e a Pedra Alta, ali, a dois passos, o bairro dos pescadores e a Cruz solitária...

O tio Plínio baixou o som do rádio e pôs em nós aqueles olhos que viram morrer um século e nascer outro. O meu pai ainda chegou a trabalhar com o tio Plínio, na profissão de carpinteiro, na arte de marceneiro, no universo aconchegado da madeira, de cheiro tão familiar, com as mil ferramentas que ajudam a construir o presépio e o cenário das nossas vidas, do berço até ao caixão, bancos e mesas, camas e armários, vigas e barrotes, baús e caixas, pipas e selhas, soalhos e tectos, a certeza metálica do martelo, o prego a mergulhar na tábua. E, sempre, o cheiro, o bom cheiro da madeira...

O tio Plínio é um artista, músico de talento e hábil carpinteiro. Imagino-o a construir violinos com madeiras raras, linhas suaves e sonoridade celestial, juntando as duas artes em harmonia perfeita, a delicada e minuciosa junção das paredes do violino para colocação precisa das cordas e a fricção arrepiante do arco ligeiro.

Há algo de transcendente e místico na arte ancestral de trabalhar a madeira. Algo que tem a ver com as nossas raízes, a nossa segurança, agarrados à nossa terra. Mas, ao mesmo tempo, a madeira flutua, procura outros horizontes através de rios e mares. No fim da viagem, seca ao sol e aquece as noites frias da nossa solidão.

O carpinteiro é mágico, é Gepeto que cria sonho e realidade, protecção, aconchego no lar travejado, escorado por mão forte e amiga. Entre a sua oficina e a música, o tio Plínio criou um universo de harmonia, trabalha ao seu ritmo, acaricia a madeira, retoca, apara, ajusta, cola, acomoda, encaixa, prega. O tempo é o sol, as florestas levam anos a crescer, a vida escoa-se com lentidão. Importante é ir fazendo, com amor e paciência, falando com os amigos, ouvindo, mostrando, partilhando a celebração do culto da madeira, com ternura, quase com volúpia.

O mar fica lá em baixo e os carros não sobem escadas. Mais acima, no terreiro da Cruz, em tempos distantes, lançávamos estrelas em tardes sombrias de vendaval.

Algures, na rua da Caridade, há outro artista que, pacientemente, faz maravilhas em miniaturas de barcos. Tem a sua loja, o seu atelier de criação artística, o seu mundo, ali onde já cheira a mar, a dois passos da Galé. São figuras deste presépio que Sesimbra ainda é, a espaços, entre duas marés, nas entrelinhas, quando a olhamos do poial da nossa porta.

Quando passo na rua do Forno, deito um olho à oficina do tio Elias. Ambos carpinteiros, ambos homens bons, com nomes excelsos, Plínio e Elias.

Daí, talvez e em parte, o orgulho com que conservo, como coisa preciosa, um cartão de visita do meu pai, único, nunca vi outro, singelo, admirável.

Diz apenas: António Cagica Rapaz – Carpinteiro.


1995

Sem comentários:

Enviar um comentário