sexta-feira, 2 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 68

Elegância no falar*
António Cagica Rapaz
A minha mãe tinha uma caligrafia admirável que costumava designar por letra gótica. De facto era bonita, elegante, sem demasiados floreados, um regalo para a vista. Não sei se foi aplicação e esmero se foi o receio das palmatoadas da dona Beatriz Palmela, o que sei é que a dona Amália escrevia que era um primor.
Bem também, embora com outro estilo, escreve a minha tia Lucinda, não só quanto à forma mas igualmente quanto ao fundo, toda ela sensibilidade e poesia acompanhadas por um temperamento vibrante e apaixonado, mulher de pincel e espada, artista na alma, dedos de fada.
Eu bem fui aluno da dona Beatriz mas a minha caligrafia é pobrezinha, pouco prendada, mediocridade que não vos é possível observar nesta letra de imprensa, capa que me salva.
Mas letras são tretas e cada um de nós tem à sua disposição as 23 letras do alfabeto que permitem milhões de arranjos e composições. Temos, além disso, dicionários carregadinhos de palavras, temos gramáticas e prontuários, selectas e sebentas, todo um arsenal capaz de nos levar a escrever coisas de belo recorte estilístico, com metáforas aos montes e alegorias a dar com um pau da roupa.
O pior é o resto, é a maldita folha branca que olha para nós a gozar, desafiando-nos para descobrir uma ideiazinha, um assunto, um tema a desenvolver. Que vou eu arranjar, inventar desta vez?
Começo a olhar à minha volta e de repente lá surge ao longe, sempre ao longe, um esboço de ideia.
Esta é a quem me ocorreu e que vos estou agora a expor, falando de pessoas que falam ou escrevem bem.
Outras há que nem escrever sabem e que no entanto são inteligentes, sublimes, possuem uma riqueza interior espantosa, um vocabulário rico, saboroso, variado, que nos ensinam coisas admiráveis a cada passo. Sobretudo aprecio-as quando falam com imagens coloridas, expressivas, enraizadas na nossa cultura ancestral, quando vão buscar essas imagens à nossa terra, ao nosso mar, às coisas boas, à nossa herança colectiva, recordações, evocações, nomes, situações, piadas, repentes, ditos, contos da noite velha, mas coisas nossas, que nos tocam cá sentro, que nos sabem a mar, que nos sabem amar, que nos aquecem a alma.
No campo fala-se de forma diferente, «parece mintira», como diz o António do Reza que tem lenha (salvo seja) que é um amor. O António é uma enciclopédia de frases espirituosas, ditos e trocadilhos, um verdadeiro jogral. Quando canta (o que é raro) a caldeirada à portuguesa é um hino nacional em lume brando. É um regalo ir à Cotovia comprar lenha ao António porque a sua melodia verbal é uma delícia.
O irmão, o Zé do Reza, não gosta de favas e é pena. Esta alusão é uma piscadela de olho para a Carmelinda e para o nosso Jorge que foi o maior trovador, o filósofo mais fino que conheci neste perímetro saudoso.
Ora, onde é que eu ia? Ah, nas diferenças entre o falar do campo e o dos pexitos. É de facto outra coisa, o ritmo da frase, a musicalidade, o sotaque, o acento, no campo é outra coisa. Não vou enfiar por aí, é tema para os amantes da linguística e tenho mais que fazer. Em tempos fiz um trabalhinho jeitoso com alguma ajuda do mestre Rafael Monteiro (outro filósofo, outro saber) e que me foi encomendado pelo muito ilustre professor Dr. Lindley Cintra, no ano da graça de 1969.   
Nesse tempo tive o privilégio de ter sido aluno do maravilhoso contador que era Vitorino Nemésio e bem me lembro como era bom ouvi-lo. Era um deleite, um encantamento, as palavras certas, vivas, encadeadas, coloridas, agrupadas em frases perfeitas, tudo fácil, tudo simples, tudo bem feito, como dizia o meu compadre Alves dos Santos que continua a ser uma referência no domínio do esférico e da língua portuguesa.
Ora as línguas não são estáticas nem estátuas de mármore. Nós damos à língua e a língua dá-nos, com o tempo, palavras novas, expressões diferentes, mais ou menos interessantes, mais ou menos úteis, mais ou menos felizes. Mas surgem, é assim, acontece, é inevitável.
Hoje parece-me estar a língua portuguesa doente, atacada pelo vírus dos brasileirismos que nada de valorizante nos trazem. Nada de gratificante, como se ouve agora dizer, a torto mais do que a direito. Paralelamente vão aparecendo termos diferentes para exprimir as mesmas ideias ou conceitos que outras palavras já exprimiram até melhor, de forma mais justa e apropriada. De repente começou a dizer-se postura em vez de atitude quando, no sentido habitualmente buscado, o melhor é utilizar atitude já que postura se refere mais ao físico do que ao mental.
O mais chocante não é tanto a imperfeição relativa do termo agora utilizado, mas sim a verdadeira inundação, a diarreia verbal com postura para aqui, postura para ali, toda a gente a repetir como papagaios uma moda que alguém lançou talvez para se distinguir, para se elevar através do que julga ser um discurso diferente, moderno, na crista da inovação.
Com esse vieram protagonizar, atempadamente, implementar, potenciar, indiciar, potencializar e outros. Alguns não existem sequer na língua portuguesa como o atempadamente que nenhuma falta fazia já que sempre se disse a tempo e horas, oportunamente, em devido tempo, na altura própria, enfim, mil maneiras que dispensavam esta barbaridade presunçosa, tão inútil quanto postiça.
É a minha opinião, apenas isso e quem não concordar pode ir queixar-se à Capitania, ao Posto de Turismo, à porta da praça ou ao largo do Canino. Desde que o faça «atempadamente»!
Naturalmente a língua tem de evoluir. O Mundo muda, altera-se, não sei se progride mas avança, surgem coisas, ideias, objectos, técnicas, conceitos novos e por isso é natural que surjam também neologismos. Pirosa é a repetição cansativa, monocórdica, macaqueada, de pretensas inovações por pessoas que julgam adquirir um estatuto mais elevado quando dizem indiciar em vez de revelar, sugerir, mostrar, deixar entrever, etc. Indício existe e é correcto, indiciar não sei nem me interessa ir ao dicionário verificar. Até pode ser que exista mas recuso-me teimosamente a utilizá-lo porque me desagrada o facto de ouvir tanta gente a dizer apenas, sempre e só indiciar deitando para o lixo todas as outras formas de exprimir a mesma ideia. É pedante, é postiço e sobretudo a nossa língua sai mutilada, perde muito mais do que ganha. Ninguém hoje diz que o dia está lindo, resplendente, maravilhoso, deslumbrante, fabuloso, etc. Hoje, para qualificar tudo o que tem sinal positivo só se diz óptimo. Só. O resto vai fora, fica no saco e desta forma o nosso vocabulário fica mais pobre, mirrado, reduzido a expressões simples, telegráficas, sintéticas, esqueléticas, despidas de cor e sabor, feitas de plástico. E isso não é óptimo, desculpem lá.
Há poucos anos um dirigente desportivo teria dito a propósito dos jogadores: – «vamos acompanhar a evolução destes rapazes para os ajudarmos a aperfeiçoar as qualidades que revelam».
Hoje, qualquer adjunto do técnico auxiliar do treinador principal dirá com ar convencido: «A equipa técnica vai monitorizar o itinerário do grupo de trabalho por forma a potenciar as potencialidades que indiciam».
Toma lá que já almoçaste, quem fala assim não é gago!
Tento imaginar o mestre Adelino nos dias de hoje, na sua barbearia, e não sei se ele alinharia nesta verborreia de plástico.
A verdade é que não acredito que o mestre Adelino pusesse a sua «ténica» de retórica ao serviço destas macacadas. Sim porque, prontos, não sei se, prontos, ele, prontos, estaria pelos ajustes…
Boas são as nossas expressões alegóricas, típicas, bem enraizadas na nossa terra, na nossa vila, é o mar ao bote, o mar da névoa, o arrebater como uma chaputa, o safa já a giga e tantas outras.
Boa é a tradição oral, os ditos, as expressões, as frases feitas que nos ficaram e que se adaptam, se encaixam, nos vêm à memória a propósito desta ou daquela situação. São em geral saborosas, expressivas e impressivas, ás vezes picantes, muito ligadas a pessoas, acontecimentos e coisas que são nossas, que nos são próximas, que nos dizem muito, que mexem connosco, têm o nosso cheiro, a nossa marca, são cá das nossas, em suma.
Da minha mãe ficaram-me inúmeras frases, historietas, quase provérbios. A minha irmã transmitiu ao marido e aos filhos e hoje o João Pedro sabe o que teria dito a avó se lhe falassem em meias.
A Judite até se ruça quando lhe falam em andorinhas porque ela conservou, tal como a minha tia Lucinda, essa herança, essa memória colectiva que outras famílias possuem também, felizmente.
Não creio que o meu tio Justino aprovasse a «postura que indicia potencialidades abrangentes». Imagino que, se ouvisse fraseado tão oco e postiço, pretensamente moderno e elitista, ele remataria jocosa e filosoficamente: – Vai cagar, vai!
É português, está no dicionário e, com toda a franqueza, às tantas é o que apetece responder.
Que me perdoem as almas mais sensíveis, os espíritos mais delicados, mas por vezes, de facto, sabe bem dizer. E fazer.
____________
*Publicado originalmente em O Sesimbrense.

Sem comentários:

Enviar um comentário