sexta-feira, 3 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 61

Ninguém escreve ao coronel*

António Cagica Rapaz

Há pouco tempo, o nosso director escreveu no seu editorial que gostaria de receber mais cartas de leitores, com ideias, sugestões, críticas, pareceres, opiniões, enfim, tudo quanto possa ajudar a sentir, perceber, avaliar o impacte do jornal, podendo essas reacções auxiliá-lo numa orientação mais ao gosto do público, pró forma a melhor corresponder às suas expectativas e preferências.

Fez-me essa mensagem pensar num dos livros desse admirável escritor que é Gabriel Garcia Marquez, “Ninguém escreve ao coronel”.

Com efeito, o nosso director é coronel, reformado, mas coronel, sim senhor. Não é verdade que ninguém lhe escreva, pois ele recebe algumas cartas, mas, para tirar o máximo partido da situação, levo a coisa a um ponto extremo e decreto que ninguém escreve ao coronel. Desta forma posso apropriar-me, fugaz e inocentemente, de um belíssimo título de crónica, através de uma usurpação pontual que, afinal, constitui uma pequena homenagem ao autor de “Cem anos de solidão” e, sobretudo, dessa maravilha que é “O amor nos tempos de cólera”. Aproveito a deixa do nosso director, tenho um título bonito, só me falta o resto, o mais difícil, dar corpo ao conceito, compor o ramalhete, levar a carta a Garcia, ou seja, construir uma historieta. Ninguém escreve ao coronel, e então? Que enredo vou eu arranjar a partir daqui, não me dirão? Confesso que não sei. No momento exacto em que escrevo estas palavras não sei, só sei que o título é interessante e gostaria de o aproveitar. Para não acontecer o que se passou com outro título que um dia me veio à cabeça e que nunca cheguei a utilizar. Lembrei-me, assim, sei lá como, de “Aqui jazz”, referência melancólica, mesmo fúnebre, a melodias lânguidas que morrem de madrugadas em salas cheias de fumo, de álcool e solidão. Tal como agora, precisava de arranjar uma trama, uma história para justificar e ilustrar aquele belo título. Deixei para depois, esperei que a inspiração viesse e, um belo dia, vi o “meu” título no “Independente”, encimando uma homenagem a um músico de jazz que morrera. Paciência, acontece, nestas coisas é preciso cuidado.

Em 1971, tive a honra de manter uma rubrica de tonalidade desportiva, no “Diário de Lisboa”. Era o “Livre e Directo”, título sugestivo, com um trocadilho interessante, uma boa ideia, um achado. Um dia, discordei dos métodos pouco ortodoxos do responsável pela secção, e bati com a porta. Volvidos anos, descobri o meu título numa rubrica da Antena 1. Escrevi, pacatamente, com fotocópia de artigos a comprovar a paternidade, e pedi uma explicação. Não me responderam. Mais tarde, há pouco tempo, repeti a tentativa. Silêncio total. E a rubrica lá continua, às 6.ªs feiras. O apresentador, que se chama Costa Martins, terá, porventura, tido a mesma inspiração que eu, não sei. É possível, as palavras já existiam, não me pertencem, mas é legítimo ter alguma dúvida que o silêncio suspeito reforça. Enfim, eles lá saberão…

Por esta e por muitas outras, não deixo fugir a oportunidade que o nosso director, involuntariamente, me proporciona. O pior é que continuo sem encontrar o fio condutor e já não me fio muito na imaginação que os anos vão consumindo. Agora que comecei, tenho de ir em frente, como aqueles bravos nadadores que se lançavam da jangada, aproavam à doca, rumavam às Américas para, afinal, acabarem por dar meia volta e por ficar ao sol até arranjarem boleia de barco até à praia do tio Abel. Assim estou eu, todo catita por ter encontrado um pretexto hábil para utilizar o título do bom do Gabriel para acabar aqui a nadar em seco, sem saber como safar a machucha.

Como gosto de trocadilhos, e mais ainda do Garcia Marquez, saltou-me aos olhos o apelo do coronel-director. O seu SOS não me surpreende porque, de facto, as pessoas escrevem cada vez menos. Antigamente, sim, a prática epistolar era intensa, com o ritual do «espero que esta te vá encontrar de boa saúde que nós por cá todos menos mal, graças a Deus». Já não falo nas “cartas de amor”, pedaços de dor, sentidas de alguém”, na voz suave do Alberto Ribeiro.

O telefone, fixo e portátil (sobretudo o sublime e inefável telemóvel) matou a escrita, fez da carta letra morta. Olhem, esta é boa, “fez da carta letra morta”. Cá está o género de frase que ninguém diria ao telefone, é obra que só sai quando se escreve.

O telefone não só mata a escrita como faz definhar o discurso, fomenta a banalidade, cria hábitos de linguagem descuidada, popularucha, feia, até.

Não resisto a uma bicada mordaz no telemóvel, instrumento que tem real utilidade, a espaços, em certas circunstâncias, mas que se tornou um símbolo de piroseira, vaidade ranhosa e saloia. Convém levar o telemóvel na alcofa da praça porque, por vezes, é preciso tomar decisões de alto risco, como seja escolher entre as sardinhas do Júlio Galgão, o espadarte do Álvaro e os canivetes do Bacalhau. Nesses (ou noutros de similar gravidade) é conveniente consultar o marido, a filha, a sogra, enfim, o agremiado familiar em peso. Mas, mais que tudo, é preciso sacar do telemóvel, assumir um ar importante, gesticular a preceito para dar ideia do tamanho das sardinhas, rematar a conferência com vigor e autoridade, baixar a voz e a antena, meter o instrumento na alcofa e acabar por comprar duas postas de maruca congelada…

O telemóvel dá-nos a sensação de salvadores da pátria, de pessoas sobre cujos ombros repousa toda a responsabilidade do Mundo. Não podemos estar um segundo sequer incontactáveis, não podemos meter a viola no saco, ou seja, esquecer o aparelho algures, temos de estar sempre a postos, não vá o Clinton ligar-nos para sermos testemunha da sua indiferença perante as mulheres. Ou o secretário geral da ONU pedir a nossa opinião sobre as sanções ao Iraque. Que será do Mundo se dele nos alhearmos um minuto que seja? Por isso, é vê-los de telemóvel à cintura, quais pistoleiros do Far-West, prontos a disparar o discurso, a vociferar espalhafatosamente, na tomada das decisões que, ali junto à Fortaleza, podem mudar o rumo da História. E a angústia do telemóvel que não toca, já pensaram nisso? É um vexame, é uma vergonha, se ninguém nos liga. Quando o telefone toca dizemos a frase, mesmo se não for o senhor Joaquim Pedro, respiramos de alívio, sentimo-nos de novo importantes e realizados. Quando o silêncio se eterniza, quando as pessoas olham com um sorriso pérfido, de soslaio, o nosso aparelho inútil, mudamo-lo de mão, disfarçamos, quereríamos deitá-lo ao mar, mas se andamos com ele é para ser visto. É um drama, podem crer.

Por fim, em desespero de causa, ligamos nós, nem que seja para as informações. Ou fingimos que nos ligaram, falamos para o boneco. Mas sempre com o gestozinho a condizer…

Com tudo isto, quem sofre é a escrita, e o carteiro só não anda com a mala mais vazia porque distribui abundantemente as Caras, as Marias e outras revistas de elevado teor intelectual que fazem as delícias de gente ociosa e pouco propensa a reflexões metafísicas. Ora quem lê estas coisas, vê televisão a metro e fala demoradamente ao telefone, não escreve. Por isso, não surpreende o apelo do nosso coronel. E é pena que assim seja, não por ele, mas por todos nós, leitores (eu também sou leitor), a quem faria bem escrever, dar sinal, reagir, intervir, sair da passividade da leitura do jornal para uma atitude participativa. Por isso, junto a minha palavra à do nosso director e exorto-vos a que escrevam ao coronel. Por todas as razões e também porque ele é simpático e Giro, não é um militarão de má catadura.

Eu, às vezes, escrevo ao Coronel Barreto, embora não o conheça. Ou melhor, escrevo à minha tia Lucinda que mora na rua Coronel Barreto, personalidade de méritos indiscutíveis, com certeza, mas que ninguém sabe quem foi nem o que fez. Talvez não fosse má ideia darem às ruas nomes de pessoas que têm, de facto, a ver com Sesimbra. A verdade, é que aquela rua, por mais coronéis que lhe chamem, por mais Barretos que lhe enfiem, será sempre a rua da Lucinda. E não seria mais bonito?

Se me permite, meu coronel, retiro-me, missão cumprida…

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* Publicado em O Sesimbrense de Abril de 1998.       

2 comentários:

  1. A esta altura do campeonato já mandei o blogger dar uma curva.

    Queria apenas mandar-lhe um abraço e desejar longa vida à segunda temporada deste magnífico blogue.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    Ana

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  2. Escribatura!? Soa a homenagem póstuma ao Escriba, que ficou soterrado numa conta de e-mail, perdido para sempre nos recessos da cibernética.

    Agora a sério, um grande beijinho, Ana!

    Boa Noite, Ó Mestre!

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