segunda-feira, 5 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 67

O tio Nuno

António Cagica Rapaz

Ao Luís Filipe

Os rapazes da minha geração foram à catequese na igreja de cima, com o padre João, fizeram a comunhão solene, alguns a confirmação ou crisma, e construíram um ideal de vida assente na família, com a mística das novenas, a Festa das Chagas, a procissão imponente e comovente, o pitoresco profano dos santos populares e a ternura do presépio envolto em cânticos celestiais na missa da meia noite.

A família não se compra como as figuras do presépio que construíamos com cortiça das armações e o musgo do ribeiro. Bem teria gostado de ter tido uma família com muitos irmãos, primos, avós, gente boa e amiga à volta da mesa, ao pé da chaminé. Mas não tive. Quis, porém, o destino que tivesse vivido, em épocas e lugares diferentes, junto de famílias à imagem da minha idealização.

Durante alguns anos, na minha adolescência, na noite de Natal, fui à missa do galo e partilhei a consoada em casa do senhor Nuno Cardoso que era, para todos nós, o tio Nuno, um homem maravilhoso, de rara qualidade, bondoso, gentil, generoso, tolerante, de gosto apurado e com uma pontinha de malícia deliciosa.

O seu presépio era um universo de harmonia, mesura e poesia, numa recriação inspirada no amor que punha em cada gesto. Naquela noite, o tio Nuno era o Pai Natal que tinha uma prendinha para cada um de nós. Mas a dádiva maior era a sua amizade, delicada e pura, o seu sorriso e a sua bondade.

Durante anos tive a felicidade da sua convivência, em particular na Cotovia, em domingos inesquecíveis iluminados pela espiritualidade da sua presença, do seu fino humor, da sua irreverência benigna.

O tio Nuno deixa-nos uma recordação luminosa, o apurado sentido estético e ético da existência, a suavidade do trato e a pureza de sentimentos. Com o tio Jojó e a D. Stella, formava uma trindade maravilhosa.

Quando passardes no largo da igreja de cima, olhai as janelas da casa de esquina. Ali viveu um homem admirável que partiu na Primavera de 1976. Treze dias depois foi-se-lhe juntar a minha mãe que tanto apreciava a sua companhia nas tardes da Cotovia. Quem, como ele, era bom, generoso e gentil, só podia partir na Primavera, tinha de ser em Abril...

1982

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