segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 70

O fado

António Cagica Rapaz

Eles conhecem o caminho, aproam à Marisqueira, amarram o cabo a uma mesa, aguentam a abordagem de um ou outro pendura de giga pronta a receber qualquer teca de brandy ou Aveleda, dizem “saúde” várias vezes e, quando a caldeira começa a ferver, levantam ferro, rumo ao Espadarte Clube.

Sobre as magníficas lajes, cadeiras e mesas com velas que emprestam ao ambiente a mortiça luz castiçal das noites de fado em que há no ar o ciúme, a paixão, a navalha e o canalha...

Instalado o rebanho dos turistas, surgem os boémios locais para beber um copo e tentar sacar uma lady, ainda que entradota. Com os copos, a partir da uma da manhã, todas elas têm dezoito anos, afiança o Ernesto Corneta.

Corre-se a cortina e entra o Zé Manel que traz o fatinho azul escuro e gravata. Os guitarristas avançam, o fado instala-se na noite. Os turistas olham com curiosidade, os conquistadores ardem de impaciência.

O Zé Manel, como sempre, canta “É tão bom ser pequenino”. Depois, agarra o copo, molha a garganta e segreda qualquer coisa ao guitarrista. Coloca-se no meio da pista, ar gingão, põe-se em bicos de pés e lança, com desdém “Se queres ir embora, vai”. Claro que ninguém vai porque o Zé Manel tem raça e os turistas aplaudem com calor, Fada very good...

Ainda as palmas não cessaram e já o estrangeirame se vê com uma pandeireta na mão e um reco-reco sobre a mesa. É o folclore que chega, aguardado com ansiedade pelos caçadores especiais que, na penumbra, traçaram o seu plano de ataque.

Mal o António do Porto arranca os primeiros acordes da gaita de beiços, eis que os dados estão jogados e os comandos lançados. Qual suicida, o “Gaivota” é o primeiro. Uma ligeira vénia diante do marido, duas palavras que ninguém entente e a mulher já se levanta para dançar. Elas são civilizadas, simpáticas, desinibidas, é festa, férias são férias. Quando a marcha acaba, a dama não tem tempo de se sentar porque os outros passam ao ataque, todos dançam com a disponível senhora. Agora já não há vénia nem outro protocolo. De braços no ar, aproximam-se da mesa, dançando sozinhos, fazendo o gesto clássico com o dedo indicador a circundar e já está, é à balda, estamos com a nossa gente. O marido, quase grosso, toca desajeitadamente a pandeireta e ri-se com cara de parvo...

Corre-se a cortina e todos os olhares convergem para a porta. Entra o Júlio Silva, o meu rico Júlio, o John Português.

O Zé Manel olha para o Valdemar e diz “Está tudo estragado”.

O Júlio avança, Good night para a direita, Hello para a esquerda e ele aí está na mesa de um casal alemão para aceitar o copo que lhe oferecem. Quando lhe perguntam se vai cantar, franze o nariz, encolhe os ombros e diz que não se sente em forma. O folclore acaba. O Pinhal acende bruscamente uma luz branca e crua, ruidosamente contestada pela assistência, põe de novo o Rose Garden numa rotação errada e alguém grita “Vai pr’a casa, vai”. O Pinhal abala porta fora, sem dar as boas noites ao “Trinitá”...

De novo o fado. Há protestos por parte dos conquistadores que preferem música de dança para tentarem aproximações.

O Zé Manel vai no terceiro parafuso e parece mal disposto.

Lá do fundo, uma voz, “Ó Júlio””.

O Júlio, sorri, falsa modéstia, encolhe de novo os ombros, olha pr’ó Zé Manel, olha pr’ó sô Zé Brás, levanta-se, saúda a plateia que repete “Ó Júlio, ó Júlio” e coloca-se atrás dos fadistas. Afinal, o Júlio sempre vai cantar. Murmura ao ouvido do guitarrista o que todos adivinham e prepara-se para cantar (pois o que havia de ser?) o fado do cigano que matou o cavalo na feira da Agualva. A malta faz coro, o Júlio ganha calor. A certa altura, lá do fundo, uma voz “Ah, fadista!”. Os turistas repetem “Ah, fadista!”, o entusiasmo vai alto. O Júlio ataca com vigor e, quando o cigano se prepara para matar o cavalo, uma voz grita: “Mijão!”.

É o desastre. O Júlio fica branco, o Zé Manel ri-se, as nuvens de fumo parecem de chumbo, o fado seca na garganta do fadista, mata o cavalo, não mata o cavalo? A sua expressão é dura, finca os dedos nas costas dos guitarristas, acaba com o cavalo e vai-se embora. Os turistas olham-se, olham-no, sem compreender, o Júlio está a ferver. De repente, o autor da provocação levanta-se e vai ter com o Júlio.

- Boa noite, ó mestre!

- Ah, foste tu? Julgava que era o “Gaivota”...

E o fado continua, ainda a noite é uma criança, é tudo no gozo, para engatar o Júlio. Às tantas, tudo canta, minha gente. O Zé Manel bisa “É tão bom ser cavalo”, perdão, “É tão bom ser pequenino”, e, quando o “Trinitá” fecha a porta, já o chamador gritou pela companha toda...

1983

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