quarta-feira, 7 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 18

Eles não sabem

António Cagica Rapaz

Só a partir dos anos setenta os salários dos futebolistas começaram a subir de forma sensível. Em 72, salvo erro, o peruano Cubillas veio ganhar, no Porto, uns escandalosos 150 contos por mês, imagine-se…

Progressivamente, foi ficando mais funda a vala que separa o vencimento médio, digamos assim, da população e o ordenado das vedetas de futebol. Por outras palavras, até àquela altura, o que ganhava um jogador de futebol, mesmo dos melhores, não impressionava, não chocava nem causava incompreensão face à realidade das condições de vida no nosso País.

Também nesse tempo, e por força da lei da opção, eram raras as transferências dos jogadores mais emblemáticos que permaneciam toda a vida no mesmo clube de que se tornavam verdadeiros símbolos. Tal sucedeu com José Águas, Hernâni, Travassos ou Artur Vaz, por exemplo. Outros ainda acabaram por sair, em final de carreira, mas ficaram para sempre ligados ao seu clube de origem, como sucedeu com o Matateu ou o Eusébio.

Talvez por estas razões, as relações entre adeptos e jogadores eram de uma natureza afectiva diferente, havia admiração, claro, era como se fossem da família, mas, ao mesmo tempo, havia distância, certa forma de pudor, algum mistério, cada um no seu lugar. O adepto não ia para a bancada exibir-se, não era actor, apenas espectador, vibrante, apaixonado, mas apenas figurante.

Nos anos sessenta, fui testemunha de um episódio que nunca esqueci. Jogando contra um dos grandes, no seu estádio, perfilámo-nos para a habitual saudação ao público numeroso que aplaudia delirantemente os seus ídolos. Momentos depois, apercebi-me de que alguns deles, enquanto agitavam os braços, agradecendo os aplausos, pronunciavam palavras de desprezo e escárnio para os adeptos que, naturalmente, lá longe, nas bancadas, nada podiam ouvir, apenas viam gestos e sorrisos postiços.

Admito que houvesse boa dose de irreverência e chalaça, mas ficou-me essa imagem de sobranceria e desrespeito pelos ingénuos admiradores…

Por isso me causa uma impressão estranha ver homens, mulheres e crianças, autenticamente mascarados, com a cara e o cabelo pintados, com ornamentos bizarros, chifres e guizos de bobo. E são as bandeiras, os cachecóis, as faixas, as gaitas, tudo em nome de uma ilusão de adesão, de uma pretensa pertença, de uma gigantesca comunhão com ídolos mercenários e milionários que nenhum laço afectivo liga ao clube e, menos ainda, aos adeptos. Que pensará deste carnaval um jogador que ganha vinte ou trinta mil contos por mês? Jogador que actua hoje no Porto, amanhã estará no Sporting, a seguir no Benfica? Que quimeras, que motivações levam o português médio, de emprego precário, a contribuir com dinheiro para clubes geridos por dirigentes de integridade tantas vezes duvidosa, a entregarem-se de corpo e alma àquelas celebrações surrealistas?
Que frustrações, que desesperanças, que recalcamentos se escondem por baixo das pinturas e dos bonés com chifres ou guizos? Será, porventura, o fascínio do futebol que, de forma insólita, discutível, mas sempre apaixonante, ajuda a esquecer angústias e desencantos.

A televisão, a rádio e os jornais só fazem eco de palavras estudadas, de discursos estereotipados e monocórdicos dos ídolos. Mas o que eles realmente pensam e dizem em privado, do alto dos seus milhões, isso os ingénuos adeptos não sabem. Nem sonham…

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