sábado, 17 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 70

Superveniente*
António Cagica Rapaz
Há tempos a minha tia Lucinda fez-me chegar uma mensagem segundo a qual a tia Líbia gostaria de me ver. No universo já meio quimérico das férias da minha meninice, nas Caixas, a tia Líbia não era figura predominante, talvez por morar muito longe da minha casa, aí a uns bons oitenta ou cem metros, o que era considerável na minha minúscula aldeia. O meu centro de gravidade situava-se algures entre a casa do tio Júlio e da tia Clarisse, por um lado, e a do tio Justino e da tia Conceição por outro.
A tia Líbia tinha duas filhas, um filho e um marido epiléptico. O filho, o Bernardino, não era meu companheiro assíduo de brincadeira nem das fainas agrícolas. O nosso relacionamento era mais distante, não havia a intimidade que tinha com o Julinho, por exemplo.
Os anos passaram, a nossa infância ficou mais longe, diluída na ribeira dos Torrões, e só muito mais tarde voltei a encontrar-me com o Bernardino. E se a tia Líbia agora me queria ver tal se deve em grande parte a esse encontro que ocorreu em meados de 1971 no cenário agreste, ventoso, detestável, do Campo de Tiro da Serra da Carregueira.
Depois de Mafra e do Porto, fui ali colocado e designaram-me para chefiar a Unidade de Mobilização que era, no fundo, a secretaria geral da soldadesca ali incorporada.
Está bem de ver que aquilo para mim era chinês, mas tropa é assim, obedece e desenrasca. Felizmente havia o sargento-ajudante Manso que de facto me ajudou muito, apesar de ser um bocado surdo. Ele é que sabia de requerimentos, notas e outra papelada e, graças às suas indicações, lá fui levando a água ao meu moinho, conservando a escrita em dia, ou melhor, em meio dia porque à tarde eu estava autorizado a sair para os treinos do Belenenses.
A certa altura a minha curiosidade foi espicaçada ao verificar que os vários processos de amparo de família que por ali passavam eram todos, mas mesmo todos, sem excepção, arquivados, caixote do lixo. Admirado, perguntei ao Manso o porquê de tal procedimento e ele explicou-me simplesmente, dizendo que não eram supervenientes. Trocado por miúdos significava aquele palavrão que os rapazolas não tinham metido os papéis na devida altura, “atempadamente” como agora se ouve dizer.
Os processos de amparo deviam ser obrigatoriamente apresentados pelos mancebos (assim era designada a carne para canhão) no dia em que iam à inspecção. Ora está bem de ver que, nesse dia, nenhum mancebo, por mais cebo que tivesse entre os dedos do pé esquerdo, tinha o menor conhecimento das leis, regras, disposições ou regulamentos militares.
Sofridos e amargurados eles iam, com o rabo entre as pernas e a pila à mostra, desfilar diante do júri que lhes aplicava sem hesitar o caminho de apurado nos lombos magrizelas. Alguém imaginava que era logo nesse dia que se tratava do processo de amparo? E o que era isso dos processos de amparo? Eles queriam era fugir dali sem olhar para trás.
Segundo acto: o mancebo, transido de frio e medo, era incorporado no Campo de Tiro onde não aparecia como no arraial da festa das Chagas uma loiraça a perguntar “ó simpático, vai um tirinho?”.
Passado algum tempo começaram a ouvir dizer que havia quem saísse da tropa por amparo de pai ou mãe e, vai daí, alguns apressavam-se a falar com o médico de família, iam à Junta de Freguesia e às Finanças e reuniam os documentos todos que entregavam cheios de esperança na tal Unidade de Mobilização. O Manso mandava-os para a Amadora ou para o Quartel General, já não sei bem, e depois voltava tudo para trás com a menção “arquive-se”. Ponto final, morria ali a esperança. Porquê? Porque, como explicava o sargento-ajudante Manso, não eram supervenientes. Queria ele dizer na sua que a doença do pai ou da mãe só podia ser tida em consideração se tivesse acontecido depois do dia da inspecção. Ora praticamente todas as doenças invocadas e atestadas pelos médicos já tinham anos e anos pelo que deviam ter sido expostas no dia da inspecção. Como nunca era, por desconhecimento natural dos rapazes, vinha tudo para trás, arquive-se, caixote do lixo, inapelavelmente.
Como nunca gostei de pactuar com injustiças, resolvi procurar uma solução, uma artimanha para contornar esta legislação monstruosa e viciada. Com algum receio, o Manso lá me bichanou ao ouvido que a única forma era tornar o caso superveniente, ou seja, posterior à inspecção. Tal significava alterar as datas do atestado médico, da Junta de Freguesia, etc.  
Só que sugerir, aconselhar aos rapazes estas falcatruas era um exercício altamente perigoso. Estávamos em 1971 em plena guerra colonial e o risco era enorme, no mínimo prisão de Caxias, forte de Elvas, sei lá, Tarrafal, não faço ideia.
Na altura, para ser sincero, não me lembro se pesei os prós e os contras. Recordo-me de ter telefonado para a Amadora a um tal tenente Luís perguntando se não podíamos dar um jeito, ajudar os rapazes. A resposta foi agressiva, cínica, avisando-me de que não me metesse nisso porque era perigoso e depois se eles não trataram das coisas a tempo era com eles, paciência, que se lixassem. Se já estava indignado mais revoltado fiquei e foi nessa altura que me veio parar às mãos o processo do Bernardino. Eu nem sabia que ele estava lá na Carregueira, mas ao ver o processo lembrei-me dos ataques epilépticos do pai e decidi fazer qualquer coisa, não pensei no risco, procurei apenas ajudá-los, a ele e à família. Porque era justo, eu sabia que era verdade tudo quanto estava no processo. Por isso havia que torná-lo superveniente. Chamei o Bernardino, expliquei-lhe tudo muito claramente e ele lá foi, antes de tudo, falar com o Dr. Leite, o bom doutor de Santana, que lhe aldrabou novo atestado fingindo que a epilepsia do pai era recente. O resto foi só reajustar as datas dos outros documentos e lá voltámos à carga. Agarrei no novo processo e enviei-o com o coração apertado.
Depois dele foram vários, quatro, cinco, não sei ao certo, desconhecidos, não sei se sinceros se golpistas, pouco me importava. Estava ao meu alcance ajudá-los e foi o que fiz, fiz o que pude, despachando vários processos aldrabados, recauchutados, à graça de Deus. Hoje apercebo-me do risco gravíssimo que corri. Mesmo sem denúncia, bastava que alguém se lembrasse de comparar os processos refeitos com os originais para ver que havia aldrabice. E não teria sido difícil saber quem era o responsável.
Felizmente não houve incidentes. Pelo contrário, meses depois recebíamos na Carregueira notas informando que os soldados tal e tal, já colocados noutras unidades, tinham passado à disponibilidade por amparo de pai ou mãe. Eu ficava contente por eles, apesar de não saber quem são.
O Manso, discretamente, sorria-me.
Feliz também ficou a tia Líbia quando o Bernardino disse adeus às armas e voltou para casa. Agradecida, levou um coelho à minha mãe. em parte também o Manso merecia agradecimento. Por isso, de alguma maneira, foi um coelho Manso…
Estes factos são autênticos, poderão ser verificados se no Quartel General restarem arquivos desse tempo. Apetece-me contá-los depois da visita que a tia Líbia me fez na Aiana, para me abraçar com a força dos seus 82 anos de sofrimento e labuta permanentes. E sentida gratidão, decerto.
Hoje tenho uma consciência mais nítida dos riscos enormes que corri. Uma denúncia ou uma olhadela mais atenta aos processos poderia ter tido consequências gravíssimas para mim. Não sei se na altura reflecti seriamente, só sei que senti o dever moral de fazer o que estava ao meu alcance para combater uma dupla injustiça, a guerra e uma regulamentação viciada.
Foi a minha maneira de lutar contra um sistema iníquo e hoje sinto, se não orgulho, pelo menos a consciência do dever cumprido. Estava ao meu alcance e fiz. Não encolhi os ombros nem pactuei activamente como esse tal tenente Luís (por sinal também miliciano), antes agi e, felizmente para aqueles rapazes, com sucesso positivo.
Não me considero um herói, não peço à Câmara uma rua ou beco com o meu nome, basta-me a recordação da emoção da tia Líbia. Por ela e por todas as outras mães valeu a pena.
Mas também é verdade que, apesar de não ter na lapela o emblema nem constar da lista dos heróicos lutadores antifascistas, provavelmente terei feito mais que muitos conjurados da bica e bagaço que andaram tão escondidos em luta clandestina que ninguém deu por eles, ninguém descobriu rasto dos seus actos.
No fundo não mereço recompensa por que me limitei a aldrabar. É certo que se tratava de um poder injusto, mas não é bonito mentir. Por outro lado, a tia Líbia deu-me um coelho, é mais do que suficiente.
E já agora terminemos com um sorriso sobre a atitude de muitas pessoas e com uma alusão à guerra colonial: “Mesmo que viremos a casaca, a gola é nossa…”

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*Publicado em O Sesimbrense de Dezembro de 1995.

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