quarta-feira, 5 de outubro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 22

O novo do Restelo

António Cagica Rapaz

Artur Jorge veio ao mundo do futebol vestido de azul, azul e branco do F.C. Porto. Depois, trocou o azul pelo preto e cruzámo-nos nos degraus da Sé Velha, em Coimbra, onde ele chegou no ano em que eu saí, em 1965. Mais tarde, defrontámo-nos no campo e desencontrámo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, ele em Germânicas, eu em Românicas.

Da sua alta linhagem de jogador está tudo dito. Aliando à eficácia o recorte do gesto, a classe ao poder concretizador, Artur Jorge foi um jogador de excepção. E, para além do futebolista, existia já o homem inteligente e lúcido. Aprofundou os seus conhecimentos nas oficinas de Leste, introduziu-lhe o toque de artista boémio latino e aí temos uma fórmula que poderá levar longe as caravelas da Cruz de Cristo.

É difícil e aleatório fazer prognósticos, mas aposto na capacidade de Artur Jorge. Os seus primeiros passos de treinador foram dados à ilharga do grande mestre José Maria Pedroto, e este apadrinhamento é uma garantia, um atestado de mérito. Recentemente, deixou o berço de Guimarães, trocando Afonso Henriques por Vasco da Gama. O primeiro conquistara o território nacional, o segundo foi ao fim do mundo. Curiosa e paradoxalmente, nada quer com os Brasis e prefere recrutar marinheiros lusitanos. Ao remar ao Restelo, Artur Jorge não escolheu o caminho marítimo para a facilidade…

Se ele começou de azul, azul eu fui durante anos, até conhecer o futebol por dentro. Cedo me habituei às apaixonantes narrativas que levantavam ferro na foz do clube, quando os irmãos Rio puseram pé no convés. Pouco a pouco, fui-me familiarizando com os nomes de Artur José Pereira, César de Matos, Pepe, Augusto Silva, Capela, Vasco, Feliciano, Serafim, Amaro, Elói, Bernardo, Quaresma, José Pedro e Rafael. O herói dessas evocações era José Manuel Soares, o idolatrado Pepe, jogador genial ceifado por morte estranha na Primavera da vida.

A roda do tempo foi levando esses nomes e outros surgiram, Pedroto, Matateu, Castela, Figueiredo, Di Pace, Vicente, José Pereira, Perez, etc.

Ainda assisti, numa bela tarde de sol, nas Salésias, ao adeus de Serafim das Neves, em jogo contra o Torriense onde pontificava o admirável Forneri. Na inauguração do Estádio do Restelo, em tarde cinzenta, após manhã chuvosa, fiquei sentado no topo sul, a ver o Belenenses vencer o Sporting…

Nesse tempo, nos anos cinquenta, o Belenenses era um dos quatro grandes, e o título de campeão conquistado em Elvas era uma relíquia, por tudo e por ser o único. Mais tarde haveria uma Taça de Portugal e umas Taças de Honra, ocasionais e subalternas. Embora fosse, reconhecidamente, o menos grande dos quatro, o Belenenses era uma equipa altiva, orgulhosa dos seus pergaminhos, do seu sangue azul, do seu brazão reluzente, velho aristocrata de cofres vazios mas cravo na lapela e monóculo em riste. Era também uma equipa sem sorte que conheceu o píncaro do desespero em 1955 quando o campeonato lhe fugiu nos últimos instantes, crucificada com um golo de Martins, do Sporting.

Foi o canto do cisne, nunca mais o Belenenses voltou a aparecer na recta final para discutir o título. Daí para cá, o velho fidalgo foi-se contentando com algumas sortidas esporádicas, guerrilhas estéreis, lutando mais pela sobrevivência do que pela glória.

Progressivamente, foi-se desfazendo das jóias de família que viu partir com a morte na alma e uns magros tostões no bolso. Abalaram Yaúca para o Benfica, Peres para o Sporting e o Magriço José Pereira, o Pássaro Azul, para o Beira-Mar. A tal fatalidade ancestral abateu-se ainda sobre Vicente, um símbolo do clube, enquanto o mano Matateu envelhecia tristemente, descendo aos trambolhões a escada da degradação.

Inúmeros treinadores passaram pelo Restelo, Fernando Vaz, Riera, Otto Glória, Fuch e mesmo Helénio Herrera, o mago que formou a equipa dos bebés de Belém, com o habitual esquerdo Tito na ponta direita, Inácio a médio de ataque, Paz no meio da defesa e, na extrema esquerda, Bezerra. Para marcar golos lá estavam o grande Matateu e o esperançoso Vítor Silva. Estrearam-se contra o Braga, ganhando por 9-3, com seis golos do Matateu e festival dos três irmãos Mendonça, no outro lado. Um jogo inolvidável, a que tive a felicidade de assistir.

Os anos 60 acentuaram o declínio do Belenenses. As caravelas azuis deixaram de se fazer ao alto mar. Cheias de rombos no casco, receavam a crista das vagas e contentavam-se com a calma podre da doca de Belém. Os timoneiros sucederam-se, marujos entraram e abalaram, mas o Belenenses não tinha ânimo nem ideal para voltar a sulcar os mares profundos da alta competição. As ondas assaltaram a Torre de Belém, isolando o clube cada vez mais, cortando-lhe as saídas, reduzindo-o inexoravelmente à dimensão de agremiação de bairro. Do grande clube restava a saudade e o orgulho ferido.

Mudados foram os equipamentos, com retorno ao figurino romântico do passado, apitos soaram por todo o lado para quartos de hora à Belenenses, mas em vão…

Até que, em 1970, com as promessas de outro mago, ecoaram as trombetas, os arautos percorreram as ruas, as gaivotas sobrevoaram alvoroçadas as caravelas pintadas de novo, o coração belenense voltou a encher-se de esperança. Mas tudo acabou em novo naufrágio, total, definitivo. Os olhares perderam-se no oceano indiferente, o estádio ficou vazio e sombrio, fustigado pelo vento que fazia ondular a bandeira da Câmara Municipal de Lisboa, espinho cravado na alma azul.

Mas o Belenenses nasceu na praia, o sonho renasce em cada maré nova. E se os adeptos do clube da Cruz de Cristo foram sofrendo na carne, ano após ano, desaire atrás de derrota, foram ao mesmo tempo retemperando a fé e moderando a ambição. E hoje o povo azul junta-se de novo na praia, esperando ver as caravelas fazerem-se ao mar. Talvez a Índia seja longe de mais para elas, é provável que a Europa não seja para já. É sabido que na aurora das grandes empresas aparecem sempre os velhos do Restelo, mas a História não se escreve com passividade agoirenta. Artur Jorge saberá até onde poderá ir, aproveitando o vento das boas vontades, navegando à bolina, fugindo às borrascas, evitando o escorbuto das dissidências, conduzindo a nau com mão firme. E talvez daqui a um ano, quando chegados à baía do Jamor, o gajeiro posso gritar do alto da gávea: Taça à vista!

Boa sorte, Artur Jorge, novo do Restelo!

1981


1 comentário:

  1. Bela crónica!

    Ainda me lembro do Cagica Rapaz (creio que na CUF) um jogador fino e elegante.

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