segunda-feira, 4 de julho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 65

É melhor assim

António Cagica Rapaz

- Vai um churro?

Era ao princípio da noite, na meia lua da rampa, junto ao velho Espadarte. Ela aproximou-se, sorridente e maliciosa. Teria talvez uns quarenta anos, belo pedaço de mulher. Ele olhou-a, entre surpreendido e desconfiado.

- Um churro?
- Sim, um churro, já não te lembras? Foi assim que meteste conversa comigo, há uns vinte anos, numa noite de Verão.

Ele tinha boa memória e, enquanto ouvia, ia vasculhando todas as gavetas das suas recordações. Em vão. Não se lembrava da cara nem da voz. Menos ainda do nome, claro. Mas não se desmanchou.

- Meu Deus, como o tempo passa. Ainda parece que foi ontem...

Tinha horror às banalidades, às frases feitas, mas não conseguiu arranjar melhor do que aqueles desajeitados lugares comuns. Sentia-se embaraçado, mas precisava de ganhar tempo, pesquisar com subtileza.

- Olha, se o tempo passa, em ti não deixou marcas, estás na mesma.

Agora era ela a cair na trivialidade. Ninguém está na mesma vinte anos depois. Mas enfim, vamos ver o que sai daqui...

- Ora, de noite todos os gatos são pardos.

Outra banalidade. Decididamente não se sentia em forma, era como um aluno chamado a uma lição que não preparou.

- Não me fales da noite, do sortilégio, do fascínio, das mil aventuras que ela traz consigo. A noite que correm em busca da madrugada.
- É bonito, continua.
- Então, dá-me uma deixa...
- O dia nasce quando morre a madrugada...
- E o mar chama por ele todas as manhãs.
- Como é que sabes?
- Ora essa, eu assino “O Sesimbrense”. É uma maneira de continuar a ouvir o mar, de sentir o perfume da maresia, de prolongar o sonho.
- Devias escrever, dizes coisas muito bonitas.

Nada, não tinha a menor recordação. Mas precisava de ir alimentando o diálogo, não dar o flanco, procurar indícios, cábulas para resolver o enigma daquela desconhecida que continuava a sorrir, divertida, segura de si, com um pontinha de perfídia no olhar.

- Foi uma pena, é verdade, mas a vida nem sempre corre como nós queremos.
- Sofri muito quando deixaste de me escrever.

Ainda por cima chegara a escrever-lhe! O nevoeiro permanecia espesso, nem sombra de ideia, o vazio absoluto.

- Éramos muito novos, Lisboa era longe, naquele tempo, mais valia não alimentar esperanças.

De novo os lugares comuns, as frases de circunstância. Que inépcia, que falta de jeito e de inspiração, era desolador, sentia-se cada vez menos à vontade.

- Eu percebi. De facto, não voltámos a fazer férias em Sesimbra, passámos a ir para o Algarve. Mas nunca te esqueci, aqueles dias foram maravilhosos. Na primeira noite, depois de comermos um cartuxo de churros, passeámos ao longo da marginal e tu propuseste que fôssemos dançar. Fomos...
- Ao “Forno”.
- Ena, não te esqueceste, lindo menino!

Pudera, esta não podia falhar. O “Forno” era passagem obrigatória nos caminhos da noite. Marcara um ponto, aparentemente, mas não avançara um milímetro na identificação da bela desconhecida.

- Era bem agradável, o “Forno”.
- Lembro-me que o dono era teu amigo...
- Sim, o Vítor Marques, é verdade, um tipo muito interessante.
- E acabámos a noite, sabes onde?
- No “Pinto & Pinto”.
- Isso é que é memória!

Mentira, foi uma carta jogada pela certa. O “Forno” e o “Pinto & Pinto” faziam parte do percurso do combatente, do itinerário marialva das noites daquele tempo.

- Já mudou de dono, está muito diferente, como a própria Sesimbra.

Sentia-se melhor agora, mais confiante, depois de marcar dois pontos. Mas a névoa persistia...

- Ainda é vivo aquele homenzinho do boné?
- O Charuto? É vivo e não envelhece, é um filho da noite, está bem conservado. Mas, diz-me lá, como foi a tua vida? Casaste, imagino...
- Casei, tenho dois filhos e agora estou divorciada. Coisas que acontecem...
- Todos podemos enganar-nos, só sai a quem joga. Mas está com belíssimo aspecto.
- É muita gentileza tua...
- Olha, a propósito de gentileza, não leves a mal, mas tenho de confessar uma coisa. Não fiques magoada nem ofendida, mas, na realidade, eu não... enfim, não...
- Não sabes quem eu sou, pois não?
- Já tinhas percebido?
- Não é bem isso. Agora sou eu que te peço que não te zangues. Na verdade, desde o início eu sabia que não poderias lembrar-te de mim. Pela simples razão de nunca me teres visto.
- Confesso que não percebo.
- É simples. Uma prima minha veio passar férias a Sesimbra e conheceu-te. Teve uma paixoneta e contou-me vezes sem conta o vosso romance que durou pouco mas que a marcou muito. Mais tarde casou, mas continuou a assinar “O Sesimbrense” porque se sentia ligada a esta bela terra. Por curiosidade, comecei por ler e acabei por me tornar também assinante. Por isso, conheço certos trechos de cor. Depois, combinámos pregar-te esta partida inocente, vingançazinha suave. Ouvi-a com atenção, decorei o meu papel, preparei-me, localizei-te e o resto já tu sabes.
- Bem jogado, sim senhora. Já agora, como se chama a tua prima?
- Ah, isso não estou autorizada a revelar, deixemos as coisas como estão. O “Forno”, o “Pinto & Pinto”, o Verão, os sonhos, tudo isso foi muito bonito, foi vosso, mas acabou, é um romance que ficou por escrever.
- Eu sei, mas... e tu... e nós...?
- Não, meu lindo, não vim à procura de aventuras. Na nossa vida há marés, há um tempo para cada coisa. O que não aconteceu, o que ficou por viver é irrecuperável, o passado pertence ao mar. Acredita, é melhor assim...
1998

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