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quarta-feira, 15 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 13

Botas de traves

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, o balneário do Desportivo ficava junto à escola dos rapazes, a uns bons cem metros do campo cercado por eucaliptos, junto ao ribeiro. Lá em cima era o terceiro anel, a eira do Valada...

As botas tinham traves que ressoavam no cimento e fascinavam o miúdo que eu era, quando assistia aos treinos do Desportivo. Vindos do mar, os homens trocavam as botas de água pelas botas de traves e lá iam dar umas voltas ao campo, meia dúzia de exercícios, muita ronha na ginástica e, por fim, a bolinha a saltitar, para contentamento do pessoal que lá ia para fazer horas para o almoço e relatar dois lances da barca, à mistura com piadas aos jogadores que vinham de fato-macaco, os que trabalhavam no gelo ou na oficina, outros de camisola grossa. Depois eram todos iguais, de calções e botas com traves arranjadas pelo tio Carlos Soromenho.

Quando a bola ultrapassava a vedação, a rapaziada corria-lhe atrás, para a apanhar, para a acariciar e, a contragosto, a despachar com um débil pontapé, próprio de quem só estava habituado a bolas de borracha e, excepcionalmente, a alguma de catechumbo manhoso das caixas de rebuçados do tio Chico da Cooperativa.

Era uma festa naquelas manhãs que cheiravam a eucalipto, com as maluqueiras do Ilídio, a queixada proeminente do Baeta pé-de-cChumbo, a peitaça do Manel Santana, a cara de pau do Miguel, a leveza do Isidro, o virtuosismo e a fragilidade do Zacarias, a velocidade do Zé Filipe, os petardos do Zé Broa, a presença do Jesus, os dribles do Barlona, as mãos de ferro e a preguiça do Rogério, o massacre do treino aos guarda-redes com que terminava cada sessão...

Ao domingo, mesmo com chuva, cumpria-se o ritual: almoço de bacalhau com grão, ouvindo A Vida é Assim, de José de Oliveira Cosme, no Rádio Clube Português, e corrida ligeira para ainda assistir à segunda parte das reservas. No filme das minhas recordações, o campo está sempre cheio de lama, mal se vêem as marcações e, na baliza, o intrépido Zé do Olho das defesas acrobáticas. O pessoal pouco liga ao João Manão, ao Azoia, ao Carlos Rosa, ao Joel Fartura ou ao Baguinho, as atenções já estão concentradas na primeira categoria. As vedetas aquecem, as reservas arrastam-se na lama, o Carlos Soromenho já tem o balde da cal à feição para compor os riscos, a eira do Valada impacienta-se, as nuvens negras sobem a serra vindas do mar onde ninguém se arrisca em tempo de vendaval.

Finalmente, ei-los que aparecem no topo da escada de madeira, por trás da baliza de baixo, o Santana à frente, o calção branco imaculado, a camisola cerise luminosa, a bola, a laranjinha, nas mãos. O público despede os reservistas e aplaude os heróis que vão enfrentar o Amora, lutar com garra. O Desportivo era uma questão de honra. Do peão chegam os gritos do Algarvio e na bancada soa a voz de trovão do João Mota...

Eu assistia, hipnotizado, só tinha olhos para a laranjinha, para as botas com traves, bem pretas de graxa, botas que me pareciam mágicas, com as de sete léguas ou as de cano alto do Corsário Negro ou do D’Artagnan. Era como se elas possuíssem íman para atrair a bola, bússola para a dirigir e canhão para a disparar à baliza. Calçar aquelas botas com atilhos brancos e traves que ressoavam no cimento era o meu sonho. Afinal, essa experiência viria a ser uma grande decepção. Nos juniores do Desportivo calcei, finalmente, as botas com traves, umas botas duras, remendadas, refugo das reservas, apesar da boa vontade do tio Carlos Soromenho. Mesmo assim, lá fomos percorrendo o distrito com o entusiasmo e o deslumbramento da nossa mocidade, mal dormindo antes de cada jogo, levados pelo sonho e pelos carros mais velhos do Covas. Era o tempo das ilusões, era bonito. Nunca mais haverá outro...

sexta-feira, 3 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 61

Ninguém escreve ao coronel*

António Cagica Rapaz

Há pouco tempo, o nosso director escreveu no seu editorial que gostaria de receber mais cartas de leitores, com ideias, sugestões, críticas, pareceres, opiniões, enfim, tudo quanto possa ajudar a sentir, perceber, avaliar o impacte do jornal, podendo essas reacções auxiliá-lo numa orientação mais ao gosto do público, pró forma a melhor corresponder às suas expectativas e preferências.

Fez-me essa mensagem pensar num dos livros desse admirável escritor que é Gabriel Garcia Marquez, “Ninguém escreve ao coronel”.

Com efeito, o nosso director é coronel, reformado, mas coronel, sim senhor. Não é verdade que ninguém lhe escreva, pois ele recebe algumas cartas, mas, para tirar o máximo partido da situação, levo a coisa a um ponto extremo e decreto que ninguém escreve ao coronel. Desta forma posso apropriar-me, fugaz e inocentemente, de um belíssimo título de crónica, através de uma usurpação pontual que, afinal, constitui uma pequena homenagem ao autor de “Cem anos de solidão” e, sobretudo, dessa maravilha que é “O amor nos tempos de cólera”. Aproveito a deixa do nosso director, tenho um título bonito, só me falta o resto, o mais difícil, dar corpo ao conceito, compor o ramalhete, levar a carta a Garcia, ou seja, construir uma historieta. Ninguém escreve ao coronel, e então? Que enredo vou eu arranjar a partir daqui, não me dirão? Confesso que não sei. No momento exacto em que escrevo estas palavras não sei, só sei que o título é interessante e gostaria de o aproveitar. Para não acontecer o que se passou com outro título que um dia me veio à cabeça e que nunca cheguei a utilizar. Lembrei-me, assim, sei lá como, de “Aqui jazz”, referência melancólica, mesmo fúnebre, a melodias lânguidas que morrem de madrugadas em salas cheias de fumo, de álcool e solidão. Tal como agora, precisava de arranjar uma trama, uma história para justificar e ilustrar aquele belo título. Deixei para depois, esperei que a inspiração viesse e, um belo dia, vi o “meu” título no “Independente”, encimando uma homenagem a um músico de jazz que morrera. Paciência, acontece, nestas coisas é preciso cuidado.

Em 1971, tive a honra de manter uma rubrica de tonalidade desportiva, no “Diário de Lisboa”. Era o “Livre e Directo”, título sugestivo, com um trocadilho interessante, uma boa ideia, um achado. Um dia, discordei dos métodos pouco ortodoxos do responsável pela secção, e bati com a porta. Volvidos anos, descobri o meu título numa rubrica da Antena 1. Escrevi, pacatamente, com fotocópia de artigos a comprovar a paternidade, e pedi uma explicação. Não me responderam. Mais tarde, há pouco tempo, repeti a tentativa. Silêncio total. E a rubrica lá continua, às 6.ªs feiras. O apresentador, que se chama Costa Martins, terá, porventura, tido a mesma inspiração que eu, não sei. É possível, as palavras já existiam, não me pertencem, mas é legítimo ter alguma dúvida que o silêncio suspeito reforça. Enfim, eles lá saberão…

Por esta e por muitas outras, não deixo fugir a oportunidade que o nosso director, involuntariamente, me proporciona. O pior é que continuo sem encontrar o fio condutor e já não me fio muito na imaginação que os anos vão consumindo. Agora que comecei, tenho de ir em frente, como aqueles bravos nadadores que se lançavam da jangada, aproavam à doca, rumavam às Américas para, afinal, acabarem por dar meia volta e por ficar ao sol até arranjarem boleia de barco até à praia do tio Abel. Assim estou eu, todo catita por ter encontrado um pretexto hábil para utilizar o título do bom do Gabriel para acabar aqui a nadar em seco, sem saber como safar a machucha.

Como gosto de trocadilhos, e mais ainda do Garcia Marquez, saltou-me aos olhos o apelo do coronel-director. O seu SOS não me surpreende porque, de facto, as pessoas escrevem cada vez menos. Antigamente, sim, a prática epistolar era intensa, com o ritual do «espero que esta te vá encontrar de boa saúde que nós por cá todos menos mal, graças a Deus». Já não falo nas “cartas de amor”, pedaços de dor, sentidas de alguém”, na voz suave do Alberto Ribeiro.

O telefone, fixo e portátil (sobretudo o sublime e inefável telemóvel) matou a escrita, fez da carta letra morta. Olhem, esta é boa, “fez da carta letra morta”. Cá está o género de frase que ninguém diria ao telefone, é obra que só sai quando se escreve.

O telefone não só mata a escrita como faz definhar o discurso, fomenta a banalidade, cria hábitos de linguagem descuidada, popularucha, feia, até.

Não resisto a uma bicada mordaz no telemóvel, instrumento que tem real utilidade, a espaços, em certas circunstâncias, mas que se tornou um símbolo de piroseira, vaidade ranhosa e saloia. Convém levar o telemóvel na alcofa da praça porque, por vezes, é preciso tomar decisões de alto risco, como seja escolher entre as sardinhas do Júlio Galgão, o espadarte do Álvaro e os canivetes do Bacalhau. Nesses (ou noutros de similar gravidade) é conveniente consultar o marido, a filha, a sogra, enfim, o agremiado familiar em peso. Mas, mais que tudo, é preciso sacar do telemóvel, assumir um ar importante, gesticular a preceito para dar ideia do tamanho das sardinhas, rematar a conferência com vigor e autoridade, baixar a voz e a antena, meter o instrumento na alcofa e acabar por comprar duas postas de maruca congelada…

O telemóvel dá-nos a sensação de salvadores da pátria, de pessoas sobre cujos ombros repousa toda a responsabilidade do Mundo. Não podemos estar um segundo sequer incontactáveis, não podemos meter a viola no saco, ou seja, esquecer o aparelho algures, temos de estar sempre a postos, não vá o Clinton ligar-nos para sermos testemunha da sua indiferença perante as mulheres. Ou o secretário geral da ONU pedir a nossa opinião sobre as sanções ao Iraque. Que será do Mundo se dele nos alhearmos um minuto que seja? Por isso, é vê-los de telemóvel à cintura, quais pistoleiros do Far-West, prontos a disparar o discurso, a vociferar espalhafatosamente, na tomada das decisões que, ali junto à Fortaleza, podem mudar o rumo da História. E a angústia do telemóvel que não toca, já pensaram nisso? É um vexame, é uma vergonha, se ninguém nos liga. Quando o telefone toca dizemos a frase, mesmo se não for o senhor Joaquim Pedro, respiramos de alívio, sentimo-nos de novo importantes e realizados. Quando o silêncio se eterniza, quando as pessoas olham com um sorriso pérfido, de soslaio, o nosso aparelho inútil, mudamo-lo de mão, disfarçamos, quereríamos deitá-lo ao mar, mas se andamos com ele é para ser visto. É um drama, podem crer.

Por fim, em desespero de causa, ligamos nós, nem que seja para as informações. Ou fingimos que nos ligaram, falamos para o boneco. Mas sempre com o gestozinho a condizer…

Com tudo isto, quem sofre é a escrita, e o carteiro só não anda com a mala mais vazia porque distribui abundantemente as Caras, as Marias e outras revistas de elevado teor intelectual que fazem as delícias de gente ociosa e pouco propensa a reflexões metafísicas. Ora quem lê estas coisas, vê televisão a metro e fala demoradamente ao telefone, não escreve. Por isso, não surpreende o apelo do nosso coronel. E é pena que assim seja, não por ele, mas por todos nós, leitores (eu também sou leitor), a quem faria bem escrever, dar sinal, reagir, intervir, sair da passividade da leitura do jornal para uma atitude participativa. Por isso, junto a minha palavra à do nosso director e exorto-vos a que escrevam ao coronel. Por todas as razões e também porque ele é simpático e Giro, não é um militarão de má catadura.

Eu, às vezes, escrevo ao Coronel Barreto, embora não o conheça. Ou melhor, escrevo à minha tia Lucinda que mora na rua Coronel Barreto, personalidade de méritos indiscutíveis, com certeza, mas que ninguém sabe quem foi nem o que fez. Talvez não fosse má ideia darem às ruas nomes de pessoas que têm, de facto, a ver com Sesimbra. A verdade, é que aquela rua, por mais coronéis que lhe chamem, por mais Barretos que lhe enfiem, será sempre a rua da Lucinda. E não seria mais bonito?

Se me permite, meu coronel, retiro-me, missão cumprida…

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* Publicado em O Sesimbrense de Abril de 1998.