segunda-feira, 12 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 68

Galé

António Cagica Rapaz

Estava-se nos fins da década de 60 e o Desportivo vivia o período mais eufórico da sua existência, numa luta apaixonante para subir à 2ª divisão tendo pela frente o poderoso Farense e atrás de si uma vila inteira louca de entusiasmo e de fé. Era um espectáculo permanente, uma alegria contagiante de toda uma população orgulhosa dos seus rapazes capitaneados pelo lendário Valdemar e embalados pelas melodias do Mário Regalado e seus comparsas que punham Sesimbra a vibrar ao ritmo do “Ribolé, ai leva, leva lé, olha a Sesimbrense, olha a Pastorinha”, festa rija, de sabor autenticamente popular, bem da nossa terra, a cheirar a sardinha assada em ruas perfumadas com alecrim.

A música dos Galés tinha essa coisa maravilhosa que é a pureza, sabia a Sesimbra, tinha a cor do mar, o fulgor do nosso sol, um coro de gaivotas, falava das nossas traineiras, tinha ritmo e raízes, era nossa. Os Galés assentavam arraiais no Café Martelo, na Galé, ao tempo nas mãos do Hermínio Pinhal, antigo jogador do Desportivo, que não se fazia rogado para pegar nos ferrinhos ou dar uns toques na bilha do Mantas...

A Galé é um local privilegiado, primeiro balcão bem de frente para o espectáculo deslumbrante e permanente que é o mar.

Naquele tempo, as barcas e as traineiras vinham, ao cair da tarde, juntar-se diante da lota e era um quadro bonito e cheio de vida, com as cores vistosas das embarcações, as camisolas aos quadrados dos pescadores, o vaivém das chatas, a cantilena dos vendedores, o gelo do Chanoca, o café do Zé Maria, um cenário colorido, o mais belo cartaz de Sesimbra.

Hoje, da Galé, vejo os pescadores que passam com um balde de plástico na mão. Andam devagar como os figurantes de uma peça de teatro que atravessam o palco. Ali em frente, junto ao muro, passam caras conhecidas, casais que não trocam palavra, que cumprem um ritual, como se fossem atrás da procissão, em passo lento, levados pela cadência das ondas.

À boca da noite, o mar fica mais azul e o ar mais fresco. Na varanda da Galé ficamos a sós com o oceano infinito, testemunha do tempo. É a magia do anoitecer, a hora a que, noutro tempo, as mães chamavam pelos filhos que brincavam nas ruas estreitas. O jantar na mesa, a telefonia só conhecia o fado, os barcos baloiçavam docemente em frente à praia. Hoje, da Galé, avista-se o novo pontão que uma traineira dobra no silêncio do crepúsculo, uma luzinha no mastro.

Na linha azul do horizonte recorta-se a sombra da “Pastorinha” e, ao longe, ouve-se a melodia suave da gaita de beiços do bom António do Porto. Cai a noite na Galé...

1994

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