quarta-feira, 13 de julho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 17

Djalma vinha gentil

António Cagica Rapaz

Djalma vinha gentil como todos os brasileiros que nos chegam com o colorido do sotaque e a facilidade mágica no toque de bola.

Um dia aterrou em Portugal, acompanhado do fino José Morais, com destino a Guimarães, berço da nacionalidade e terra prometida para futebolistas brasileiros de qualidade. Nunca será de mais lembrar o trio maravilha formado por Carlos Alberto, Ernesto e Edmur que precedeu Caiçara, do pé direito estrondoso, e Lua, até chegarmos aos actuais Lúcio, Nivaldo e Jeová.

Pois o nosso Djalminha lá vestiu o calção preto e a camisola branca dos vimaranenses e cedo deu nas vistas pelo seu sentido de oportunidade e empenho posto na luta. Enquanto Zé Morais era um elegante executante, o Djalma era feio a jogar, mas de uma eficácia assinalável. A evidência de ambos despertou o apetite dos grandes, e o Zé Morais foi juntar-se ao João Morais, com a camisola às riscas horizontais do Sporting, enquanto o Djalma preferiu as riscas verticais do Porto onde trabalhou sob as ordens de Pedroto que, hoje em dia, está em vias de descobrir o caminho de Guimarães para a Europa. Caprichos do futebol…

Tive o Djalma primeiro como adversário e, depois, como companheiro, fugazmente, em Belém. Como adversário foi o mais sujo que encontrei, em pensamentos (imagino), palavras e obras. Nele, o insulto, a cuspidela (é eufemismo) e a cotovelada eram armas que utilizava com a mesma frequência e constância que o drible, a simulação ou o remate.

O recurso a toda a espécie de golpes baixos fazia parte da sua bagagem, do seu estilo, do seu temperamento. Usava-os como outros usam as meias caídas ou a camisola fora dos calções. Era um hábito, um vício, uma peça do seu todo de jogador. O único mérito que lhe reconheço é a coragem desassombrada de mal se portar tanto em casa como fora. Tinha ele a arte e a ratice de cometer as faltas na maré vazia, ou seja, quando a bola andava longe, monopolizando as atenções de árbitro e fiscais de linha. Ou então em lances de bola já perdida em que metia os pitões no defesa que aliviava a sua área.

Depois, havia por parte dos árbitros uma certa complacência que alimentava a lenda Djalma. Como toda a gente sabia que ele era duro e mau, não havia razão para espantos se cuspia ou agredia à socapa. Uma vez, nas Antas, pregou uma bofetada ao Durand, outro amor de criança. O árbitro, Aníbal de Oliveira, zangou-se, ralhou-lhe asperamente, com o dedo indicador em riste, mas o Djalma ficou em campo e continuou a fazer diabruras que levaram o amorável Durand a perder as estribeiras e a devolver a estalada ao remetente. Aí, o dedo indicador do Aníbal voltou a funcionar mas para apontar ao Durand o caminho das cabinas. Critérios…

Como muitos outros, o Djalma defendia a teoria de que dentro do campo vale tudo (até, às vezes, jogar lealmente) mas, cá fora, entre dois copos, somos todos bons rapazes e amigos.

Pela parte que me toca, nunca consegui converter-me a essa religião estranha, com metamorfoses duvidosas. Para mim, um patife lá dentro não pode ser um anjo cá fora. Mas cada um é como é, o juiz supremo não sou eu e não me movem preocupações maniqueístas. Se aqui o evoco é porque me lembrei dele, por acaso, ao correr o pano do palco das recordações onde o Djalma só podia representar o papel de mau da peça. Um mau transparente, não enganava, não escondia os seus instintos, não dissimulava as armas nem atacava pela calada da cobardia. Cuspia de frente, metia o pé, rijo e teso, descarado e sem rebuço. E (que eu saiba) nunca provocou qualquer lesão grave a adversários, enquanto que outros, de falinhas mansas e gestos discretos, foram partindo, regular e impunemente, a sua perna. Sua deles, adversários…

Infelizmente para ele, ficou como o exemplo do jogador indisciplinado, desregrado e imprevidente. O que ganhava de dia gastava à noite, em cabarés soturnos, nos tentáculos do vício. Por ironia do destino, Djalma, que foi o terror dos guarda-redes, acabou por cair entre as mãos dos guardas da prisão onde foi metido por lhe ter sido reconhecida culpa grave num acidente de viação de mortais consequências.

Djalma foi o anti-herói, o pirata da grande área, o emboscado das barreiras e das aglomerações nos pontapés de canto, o conspirador do contra-ataque, a cobra cuspideira da desmoralização do inimigo, o marujo americano do Cais do Sodré, o cliente ruidoso dos apartamentos da Reboleira, o aventureiro sem raízes.

Ficou como o exemplo a não seguir, a caricatura amarga do jogador da bola, do tipo acabado do homem sem réstia de ilusões, um suicida a prazo, um condenado voluntário, coveiro de uma carreira irregular. Para ele o jogo da vida só teve uma parte, e ele jogou-a como os jogadores que correm sem convicção, sabendo antecipadamente que a partida está perdida. E vão queimando o tempo com gestos escusados, irritantes, revoltantes.

Djalma, o triste exemplo, para meditação, do jogador com passado, mas sem futuro…

1981

Sem comentários:

Enviar um comentário