segunda-feira, 27 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 64


António Cagica Rapaz

Por uma bela tarde de Verão, no início dos anos cinquenta, a tia Stella tomou corajosamente o volante do delicioso Ânglia preto rumo à Cotovia onde o tio Jó tivera a insólita lembrança de construir uma casa, no alto da charneca, num ermo, bem longe do mundo civilizado que girava em torno do Grémio e do Central.

No seu desejo de evasão fora acompanhado pelo tio Né, o garboso comandante dos Bombeiros, Hernâni Baptista.
A Cotovia era também o domínio de quatro rapazolas naquele paraíso protegido por soberbos pinheiros mansos, com bicicletas, espingardas de pressão de ar, ratoeiras para os pássaros, um mundo de aventuras que me fascinava. O entusiasmo levou-nos a combinar uma arriscada expedição para irmos armar aos pássaros na manhã seguinte. O melhor seria ficarmos lá, dormirmos na Cotovia. Eu dormi com o Luís Filipe e foi o início de uma bela amizade...

Assim nasceu a minha paixão pela Cotovia onde passei alguns dos mais agradáveis momentos da minha vida, graças à bondade do tio Jó e à paciência da tia Fernanda. O Luís Filipe vinha dar uns toques cabazeiros nos matraquilhos onde ele e o Joca eram fregueses certos da dupla que formei com o Zé. Enquanto a Carmelinda e a tia Fernanda limpavam a loiça, o António adormecia agarrado à telefonia a ouvir o relato e o tio Jó trocava dois dedos de conversa com o Jorge enquanto o Chico não chegava. O compadre Artur nunca tardava e o tio Nuno via-se aflito para impedir a Miss de cravar o dente no pudim que acompanhava o café suave que a aguardente do Jorge iluminava.

Muitos anos depois, voltei à Cotovia, a meio do ano, a meio da vida, em breve escala. Jantámos, conversámos longamente e preparámos o farnel para a expedição da caça na manhã seguinte.

Foi uma decisão repentina e inesperada. Precisávamos de falar, havia anos de certa distância, eu vivia em França, tínhamos muita coisa para contar, para evocar, para partilhar. Dormi na cama do Zé, bem enrolado nos cobertores, sensação agradável de conforto, ao desafio com a frescura húmida da noite.

Quase como dezenas de anos antes, acordei cedo para ir à caça. O tio Jó levou espingarda, mas não deu um único tiro. Eu levei um cajado e o saco do farnel. Percorremos quilómetros, embriagados pelo ar puro da manhã, mal nos preocupámos com coelhos ou perdizes. Apenas matámos saudades, antes aproveitámos o nascer do sol, a cumplicidade da natureza para conversar, muito, num diálogo a sós, único, inesquecível, entre homens, entre amigos, com muita ternura e cumplicidade. Há acontecimentos assim na nossa vida, e naquela manhã solitária e deslumbrante partilhámos muito mais do que o farnel e o cantil do vinho...

Na Cotovia das minhas recordações o Outono era eterno, havia sempre neblina e desejo de carapaus secos. E a Cotovia era, sobretudo, o tio Jó, um homem maravilhoso, admirável de bondade, inteligência, alma de artista, nobreza de sentimentos, delicadeza, trato fino, humor subtil, bom gosto, sentido estético, numa permanente celebração da vida. E uma franca generosidade, o prazer de partilhar a sombra doce do enorme pinheiro do altinho de S. João, a mesa, o convívio fraterno.

A caça, para ele, era apenas o pretexto para um bocado de exercício e estar com os amigos. A velha garagem foi transformada numa “Toca” acolhedora, com as relíquias e recordações da caça, o cantinho dos petiscos, o calor da amizade.

O Jorge era o seu velho mestre de armas que conhecia os cantos à casa, os abrigos, a direcção do vento, o canto dos pássaros.

Sem eles, a Cotovia não faz sentido...
1997

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