segunda-feira, 10 de outubro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 72

Raízes

António Cagica Rapaz

- Era bonito, não era?

- Como diz, é comigo?

- Sim... queira desculpar, mas aqui, junto a este muro, de repente, senti uma grande saudade da lota. Era bonito, não era? Agora, ao fim da tarde, a fortaleza até me parece escura e triste, um mostrengo inútil.

- Sim, tem razão, é uma tristeza...

- Antigamente a fortaleza abrigava a lota, enquadrava o movimento das barcas, das chatas, dos pescadores, dos vendedores, dos almocreves, estendia uma sombra protectora, era um presépio permanente.

- É verdade, a lota deixou um vazio enorme.

- De cada vez que me sento neste muro, parece-me ouvir ainda vozes cruzadas, a cantilena dos vendedores, os gritos, os dichotes, a grande azáfama da vida arrematada em lotes...

- Ena, o amigo tem veia poética.

- Bem gostaria, bem gostaria, mas mal consigo exprimir o que sinto, o que me ficou de tudo isto, da beleza que Sesimbra encerrava. Já não é a mesma a nossa terra.

- Ah, o senhor é de cá...

- Não, não sou... isto é, nem sei bem...

- Não sabe?

- De facto não nasci em Sesimbra, mas para mim ser é pertencer, é gostar, é estar ligado, é sentir. Para muitas pessoas que cá nasceram, o Macorrilho era apenas um passadiço, ontem destapado, hoje coberto de areia, mas só um passadiço. A lota era aqui, hoje é na doca, tanto faz. Quem nasceu na rua do Norte ou na rua do Saco habituou-se a ter o mar à porta. Por isso, quando saem de casa, mal o olham, se o olham não o vêem e, se o vêem, não o sentem.

- Explique lá isso melhor...

- Olhe, eu não preciso de olhar o mar para saber de que cor está, que aspecto tem. Por exemplo, nas manhãs frescas de Inverno, quando a brisa sopra da terra, ele fica muito azul e enrugado como a pele do tio Vicente Faneca.

- Não sei quem é.

- Eu também não o conheci, já morreu há muito, mas li há tempos uma evocação que hoje me leva a imaginá-lo de barrete preto, bigode, olhar perdido no mar, em tardes de vendaval, nas escadinhas da rua dos Pescadores.

- Ah, já percebi, anda aí literatura caseira...

- É verdade, não nego. Leio tudo o que fala de Sesimbra, assino os dois jornais da terra. Sesimbra, para mim, não foi o acaso de um nascimento, mas uma escolha, uma paixão. Comecei por vir de férias, com os meus pais, depois casei, continuei a vir e acabei por cá comprar uma casinha.

- Temos então um pexito por adopção...

- Sabe, se calhar, o ideal é viver em Lisboa e vir cá, espaçadamente, para saborear em momentos escolhidos, isolados, em escapadelas. Por vezes, ao cair da tarde, sinto como um chamamento do mar. A minha mulher já conhece os sintomas e prepara tudo para virmos. De repente, aí vamos nós, ponte fora, Apostiça abaixo, Cotovia à vista, Sesimbra é já aqui e que bom que é. Assim, contra a corrente, fora do tempo, apanhamos Sesimbra em sossego, desprevenida. Contemplamos o mar, passeamos na orla da noite e depois vamos jantar como dois namorados. Umas vezes ouvindo o murmúrio das vagas e saboreando a sopa rica de peixe do Hélder. Outras vezes, fugimos para o campo e vamos ao São Jorge, à Aiana, conversar com o Zé Martins enquanto a Dona Manuela nos prepara uma deliciosa cataplana. A felicidade é bem capaz de ser isto, momentos como estes, não sei.

- Cá temos outra vez o poeta...

- Com os anos e a leitura dos jornais, passei a conhecer nomes de ruas, nomes de pessoas e até alcunhas. Acho interessante e às vezes apaixonante a forma como certos escritos nos falam das pessoas, nos revelam a alma de Sesimbra, com ternura e poesia. Bem gostaria de ter conhecido o padre João, as armações, as ruas enfeitadas e tantas outras coisas. É verdade...

- Tem razão. E é curioso porque nunca vi as coisas por esse prisma. Bem vê, o meu caso é diferente, eu conheço toda a gente...

- Ah, o senhor é de cá!

- Olhe, já não sei. Para lhe falar com franqueza, depois de tudo o que me disse, já não sei se sou de cá. O meu amigo é muito mais de cá do que eu. E no entanto nasci cá, moro é no campo.

- Felizardo. Desculpe a minha tagarelice, quando gosto não me contenho...

- Eu é que lhe agradeço, aprendi muito. Olhe, se calhar, esta conversa, bem trabalhada, era capaz de dar uma crónica jeitosa.

- Talvez, só que eu a falar ainda dou um jeito, agora a escrever...

1994

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