segunda-feira, 13 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 62

no 67.º aniversário do nascimento de António Cagica Rapaz...

Ao reminho pela borda d’água

António Cagica Rapaz
É esta uma expressão que ouvi muitas vezes na boca do tio Jó, diminutivo por que ficou conhecido, em círculos restritos, esse homem admirável que foi João Baptista Gouveia.

A nossa língua está cheia de frases feitas, palavras soltas, expressões que ouvimos a cada passo, papagueadas, repetidas cansativamente. A rádio e a televisão enfiam-nos pelos ouvidos banalidades, fórmulas postiças, mimos de políticos e jornalistas modernaços. E lá vêm o “dado adquirido”, a “carta fora do baralho”, o “atempadamente”, o “estamos a falar de”. A par de “é assim”, “pronto”, “à maneira”, “passado dos carretos”, “óptimo”, “meu”, etc.

Os brasileiros têm uma graça natural, mas tal não é o nosso caso e já não há pachorra para ouvir “Então, tudo bem?”, a toda a gente, todos os dias. Pior ainda Atão, tude beem? no tom arrastado e pexito da nossa terra.

Mas quantas destas expressões existirão daqui por cinco anos?

A vida, mais ou menos longa, destas expressões depende, em parte, da sua qualidade intrínseca, da justeza do conceito, da sua sonoridade, mas também do universo afectivo, do contexto psicológico, do envolvimento emocional. Os filhos, muitas vezes, bebem as palavras dos pais, apanham-lhes as mímicas, os tiques e os trejeitos pois é natural estarmos mais atentos e receptivos quando se trata de pessoas de que gostamos.

A linguagem das pessoas de Sesimbra está, naturalmente, cheia de metáforas, alegorias e outras figuras de estilo ligadas à faina do mar, casos de ir à via, andar com a borda debaixo d’água, nem quero ver o mar ao bote, mar da neva, forrar a isca, safar a giga, etc.

O meu parente Cristiano costuma estar ao domingo de manhã junto ao muro da lota, sempre na conversa, a fazer o que ele chama “largar aparelho”. Podia ter dito “encher bóias” ou “iscar a caçada”, teria sido igualmente sugestivo. Expressões como estas são bem nossas, estão ligadas à nossa vida, ao nosso quotidiano, e são ricas, expressivas, coloridas.

Outras estão carregadas de malandrice, de segundos sentidos, como sucede com “lenha” ou “não te descalces que vais ao petróleo”.

O que acontece em Sesimbra também se verifica no campo, com a sabedoria popular a brotar em cada frase, aqui uma alusão à terra, ali uma nota sobre as nuvens, a chuva, o vento, numa ligação muito forte à Natureza, fonte de provérbios, rifões e sentenças, coisas que os antigos diziam e que seria pena deixar cair no esquecimento. Conservar este património é preservar a nossa identidade e a nossa especificidade cultural. E também é um acto de amor, sobretudo quando associamos a uma frase uma pessoa de que gostamos. Conservo um grande número de expressões e episódios saborosos ligados à minha mãe, à minha tia Lucinda, à minha prima Lucinda, ao tio Nuno, ao Jorge, partes bem apanhadas, alusões malandras, sinais de liques, bisca lambida pela cumplicidade, códigos quase secretos, a nossa cartilha, as nossas escrituras maliciosas.

Talvez por isso me lembrei hoje desta expressão que associo ao tio Jó e que evoca paz, suavidade, imensidão, olhos semi-cerrados, o chapinhar dos remos, uma pontinha de neblina, um barco de guerra ao longe, uma manhã de Setembro...

O pai do Manel, o tio António Casa Pia, costumava rematar um capítulo da conversa com a fórmula “Passou-se”, antes de prosseguir. O Manel e eu ficávamos amarrados ao fio da narrativa e íamos enchendo o nosso saco de aprendizes de velhos da terra, enquanto a tia Júlia fritava o peixinho, com amor, para os meninos que envolvia no mesmo olhar doce. Era ao fim da tarde, no Canino, “passou-se” há muitos anos.

Destes pequenos nadas se compõe o nosso presépio interior, caturrices, “cosas de viejos”, com diz o Patxi Andión naquela maravilhosa canção em que fala de flores, de alguns livros, de vinho, de solidão partilhada, de uma casa gelada, do rio que fica perto, do Inverno e dos frios que vão chegando...

1997

1 comentário:

  1. Enfrentando a nostalgia que perpassa por esta crónica, deixo hoje, aqui, uma despretenciosa quadra, alusiva ao dia:

    SEM SER SANTO, O NOSSO ANTÓNIO,
    "RAPAZ" MAROTO E LEAL,
    FOI UM ILUSTRE "CONFRADE"
    E UM AMIGO EXCEPCIONAL!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    Ana

    ResponderEliminar