sexta-feira, 8 de julho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 66

A nossa terra, a nossa gente*
António Cagica Rapaz
A França tem sido ao longo dos séculos berço de cultura em sentido lato, farol de artes e letras, correntes de pensamento, filosofia e reflexão.
A Revolução Francesa, os Direitos do Homem, a História passa pela França. Ora esta mesma França atravessa actualmente um problema de identidade, em grande parte resultante do figurino que a ideologia impôs ao País. Dir-me-á o meu primo Leopoldino, lá de trás do balcão da loja do Luís Borges, que lhe dá maior preocupação a descida do Belenenses à segunda divisão do que os problemas sociais em França. E assiste-lhe perfeitamente esse direito. Porém, as vagas da realidade internacional acabam por chegar à Fortaleza, mesmo se Portugal fica no fim da Europa e Sesimbra está protegida por pontões e muralhas de má morte.
Por norma, no nosso jornal, que é só para a malta da nossa rua, concentro as atenções na nossa terra, na nossa gente. Contudo, de vez em quando, não será mau alargar os horizontes, olhar para lá do mar da Pedra.
A França está a ser sacudida por tensões e escândalos que põem a nu um mal estar pronunciado. A França está doente, está a eructar, não por causa da maldita corvina, mas dos excessos de condimentos ideológicos que azedaram. E o mal vem, entre outras razões, do facto dos responsáveis políticos (de esquerdas e direitas, note-se) terem como preocupação não o bem estar geral, mas os seus interesses, privilégios e conveniências pessoais.
No poder ou na oposição, o tacho está garantido, a taluda sai sempre aos mesmos, ora agora governas tu, ora agora oponho eu.
Na minha opinião, meu caro Leopoldino, a França (e outros países) é governada por pessoas que não conhecem nem querem conhecer a realidade quotidiana, terra a terra. Só descem do alto da sua pirâmide de cristal em vésperas de eleições. Nessas alturas  afivelam a máscara da simpatia, vão aos mercados, andam na rua, falam a este, cumprimentam aquele, sorriem ao outro, na caça ao voto. Depois nunca mais alguém os vê, adeus ó população…
Em 81 Miterrand foi eleito basicamente porque prometeu mudar a vida aos franceses. Que os choques petrolíferos eram invenção da direita para justificar a austeridade e desculpar uma má gestão. E, sobretudo, iria a acabar com o desemprego, criaria um milhão de postos de trabalho para os jovens.
Prometeu este mundo e o outro, sem pudor nem mesura.
Dez anos volvidos, um milhão, mais que isso, é o número de desempregados que a gestão socialista acrescentou aos que já existem. Os jovens revoltam-se, o desencanto é visível, o mal estar alastra, agravado pela ostentação da sociedade de consumo em que vivemos, com a exibição quase provocante de mil artigos aliciantes à mão de ceifar, mas longe do miserável poder de compra da maioria desses jovens.
A juventude dos arredores de Paris, na sua maioria de origem árabe, do norte d’África, tem vindo a atacar lojas e centros comerciais, incendiando carros, pilhando estabelecimentos. É a revolta através da violência, a explosão do descontentamento, perante a passividade de um poder que confunde tolerância com abandalhamento, que dá mais apreço aos delinquentes do que às vítimas.
É compreensível a desorientação, a angústia dos jovens sem trabalho e sem perspectivas de futuro, mas não é admissível, num país de livre expressão democrática, que o descontentamento se manifeste através de assaltos, de agressões que já causaram mortes, de violência bestial.
Há alguns anos, um homem de raça negra que vivia em Sesimbra, dizia na sua simplicidade «o respeitinho é muito bonito». É simples e bem verdade. Um pai não deixa de gostar do filho só porque é obrigado a dar-lhe uma palmada no rabo. A mão que castiga apropriadamente não deixa de ser generosa e amiga. É uma filosofia simples que a ideologia socialista não aceita. Um grupo de vândalos agrediu há dias uma senhora e o filho que é diminuído físico. A senhora morreu e os agressores estão à solta. A televisão ignorou totalmente o drama, mas se a vítima é um ladrão cai o Carmo e a Trindade. Sucedeu recentemente e até o Primeiro Ministro foi visitar a família da «vítima» que assaltara, roubara, incendiara…
Ninguém pode regozijar-se com a morte de um jovem, mas a autoridade não pode desaparecer. A repressão justa não impede a prevenção. Todos temos direitos, mas também temos deveres. O Mundo está doente, foi a guerra do Golfo, o drama dos kurdos, a Etiópia, o assassinato de Ghandi, é a fome, é a sida, é o caos. Amanhã virão os famintos de África e de Leste à procura de pão. A ideologia é uma droga, transfigura a realidade. Durante anos esconderam-nos o que se passava a Leste e a verdade está à vista.
O capitalismo é assustador quando só visa o lucro, provocando despedimentos dramáticos, quando incita à competição desalmada, deixando pelo caminho os menos aptos. Vive-se numa sociedade em que há cada vez mais exclusão.
Vai longe o tempo do empregozinho garantido, da tranquilidade. Hoje é a angústia do dia de amanhã, a degradação da qualidade de vida, em toda a parte, em Sesimbra também. Por isso, meu caro Leopoldino, prefiro evocar tempos recuados, com certa nostalgia, alguma pieguice, uma pontinha de lirismo, um raminho de melancolia ou um toque de malandrice, conforme as circunstâncias. Bem basta o que basta…
Claro, não é com raminhos de salsa que vamos endireitar o Mundo. Precisamos de gente honesta, só isso e não é fácil. Se houvesse verdade e honestidade, não haveria Oposição mas Aposição, todos juntos a trabalhar para o bem comum. Mas Homens dessa dimensão perturbam, incomodam, estragam os arranjinhos. São afastados, perseguidos e, às vezes, acontece-lhes um azar, um acidente de avião, por exemplo…
Desculpa se hoje andei noutros mares. Na próxima, voltarei ao reminho pela borda d’água até encalhar de gargalhete na praia da Califórnia.
O Mundo está doente, valha-nos a nossa terra, a nossa gente…
____________
* Publicado em O Sesimbrense de Junho de 1991.

1 comentário: