quarta-feira, 8 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 12

A Feira do Líbero

António Cagica Rapaz

Estávamos em 1963 e a tradição impedia os jogadores da Académica de alinhar nos torneios universitários de futebol porque, embora amadores no contexto profissional, éramos considerados profissionais entre os amadores puros. Porém, na Faculdade de Letras de Coimbra a proporção era de dez meninas para um rapaz, e esta escassez de recursos causava enormes dores de cabeça quando se tratava de formar uma equipa. Além disso, os homens de letras eram mais dados às filosofias e à literatura do que ao vulgar pontapé na bola. Por isso, a equipa das Letras era o bombo da festa, o pião das nicas. Fartos de cabazadas monumentais, resolveram nesse ano solicitar a minha ajuda e, para tal, conseguiram uma excepção, aliás só concedida porque os outros sabiam que a minha presença só poderia, no melhor dos casos, limitar a amplitude da tareia. Na baliza, jogava o Raposo, um madeirense que era o menos mau do conjunto. Em terra de cegos, fui acolhido com entusiasmo, e logo pus em prática uma táctica rudimentar mas razoavelmente eficaz. Dispus nove letrados atletas ao monte, à minha frente, ficando eu solto, às deixas, a fazer as dobras, a arrumar a casa, naquela zona crucial entre aquela trincheira atabalhoada e o nosso Raposo, atento e acagaçado. No final, perdemos por poucos e ainda fizemos o gosto ao pé. A parte curiosa da aventura é que no dia seguinte, no treino da Académica, José Maria Pedroso, com um sorriso malandro, disse-me que tinha assistido ao jogo da equipa das Letras. Com alguma surpresa minha, fui convocado para o jogo com o Benfica. Maiores que a surpresa só a minha alegria e o meu deslumbramento quando Pedroto me pôs a jogar na Luz, contra o Benfica, contra o Eusébio, dizendo-me apenas para fazer o que fizera na equipa das Letras. A experiência foi positiva, perdemos injustamente e repetimos o esquema nas Antas, onde empatámos. Foram os meus primeiros passos numa modesta carreira de líbero…

Tanto quanto me lembro, foi a Itália a pátria do sistema defensivo designado por ferrolho, o famoso catenaccio de que Picchi, do Inter, foi o primo signore.

Em Portugal, o Lusitano de Évora usava e abusava da ferrolhada, com uma barreira defensiva muito dura e fechada onde o líbero era, em regra, o Falé que jogava atrás de Teotónio, Polido, Paixão, Garcia, Athos e outros mosqueteiros de barba rija, contando na baliza com um seguro e arrojado Vital. Era aguentar, descascar e esperar o milagre de um contra-ataque providencial quase sempre protagonizado pelo solitário e hábil José Pedro. Mas o modelo era tosco e roçava o anti-jogo sistemático.

A meio dos anos 60, pontificava na Europa o admirável líbero Maldini, capitão do Milan, um futebolista maravilhoso só comparável a Franz Beckenbauer. Com efeito, Cesare Maldini, com o seu risco ao meio, era um jogador fino, elegante e excelente tecnicista. Com ele, o desarme, a intercepção e o corte eram apenas os primeiros movimentos de uma sinfonia atacante, saindo tranquilamente, bola dominada, cabeça levantada, campo fora.

Aqui reside a grande diferença entre o ferrolhista artesanal e o verdadeiro líbero que não se limita a destruir, antes começa a atacar partindo de trás, lançando os companheiros ou avançando em tabelinhas, abrindo jogo e, até, rematando. Assim jogava Maldini, assim nos encantou Beckenbauer.

Jogar a este nível é privilégio de eleitos, aliar a eficácia à beleza do gesto é dom em que os deuses não são pródigos. Temos visto bons defesas centrais, bons ferrolhistas, mas líberos virtuosos são raros. O verdadeiro líbero é o cirurgião de bisturi na ponta da bota, que corta com precisão e subtileza; é o gajeiro sem gávea mas que vê antes e ao longe, dominando com o olhar todo o campo; é o general que começa por organizar a defesa para logo decidir do rumo a dar ao movimento de ataque; é o empregado de café, nas horas de ponta, que resolve arrotear terreno, serpenteando por entre os adversários com a bola na bandeja; é o atirador de elite, com arma de mira telescópica, que escolhe o passe alongado e preciso ou o tiro certeiro à baliza; é o mestre, o maestro, a guilhotina dos ataques contrários e a génese das ofensivas da sua bandeira.

A este nível de exigência, só raros puderam ascender. Por isso, presto a minha homenagem ao talento transcendente de Beckenbauer, um jogador perfeito, um verdadeiro príncipe, jogando de cabeça levantada e bola domesticada, controlada na ponta da bota, submissa e obediente à arte e aos caprichos de mestre Franz.

Entre nós, há uma bela tradição de médios e defesas-centrais. Ouvi amiúde gabar o valor de Artur José Pereira, Augusto Silva e Albino, por exemplo. Recordo-me da finura e subtileza de Félix bem como da classe de Emídio Graça, jogadores de estilo moderno. Nos anos 50, a moda era a do defesa-central possante, vigoroso, como Manuel Passos, Raul Figueiredo, Artur ou Miguel Arcanjo.

O prenúncio da instituição do libero foi a fixação do quarto-defesa, no início dos anos 60. O médio esquerdo, em geral o de vocação mais defensiva, recuou uns metros e postou-se na linha do defesa-central, constituindo assim uma dupla que se opunha à outra novidade que foi a parelha de pontas-de-lança que enterraram o avançado-centro tradicional.

A guerra das estrelas no centro da defesa começou no Sporting, com a rivalidade Lúcio-Morato. Este, talvez por ser canhoto, foi deslocado para quarto-defesa, ficando Lúcio, bombardeiro terrível, dois passos atrás e mais para a direita. Mais tarde, tiveram os leões nova dupla de respeito formada pelo excelente Alexandre Batista e pelo eficaz José Carlos.

Porém, na primeira metade da década de 60, o grande senhor das estepes defensivas europeias chamou-se Germano de Figueiredo e foi um caso ímpar no futebol português. Jogador polivalente, senhor de uma técnica inexcedível, Germano carregou às costas, durante anos, o seu Atlético, venceu a doença, no Caramulo, e ainda arranjou forças para deslumbrar o mundo com a sua classe. Com a sua aura de monge, o ar professoral, foi apelidado de O lobo, talvez pela suavidade e certeza implacável das suas intervenções. Era o artista no meio de uma defesa rude e abnegada, sendo esta combinação indispensável. Porque um líbero, por melhor que seja, precisa de ter a seu lado um ou mais rachadores de lenha que vão à queima, que dão a cara, cabendo ao patrão da defesa entrar em cena no último acto, vibrar a estocada, prender o assassino, arrematar o lance, cortando orelhas, recolhendo as flores e a glória. Raramente é feita justiça aos valorosos e esforçados peões de brega.

Em Portugal, nos anos mais recentes, a par de centrais de marcação, como Eurico ou Freitas, dois jogadores se têm distinguido como líberos, Humberto Coelho e Rui Rodrigues. Humberto, mais atleta, Rui, mais esteta. Humberto cedo se mostrou um jogador altamente influente, eficiente, demolidor, omnipresente na sua área como diante das redes adversas, elemento determinante em termos de regularidade e rendimento. O farmacêutico Rui Rodrigues possuía o elixir do virtuosismo, os sais da serenidade, o ácido da visão, o comprimido do passe certeiro, o álcool da imaginação. O Rui foi um prodígio de classe, pés de veludo, toque requintado, execução suave, graciosidade no movimento, tudo à altura de Beckenbauer menos a personalidade, a ambição e a determinação de vencer.

O trono de Beckenbauer continua vago, apesar do reconhecido valor de homens como o austríaco Pezzey, o holandês Rudi Krol ou o argentino Passarella. As buscas prosseguem, está aberta a grande feira do líbero ou, se preferem à antiga portuguesa, a grande feira do livre…

1981

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