quarta-feira, 6 de julho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 16

Calcanhar daqueles

António Cagica Rapaz

Toda a gente sabe que se o nariz de Cleópatra tivesse sido diferente, a História teria sido escrita de outra forma.

A memória colectiva dos povos tem os seus símbolos, as suas referências, como são a arca de Noé, os trabalhos de Hércules, o cavalo de Tróia, a caverna de Platão, a banheira de Arquimedes. Ou o calcanhar de Aquiles.

Os heróis modernos também têm os seus sinais distintivos, os seus pontos fortes e fracos, a boca de Brigitte Bardot, os olhos de Elizabeth Taylor ou a mão do Maradona.

E temos agora o calcanhar de Madjer que lançou o Porto para a vitória na Taça dos Campeões Europeus.

O realismo mostra que os golos é que garantem os triunfos, e o importante é levar a bolinha a ultrapassar completamente a linha de baliza. Para tanto, podem os jogadores utilizar todas as partes do corpo, à excepção dos braços e das mãos, não sendo sequer proibido o recurso ao pé (mesmo chato) e à cabeça.

No pé, podemos identificar cinco ângulos de disparo. Primeiro, temos o bico, geralmente utilizado para a vulgar biqueirada, gesto pouco ortodoxo, próprio de rematador barato que chuta para onde está virado. Se no râguebi a biqueirada é atitude estudada e milimetricamente calculada, no futebol é, em geral, sinónimo de nabice e aselhice. A vantagem que oferece é a de surpreender toda a gente, a começar pelo próprio chutador e a acabar no guarda-redes. Porém, nem sempre a biqueirada é cega. Por vezes, assistimos a bicos inteligentes, como um que o genial Susic nos ofereceu, recentemente, no Parque dos Príncipes, frente ao Marselha. Foi um toque subtil, com o bico, sim, mas cheio de intenção e classe…

A seguir, temos a parte de dentro do pé, a concha, que é a mais utilizada para controlar a bola, para a afagar e para executar o passe curto, pela certa.

O peito do pé serve para o passe comprido, o despacho vigoroso e o remate forte mas nem sempre feio.

O exterior do pé é todo ele um poema, marca de talento, assinatura dos predestinados, toque de classe, efeito garantido, gesto inscrito na passada, sem quebra de ritmo, sempre em progressão, com elipses envolventes e certa displicência.

O grande mestre, o executor de obras raras, de lances sublimes, era Franz Beckenbauer, o até hoje insuperado Kaiser.

Tive a felicidade de ter jogado ao lado de um segundo Beckenbauer que se chama Rui Rodrigues, maravilhoso jogador a quem faltou apenas ambição para atingir alta craveira internacional. O Rui era um mago do futebol, dois pés perfeitos, todo ele suavidade, leveza, arte pura no toque da bola, desarme subtil, passe infalível, curto e à distância (exterior do pé), uma elegância rara, um principezinho do futebol. Não há hoje (retirado que está Beckenbauer) um libero que chegue aos calcanhares de Rui Rodrigues. E por falar em calcanhar…

O quinto ângulo de disparo é o menos usado e o mais ousado, delicado, sensível, colocado na retaguarda do pé, sem ângulo de visão. O toque de calcanhar é o golpe a só tentar pela certa, sem arriscar, porque se quando resulta é bonito, aplaudido e sublimado, ao contrário, quando falha provoca risada e recriminações.

Por isso, a responsabilidade de Madjer era enorme naquele lance memorável. Se hoje o cobrem de flores e elogios, imagine-se o que seria se a bola sai ao lado e o Porto perde a final!

É assim o futebol, obriga a reflexos apurados, a reacções instintivas, a pensamentos ágeis. O calcanhar de Madjer foi a rampa de lançamento do Porto no espaço sideral das constelações refulgentes do futebol, num lance de genial audácia que resgatou uma época, que colocou o Porto nos cornos da lua, nos píncaros da fama.

Mas seria injusto esquecer a equipa, pois foi o triunfo do colectivo, sendo de sublinhar a acção de Artur Jorge que pôs em campo um esquema perfeito, lançando os seus golpes na altura apropriada. Mérito seu igualmente a força moral que animou a equipa, ambição consciente, vontade de ir mais além.

O calcanhar de Madjer fica na história porque deu golo, porque foi a viragem do jogo, porque foi o princípio do triunfo, mas sobretudo porque foi um gesto insólito, teve o cunho do artista rebelde, do poeta incompreendido, do matador arrojado.

Foi uma aposta tremenda, o pescoço no cepo, dobrado contra singelo, tudo por tudo, atrevimento inaudito. Jogou e ganhou, para bem de todos nós, parabéns Madjer.

Paradoxalmente (como nos filmes que acabam mal) o treinador vai sair do Porto e o herói argelino quer deixar as Antas. Mas talvez Madjer tenha razão, pois sairia coberto de glória, dificilmente podendo repetir façanha equivalente. De qualquer modo, seria pena o Porto perder um calcanhar daqueles…

1987

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