segunda-feira, 30 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 60

João Vasco

António Cagica Rapaz

Alguns dos rapazolas que vestiram a farda da Mocidade Portuguesa tiveram a felicidade de pisar o palco da Vila Amália em tardes de ansiedade e encantamento de 1º de Dezembro, nos tempos longínquos da nossa juventude. Era a magia do teatro cristalizada naquele cenário rudimentar, pano para toda a obra mas que, por si só, criava ilusão e dava corpo à fantasia. Por nós passava a transfiguração do quotidiano, a criação de uma supra-realidade, o deslumbramento, a emoção dos heróis de papelão, actores incipientes, o inocente e o incontido orgulho de meninos felizes, milagres que só o teatro faz.

Alguns terão sonhado com outros palcos, plateias vibrantes, ser ou não ver a ser actor, eis a questão que, no secreto silêncio das nossas noites, teremos acariciado, embriagados por meia dúzia de aplausos simpáticos e suspeitos, caídos de mãos amigas, vizinhos e familiares de lágrima fácil e piegas...

Alguns sonharam, outros ousaram. O António Fernando, que não fez parte do nosso grupo da Mocidade, bateu à porta do Teatro, do grande, do Teatro a valer, levou o sonho por diante. Nós ficámos pelos acampamentos, pelas chamas da Pátria, por repetidos primeiros de Dezembro com cornetim na missa. E, sobretudo, pela fidelidade fascinada ao teatro radiofónico da Emissora Nacional. Conhecíamos as vozes dos grandes nomes da cena portuguesa, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Assis Pacheco, Raul de Carvalho, Rogério Paulo, Rui de Carvalho, Canto e Castro, Luís Filipe e outros, sempre com encenação de Samuel Dinis. Foram O Conde de Monte Cristo, A Tosca, O Pimpinela Escarlate, o Bem e o Mal, a Carmen e tantas outras maravilhas.

O António Fernando sonhava com as pancadas de Molière, as surpresas da caracterização, a sugestão dos cenários, a vertigem do guarda-roupa, o fulgor das luzes da ribalta, a presença temível e fascinante da mancha escura do público capaz de engolir e destroçar um actor ou de o elevar ao zénite da emoção, da felicidade e da fama. Dessa forma, o António Fernando saiu discretamente pela esquerda baixa para dar lugar ao João Vasco, um actor prestigiado, reconhecido e quase realizado.

Começou por fazer parte do grupo teatral da escola Marquês de Pombal, dirigida por Manuel Lereno. Depois, fez o Curso Geral de Teatro do Conservatório, foi um dos fundadores do Teatro Experimental de Cascais e passou pelo D. Maria II. Fez teatro radiofónico e televisivo e participou em dois filmes. No teatro, foi protagonista de inúmeras peças, D. Quixote, A Maluquinha de Arroios, Bodas de Sangue, Macbeth, Rei Lear, O Diário de Anne Frank, O Leão no Inverno, etc. Foi galardoado pelas suas interpretações em Onde Vaz, Luís?, Galileu Galilei e La Nonna. Hoje, quando não está em cena, dá aulas de Interpretação na Escola Profissional de Teatro de Cascais de cujo Conselho Directivo é membro.

O João Vasco é um grande, como os que faziam a nossa felicidade no teatro da Emissora. É um grande actor, é nosso amigo, nosso orgulho e, apesar de ter a sua vida em Cascais, não se esquece que nasceu em Sesimbra, terra onde o teatro morreu.

Agora, só nos resta a secreta esperança de voltar a ouvir o João Vasco dizer poesia, com a sua bela voz de Adamastor, do alto da fortaleza...

1996

sexta-feira, 27 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 60

Carta ao Julião*

António Cagica Rapaz

Quando eu fui morar para a Herdade já o Julião lá vivia, ao cimo das escadinhas, mais chegado à rua Amália do que à rua Monteiro. Em frente morava outro Julião, irmão do Bernardo e do Filipe, porta a porta com os Maquinos, o António e o Sebastião.
O Julião era o nosso rato Mickey miúdo, franzino mas vivo como um alho, inexplicavelmente lingrinhas ao pé do pai, o imponente Guilherme Pala-Pala.
O Julião era do Sporting mas o pai era do Belenenses e quis o acaso que nos sentássemos lado a lado no Estádio do Restelo no dia da inauguração, em 1955, talvez. Nesse tempo jogávamos à bola todos os dias e tinha uma equipa de respeito na qual o Julião tinha lugar certo, com os seus dribles curtos, o seu repentismo e a sua genica. Era o tempo das grandes jogatanas, em frente da escola de St.ª Joana, que duravam até aparecer o João Vai-Vem ou o Alfredo Polícia.
Mal sonhava o Julião que o filho do Polícia Alfredo acabaria por ser o marido da sua irmã Teresa. As voltas que a vida dá…
Nessa equipa o Julião jogava a avançado e o melhor jogador era o Carlos Alberto, senhor de uma habilidade excepcional e que só não foi longe pelo azar que teve no joelho. Era tão bom (ou melhor) no futebol como no ténis de mesa e fica tudo dito.
Já nessa altura o Julião era um rapaz divertido, folgazão, amigo da paródia, adepto da laracha, sempre de sorriso engatado e gargalhada pronta.
Fez a sua quarta classe como tantos outros mas não pôde subir a Rua Monteiro até ao Colégio do Dr. Costa Marques porque a chata do tio Guilherme não dava para tanto. É assim a vida, alguns nascem em enxergas de palha e outros em berços de prata. E o Julião teve de começar a trabalhar enquanto eu e outros íamos às aulas. E lá ia o nosso belo Julião, de fato-macaco, trabalhar para a doca com o Albano, o Tica e toda aquela tropa fandanga de carpinteiros navais que entravam no café do Jeremias. A certa altura o Julião comprou uma motorizada e era um espectáculo ele e a moto, a moto e ele, marginal fora, sempre bem disposto.
Os anos foram passando, o Julião trabalhando, os outros estudando, uns em Setúbal, outros em Lisboa, mas a camaradagem era a mesma. O Julião era dos nossos e nas farras era o número um. No Carnaval o Julião dava recital e à volta da fogueira, nas noites de S. João, era o rei das quadras ao desafio.
A profissão de carpinteiro naval é dura e o Julião não era nenhum Hércules. Um dia surgiu uma oportunidade na Biblioteca Municipal cujo Director era o Dr. António Vitorino (o Tó, meu ídolo do bilhar) que fazia o favor de ser meu amigo. Pedi-lhe para tomar em consideração a candidatura do Julião e foi assim que o nosso ponta-de-lança da Horta trocou a serra pela esferográfica e a doca pelo largo da farmácia.
Ao longo dos anos fomos continuando ligados, fazendo parte de um grupo de malandros onde pontificava o Manel António, meu capicua e amigo do peito. O Julião foi meu companheiro de mil voltinhas ao Espadarte, de patuscadas nas Caixas, de convívio salutar. Com esses anos que passavam a vida modificou-se para nós todos, cursos acabados, tropa, casamentos, o mundo a agitar-se enquanto o Julião ficou sozinho no largo do Central a ver cada um ir para seu lado, sem compreender que não podemos continuar eternamente a dar voltas ao Espadarte e a fazer cegadas pelo Carnaval. O Julião viveu no meio de amigos que evoluíram de forma diferente, saíram de Sesimbra, levados por estudos e, depois, por empregos absorventes. E de repente foi o vazio, o silêncio, a tristeza dos invernos chuvosos e solitários. Um fim de semana passa depressa, os amigos criaram outras obrigações. E o Julião foi ficando sozinho, o seu sorriso permanente murchou, no seu espírito o Carnaval morreu e só ficou a quarta-feira de cinzas, a solidão e o desencanto.
Primeiro foram os amigos a afastarem-se puxados pelas correntes da vida e depois foi ele a fugir, a esconder-se, julgando-se menos digno.
É pena que o Julião tenha perdido o seu sorriso luminoso. Talvez a certa altura ele se tenha fechado um tanto, talvez não tenha feito o esforço necessário para acompanhar o ritmo do grupo. A sociedade é um grupo imenso formado por núcleos mais restritos e a solidez daquela depende da consistência destes. A vida nos une e a vida nos separa porque não temos a força de vontade necessária para nos mantermos unidos. Amigos de infância passam anos sem conversarem dez minutos, sem reencontrarem as recordações, sem evocarem os episódios, a vivência, o tempo que foi.
Cruzam-se de carro, trocam um aceno, lançam uma piada a fugir, mas não arranjam tempo para um passeio na praia, uma tarde de sábado, ao sol de inverno, com o vento a remexer nos cabelos já grisalhos.
O isolamento do Julião é o símbolo do egoísmo de todos nós, mais de uns do que de outros mas, no fundo, de todos os que perderam o culto da amizade, que se preocupam apenas consigo e os seus mais próximos, com o preço das coisas sem se aperceberem do valor das mesmas.
E um belo dia ao dobrar uma esquina esbarramos uns nos outros, olhamo-nos de frente e damo-nos conta de que nos perdemos durante anos, sem sabermos porquê. Por momentos voltamos a ser crianças, voltamos a marcar golos à porta da escola de St.ª Joana, voltamos a acampar no Castelo, a jogar ao pião, a treinar pela mão do velho Carlos Marques. E temos a sensação de ter deixado fugir nas malhas da vida o melhor que havia em nós, a amizade, a cumplicidade, o espírito de corpo, a força de um grupo unido. Não esperem pela idade da reforma para irem sentar-se de bengala e mão trémula no jardim, nos bancos da saudade.
Sem desatarem aos beijos e abraços à porta da praça, é possível e desejável não deixar secar por completo a árvore da amizade.
Os grupos formam-se naturalmente por força das convergências existentes. Não podemos ser unha com carne com toda a gente, mas temos o nosso grupo, os nossos grupos. E esses há que preservá-los.
O Julião é do nosso grupo. Vocês que também são, formem de novo o grupo, puxem por ele, revigorem-no, já dei um toque ao Manel António e temos um projecto esboçado para Fevereiro. E o Julião será dos nossos, não pode faltar. E que esse seja o primeiro passo.
O Manel António está encarregado de lançar as bases e tu, Julião, vais com o teu pé ligeiro pedir explicações ao Manel. Perguntas no Largo do Canino onde mora a Tia Júlia e ela dá o recado ao Manel, como antigamente. Precisamos todos uns dos outros, pouco valemos isolados.
O dinheiro e as ostentações cá ficarão, só os valores espirituais perduram.
São eles que contam e acredita que estão em nós. Vamos encontrar o Julião e vamos sobretudo encontrar-nos.
Então por que não, por que não hei-de ir à Torre de S. Julião ver o Galeão partir? Vamos fazer uma fogueira de amizade, com o fumo da alegria que provoca alguma lágrima teimosa e a lenha picante da irreverência da nossa mocidade. Julião, vamos a isso?
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*Publicado no Jornal de Sesimbra.