sexta-feira, 1 de julho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 65

Ilusões*
António Cagica Rapaz
Vem de longe, da fundura dos tempos, a ideia de que tudo é ilusório, de que mais não conhecemos que a aparência das coisas, como no mito da caverna de Platão.
Olhando à nossa volta, sem precisarmos de grande reflexão, nem pesquisa, verificamos que reina a falsidade, a hipocrisia e a mentira, na religião, na política, no desporto, no trabalho, nas famílias.
A maioria das pessoas admite ser crente, mas poucos são praticantes. E o que fazem, no seu dia a dia, pouco ou nada tem a ver com a doutrina que dizem professar.
O desporto é constantemente envergonhado por notícias sobre corrupção e doping, manobras e manipulações que os milhões explicam. Iludidos e patetas continuamos a fingir (sabe-se lá porquê) que acreditamos no amor à camisola, na imparcialidade dos árbitros, na honestidade dos dirigentes, na isenção dos comentadores, etc.
A democracia, sendo embora o mal menor, é outra farsa. O povo pensa que é quem mais ordena, apenas porque vota. Só que os políticos, depois das eleições, fazem o que bem entendem, o que lhes convém, esquecendo as promessas feitas. Na véspera de novas eleições recomeça a mascarada, com os partidos a impingirem-nos os candidatos em quem temos de votar, com mais promessas, apertos de mão flácidos e falsos, tacho a quanto obrigas.
Isto, à escala interna, para já não falar no que vai pelo mundo, nas guerras humanitárias, nos ataques cirúrgicos e nos danos colaterais com cujo fumo nos toldam a visão.
Nas famílias vive-se sem se conseguir falar abertamente sobre as coisas, porque é difícil e porque não convém. Importa manter a aparência da união e fraternidade, disfarçando desavenças, ocultando raivas, engolindo patifarias.
As empresas, em nome da competitividade, da produtividade e da globalização, utilizam eufemismos como “reestruturação” ou “plano social” para despedirem à vontade, reduzindo os efectivos e multiplicando os lucros, indiferentes aos milhões de excluídos, marginais, sem abrigo, sem perspectivas, sem ilusões.
Como se tanta mentira, tanto engano e tanta mistificação não bastassem, a tecnologia ainda achou necessário criar a chamada realidade virtual…
Entretanto, neste universo de progresso interactivo imparável, sustentado e estruturante, continuamos a cuspir para o chão, a atirar maços de cigarros pela janela do carro, a deitar lixo no chão ao lado de contentores que não fechamos, a armazenar fogões, sofás e carros velhos à porta de casa, a poluir mares, rios, lagos, o ar, e a morrer alarvemente nas estradas.
A autoridade criou uma imagem de ausência, de ineficácia ou, então, de acção vergonhosa de caça à multa, longe da ideia que nos vendem os políticos de prevenção e presença protectora.
É este o mundo em que vivemos e, infelizmente, nem é caricatura.
No seu último filme (Instinto), Anthony Hopkins desempenha o papel de um antropólogo que encontrou o seu lugar, a paz que buscava na selva, junto dos gorilas que o aceitaram como ser humano, não como um deles. O psiquiatra que foi chamado a “tratá-lo”, acabou por se tornar seu aluno, por o admirar e amar. E por confessar que, nesse contacto, nessa experiência, perdeu algo de essencial: as suas ilusões. Sobre a vida, sobre os valores desta sociedade em que vivemos. Naturalmente…
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*Publicado em O Sesimbrense de 31  de Agosto de 1999.

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