segunda-feira, 11 de julho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 66

Pepita

António Cagica Rapaz

A minha mais remota recordação do Mário Martelo situa-o num recinto de cimento, com tabelas, junto ao velho balneário do Desportivo, nos primeiros anos da década de 50, onde os adultos jogavam voleibol e os miúdos se esfalfavam atrás de bolas de borracha saídas na farinha Amparo ou nos rebuçados das cadernetas.

Volvidos anos, habituei-me a vê-lo entre o Central e o Filipe, em fins de tarde, em noites de lota, junto do Chico Cagica e da Maria Eugénia.

O fim do dia era bonito na esplanada do Central, na suavidade do entardecer, com as senhoras arranjadas, refeitas da praia, o bronzeado a sobressair na alvura das blusas, toda uma atmosfera de elegância preguiçosa, sem pressas, a noite era uma promessa renovada em cada maré.

À discrição e certa timidez do Mário respondia a Pepita com desassombro, vitalidade fulgurante, temperamento de fogo e aura vibrante. A Pepita é a franqueza absoluta, sem rodeios, sem trejeitos nem pruridos, entusiasmo e omnipresença, um vulcão que o tempo não adormeceu. Deu o nome a uma traineira, encheu a baía, encheu Sesimbra, com a sua graça, a sua raça, a sua alegria luminosa, mulher de pirata que não receia o rugir dos canhões nem o fogo de Santelmo. A seu lado, do alto do torreão da Galé, o Mário contempla com enlevo a Pepita que volta do mar carregada de sardinha, festejada por mil gaivotas endiabradas, em voos circundantes, recortadas no céu azul de manhãs que só existem no vértice mais puro e sublime das nossas recordações. Ou das nossas ilusões...

As traineiras já não vêm ancorar junto da fortaleza, a lota esconde-se na doca. Ficou a nostalgia da festa dos archotes, do recorte difuso das barcas ali a duas braçadas da praia, do gelo do Chanoca, do burburinho da lota, do perfume das férias, da magia do Verão, do sortilégio da noite, com botas de água e saltos altos.

O Mário e a Pepita simbolizam uma época, um estilo de vida muito partilhada, muito convivida, na praia, na lota, na esplanada, na rua, sempre com calor, com amigos à volta, com certa exuberância saudável e colorida, porventura a alma espanhola a abanar a melancolia lusitana...

1997

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