sexta-feira, 23 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 71

Até ao meu regresso*
António Cagica Rapaz
Há muitos anos ouvi contar o caso, não sei se verídico, de uma mulher que abalou, praia fora, em direcção ao mar, gritando, repetidamente, que se ia afogar. Quando a água lhe chegou à cintura, olhou para trás e perguntou: “Então, ninguém me vem salvar?”. Claro, ninguém foi. E ela desistiu de se afogar…
Assim (quase) estou eu, anunciando que deixo de escrever para, afinal, estar de volta, um mês depois. Contudo, não é bem a mesma coisa e passo a explicar.
A minha decisão de interromper a colaboração não foi ditada por uma qualquer crise de vedetismo nem por capricho idiota. Entendamo-nos bem, eu sou apenas um colaborador, não estive na corrida para o Prémio Nobel, não vou passar à posteridade, e a hipotética evidência que estes escritos possam conferir não ultrapassa a curva da Alfarrobeira. A questão é simples, embora algo delicada, pois entra na esfera da susceptibilidade que, como os gostos, não se discute, cada um tem a sua, é assim, acabou-se.
Poderia eu, hoje, retomar as minhas redacções feitas em casa, molhando o aparo no tinteiro e torcendo a língua no canto da boca, como se nada tivesse acontecido. Podia, claro que podia, era mais simples, ninguém me levava preso. Porém, achei que vos devia uma explicação. Não porque os meus estados de espírito sejam importantes para o futuro da humanidade, mas apenas porque me parece normal e salutar esclarecer, e porque o tema se reveste de certo interesse especulativo. Devo, aliás, dizer que considero excessivas as apreciações elogiosas que me fizeram neste espaço, no mês passado, só explicáveis pela bondade dos seus autores. E que elas em nada contribuíram para o meu regresso. Pela simples razão de que nada tinha contra o jornal ou os seus colaboradores. A questão é muito antiga e tem a ver com a atitude de algumas pessoas… Já lá vamos.
Quem me conhece sabe que não sou vaidoso, nunca armei em vedeta nem tenho birras. Apenas sucede que, até hoje, tenho tido o privilégio de escrever em total independência. E por gosto. Mesmo quando era pago, só escrevia o que me apetecia e dava prazer. Gosto de escrever, mas, por vezes, a motivação dilui-se, sinto vontade de parar. Há muitos meses que andava para o fazer. Aconteceu agora. E explico porquê.
Aqueles que têm o hábito e a bondade de me ler, já repararam que pouco falo de mim, apenas o necessário para situar e enquadrar. Falo, sim, dos outros, de pessoas de quem gosto, que admiro ou que, simplesmente, acho interessantes. Tiro-lhes o retrato de corpo inteiro, pinto-as com as cores da minha amizade, da minha fantasia e ofereço-lhes o modesto destaque que está ao meu alcance proporcionar. Recordo-me que o meu primeiro artigo num grande jornal (Diário de Lisboa, 1971) foi dedicado ao Fragata, um jogador excepcional, um gigante, um exemplo e um símbolo do futebol sesimbrense.
Tenho procurado dar prazer às pessoas sobre quem escrevo bom número das minhas crónicas, e também aos leitores para os quais o importante é a qualidade do escrito. Depois, penso igualmente em mim, porque cobro à partida uma parte do prazer que procuro dar. E muitas vezes gosto de ler o que escrevo…
Dizem que amor com amor se paga, mas raramente tenho tido reacções das pessoas a quem consagro as minhas crónicas. Não esperaria agradecimentos, mas uma palavrinha, um sinal de conivência, de cumplicidade, de sintonia afectiva. Perante estes silêncios (e muitos têm sido), fico com a desagradável sensação de estar a errar o alvo, a escrever no vazio, a cumprir uma obrigação, a pregar um sermão que ninguém me encomendou. Dizia a minha mãe que “quem faz festas a galegos mais galego é”. E tinha muita razão, pelos vistos. É estranho que alguém (e não foi só um) a quem dedico um artigo “nem à merda me mande”, como diz o nosso bom povo.
É estranho, desagradável e dá que pensar…
Há, no entanto, quem considere que a pessoa que escreve não deve preocupar-se com as reacções dos outros, nada deve esperar, deve apenas escrever.
Talvez, mas não é assim que vejo e sinto as coisas. Para mim, há uma partilha, uma interacção, uma troca, um movimento circular, uma corrente que se deveria estabelecer entre quem escreve e quem lê. Admito que possa haver certa indiferença, certa distância entre escritor e leitor num universo amplo, numa grande cidade ou à escala nacional.   
Mas, num jornal como o nosso, numa terra pequena, a dimensão afectiva é muito maior e reencontramos o universo ingénuo das representações na Vila Amália, em cada dia 1 de Dezembro da nossa Mocidade extinta. Lá íamos, com emoção com entusiasmo e deslumbramento, perante o olhar embevecido dos nossos familiares e amigos, bondosos e parciais, que aplaudiam ruidosa e orgulhosamente as nossas piruetas no palco. Aqui, escrevo sobre os meus amigos (serão?), sobre vizinhos, parentes, vivemos na mesma terra, na mesma rua, na porta ao lado, é outra coisa, cruzamo-nos a cada esquina. Por isso, a tal dimensão afectiva é tão grande. A reacção dos outros não é só um bálsamo e um estímulo, é também um sinal, uma orientação, diz-nos se estamos a escrever o que gostam de ler, se vale a pena, se estamos no bom caminho. Por estas razões e porque tenho escrito muitas coisas por amizade e por amor, não entendo e dificilmente aceito certas atitudes. Contudo, quero frisar que não me considero pedra essencial. Fazer este jornal é uma cruzada, trabalho de Hércules que exige paixão e sacrifício. Pela minha parte limito-me a escrever ao correr da pena, mas sem o esforço e a prosa vigilante do Carlos Batista não haveria jornal. É ele, de facto, a trave mestra, com a primeira ajuda do Pedro Filipe, é bom não esquecer. Eu só dou um jeitinho para torcer o rabo ao bicho, na molhada…
O jornal é filho de todos nós e quem faz um filho fá-lo por gosto, é bem sabido.
Daí que possa haver da nossa parte (em uns mais do que noutros, não sei) uma sensibilidade exacerbada que pode levar-nos a aceitar menos bem certas reacções. Ou a falta delas.
Há uma pessoa já falecida sobre a qual escrevi várias vezes, sempre com ternura e admiração, repetidamente, o melhor que pude, ao longo dos anos. E nunca, nem uma só vez, um dos familiares me disse, ao menos, que leu. É muito estranho. E há vários casos destes, esquisitos, surpreendentes…
Ora, como só escrevo sobre pessoas de quem gosto, acabo por me encontrar frequentemente com elas, com familiares, com amigos íntimos. Obrigatoriamente. E é este o nó da questão. Perante estes silêncios estranhos, que fazer? Perguntar-lhes se assinam “O Sesimbrense”? Se o lêem? Todo? Mesmo a última página? Se, por acaso, por venturosa coincidência, por miraculoso conjunto de circunstâncias, por virtude da brisa do poente, os seus delicados olhinhos se pousaram na modesta croniqueta que tive a ousadia de consagrar ao paizinho, à tia ou ao avó de Vocência? Ou simplesmente fingir que não sei que eles leram? Fazer como se “O Sesimbrense” não existisse ou eu nunca tivesse escrito? Naturalmente, nada disto é vital, mas desagrada, dá vontade de provocar um incidente diplomático.
Há também quem se sinta na obrigação de dizer qualquer coisa, sabendo que eu sei que leram o que escrevi. E então sai uma alusão elíptica, sintética, magra e insípida. Mas a honra está salva, não posso dizer que não deram sinal. Se eu estivesse longe, como já estive, não teria esta percepção, não sentiria este mal-estar. Porém, eu vejo, falo, sento-me à mesa com estas pessoas, é essa a diferença.
Claro, há o reverso da medalha. E por isso aqui estou, de novo. Porque o Zacarias, de longe, por gestos, me pediu para continuar. Quando há amizade, não são precisos discursos nem palavras rebuscadas, basta um sorriso cúmplice, uma piscadela de olho, o tal sinal de liques.
Volto porque o Luís Rafael Pinto se mostrou desiludido; porque o Xico me escreveu e telefonou de Sines; porque a minha antiga professora no Liceu de Setúbal, a Dra. Auzenda, faz questão de assinar o jornal e é uma pessoa maravilhosa; porque o tio do Afonso Maurício, o Eng. António Fonseca, me recordou a mensagem do general; porque a Micá exigiu que continuasse; porque a minha tia Lucinda me ia dando uma tareia; por isso, por aquilo, porque há pessoas que me dão vontade de escrever, de partilhar com elas esta saborosa aventura de vasculhar o sótão à procura de ideias, e de ajudar a preencher esta última página.
Volto, mas não venho fazer qualquer favor, não penso nem um segundo que faço falta. Ninguém faz verdadeiramente falta, e este episódio é apenas isso, uma peripécia insignificante.
O general disse aos soldados: “Se vocês recuam, morrem. Se avançam, morrem. Então, para quê recuar?”.
Por isso, não recuo. Fico é com mais responsabilidades e cada vez menos temas, menos assuntos, pois as fontes de inspiração não são inesgotáveis. Mas, enquanto for capaz e me der prazer, terão de me aturar. Depois, não se queixem. A culpa foi de todos quantos me ralharam, me pediram, me compreenderam e não me deram tréguas. Até ao meu regresso…
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* Publicado em O Sesimbrense de Janeiro de 1997.

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