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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 21

O homem das Arábias

António Cagica Rapaz

O Boeing 747 aterrou na Portela ao cair da noite, depois de sobrevoar a ponte sobre o Tejo onde os carros se cruzavam como formigas ou pirilampos, contra o relógio e a favor da telenovela.

Os secretários particulares do Xeque trataram das formalidades aduaneiras, e as dezoito malas de Sua Alteza foram de imediato metidas numa carrinha que as levou para o hotel Ritz onde duas suites esperavam a comitiva.

O Rolls cinzento metalizado arrancou suavemente, deixou para trás a Rotunda do Relógio e misturou-se com os outros carros na avenida do Brasil. Sua Alteza o Xeque Ali Aulad honrava Lisboa com a sua presença…

O Xeque tinha as malas em forma de barril, a sua estatura era normal e a gordura super. Ali Aulad fazia acompanhar pelo primo Ben Gala, também ele descendente do venerando emir Al Fayate, irmão do todo poderoso Al Manak.

A notícia da chegada do homem das Arábias fora abundantemente divulgada por todos os órgãos de informação. A televisão instalara todo o material necessário e mobilizara uma equipa de reportagem para transmitir em directo a chegada da eminente personalidade. Entre sorrisos e salamaleques, o Xeque Ali Aulad (via intérprete) declarou que a sua estada entre nós significava para ele um regresso às origens e que tencionava efectuar uma peregrinação a lugares de grande significado histórico e simbólico como Al Piarça, Al Kântara, Al Bufeira e Ben Fika. Em seguida, confirmou o ambicioso projecto de constituir uma sociedade de responsabilidade incalculável destinada à exploração paralela e simultânea do turismo e do futebol, a FUTOTEL.

O seu grande sonho era possuir uma poderosa equipa de futebol capaz de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Por diversas razões, a importação de vedetas em declínio acabara por se revelar desastrosa, sobretudo pelas dificuldades de adaptação ao clima e ao modo de vida. Arábia só dita porque vista e vivida é uma aflição, admitiu o Xeque. Por isso, em vez de aliciar jogadores para torrarem ao sol do deserto, resolveu trazer os petrodólares e fundar uma equipa na Europa, visto que uma formação no Médio Oriente jamais poderia ser campeã europeia, por óbvias razões de ordem geográfica que não escaparam à perspicaz análise de Ali Aulad.

A escolha do nosso País para berço dessa organização e sede do Clube, deveu-se aos laços de sangue existentes entre os dois povos e ao fascínio que Portugal sempre exerceu sobre ele. E mais não se dignou dizer Sua Alteza que, após profunda reverência, se retirou para os sumptuosos aposentos a fim de efectuar a sua oração da noite, virado para a Aldeia do Meco…

No dia seguinte, todos os jornais desportivos apresentavam um anúncio de página inteira que rebentou como uma bomba no meio futebolístico português. O Xeque Ali Aulad propunha-se comprar, perdão, contratar a qualquer preço trinta jogadores, três treinadores, três secretários técnicos, três preparadores físicos e três massagistas, os melhores do mercado, dando-se alguma preferência aos que tivessem nomes de consonância árabe. Sabendo que, fatalmente, todos estariam já ligados por contrato a clubes portugueses, Ali Aulad proponha-se pagar quanto fosse preciso para obter as necessárias desvinculações. Assim se lançava uma operação diabólica de consequências delirantes…

No próprio dia, o hall do Ritz enchia-se de caras conhecidas, jogadores, dirigentes, treinadores, massagistas e endireitas vindos dos quatro cantos do país. Os campos ficaram desertos, ninguém apareceu aos treinos, o futebol português parou, ficou suspenso de uma decisão, de um gesto magnânimo, de um cheque do Xeque.

Os secretários particulares de Sua Alteza convidaram quatro jornalistas da especialidade para constituírem um júri para apreciar as credenciais dos candidatos. Começaram a mover-se influências, cunhas, pedidos, súplicas, um inferno, um atropelo de Al Binos, Al Meidas; Al Banos, Al Fredos, Al Ves, Ben Tos, Al Hinhos, Al Bertos e até um certo Al Iveira que garantia ser craque de respeito. Alguém afiançava que o treinador ideal seria Al Lison, quando fez uma entrada tumultuosa um tal Mourinho que gritava histericamente, que ninguém merecia mais do que ele, porque era mouro, mais que mouro, Mourinho. Poderia ser treinador, mas se fosse preciso ainda fazia uma perninha como guarda-redes, sendo homem para se prestar a vários papéis. Ninguém ficou surpreendido…

O hall do hotel mais parecia a Bolsa, com os valores em órbita, acções em alta e outras em queda, vertiginosa e desesperadamente. Choviam propostas, respostas, contrapropostas e promessas. Jogadores que ganhavam trinta contos por mês já se viam a auferir trezentos, e os desta escala multiplicavam por vinte. Era a caverna do Ali Bábá, só que os ladrões eram muito mais de quarenta.

Do Porto chegou, radiante, Ali Queta que veio descobrir o primo Ali Kate que julgava desaparecido, enferrujado. Estava-se em pleno delírio, quando o craque Al Bino arregalou os olhos. Seria possível? Estaria a sonhar? Seria miragem? Antes que a visão se esfumasse, já a futura estrela petrolífera se apressava a assinar o contrato, sofregamente, sem ler, de cruz, embriagado pelas palavras, deslumbrado, sem se aperceber das areias movediças do documento. Á saída, o ambiente era o mesmo do átrio de um liceu em dia de exames, com a euforia dos aprovados e a tristeza dos chumbados. Os novos ricos da bola desceram ao Fontória e ao Nina, e festejaram o acontecimento com champanhe que lhes soube a petróleo.

Quando, no dia seguinte, acordaram, o sol golpeou-lhes os olhos, o barulho do eléctrico bombardeou-lhes os ouvidos e a boca sabia-lhes a areia do deserto. E foi então que o Al Meida disse ao Al Berto. “Eh, pá, que história é essa de bater com o coirão? Os gajos disseram que a malta tem de dobrar a parada se não suarmos o coirão? Parece que não confiam na gente!”

Quando a Tina e a Dina se levantaram, os rapazes voltaram ao Ritz e pediram para falar com o secretário particular, Al Truísta. Intrigava-os aquela história do coirão porque estavam habituados a dar o litro, a ir a todas, a dar no osso, a esfarraparem-se todos e não admitiam que alguém pusesse em causa a sua entrega ao jogo. Então o Al Truísta sorriu cinicamente e disse-lhes que eles não tinham lido bem o contrato. Com efeito, eles nada tinham lido, assinaram apenas com os números e a visão das notas a bailarem-lhes diante dos olhos. Ora uma cláusula do contrato previa que todo o contratado se comprometia a saber de cor o Alcorão um mês após a assinatura do documento vinculativo. Caso o livro sagrado dos maometanos não fosse devidamente decorado, estava previsto que Sua Alteza Ali Aulad teria direito a uma indemnização por danos e perdas, morais e materiais, igual a dez vezes o valor fixado no compromisso. Só isto. E assim se concretizava uma monumental burla devidamente legalizada, um conto do vigário maior do que o Saará.

A Polícia, alertada de imediato, nada pôde fazer pois os craques haviam assinado de sua livre vontade, e as assinaturas haviam, entretanto, sido reconhecidas. Treinadores, jogadores, dirigentes e massagistas deitavam as mãos à cabeça e batiam com ela nas paredes do Ritz. Os chumbados da véspera vinham gozar o prato e houve cenas certamente chocantes. Intervieram rapidamente advogados para tentar resolver a delicada questão e abafar o escândalo que cobria de vergonha e ridículo o futebol indígena. Por fim, os secretários de Sua Alteza condescenderam e propuseram uma rescisão amigável que, ainda assim, custou a cada um, no mínimo, quinhentos contos. Os mais gulosos, os que pensavam ir ganhar fortunas, tiveram de desembolsar para cima de mil e quinhentos contos.

Sua Alteza jantou em Al Fama, passeou na Mouraria, depois recolheu ao Ritz e nunca mais foi visto. No dia seguinte, as empregadas da limpeza do hotel encontraram nas suites vários turbantes, barbas postiças e um maço de Três Vintes.
Os falsos árabes sumiram-se e ficaram os verdadeiros camelos. O recomeço dos treinos fez-se com beiço caído e risinhos irónicos…


1981

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 20

Distâncias

António Cagica Rapaz

Um dos temas que maior curiosidade desperta no público é o das relações entre treinador e jogadores. Para uns, o modelo deve ser um Yustrich autoritário, para outros um Cândido de Oliveira professoral ou, ainda, um fantasista tipo Helénio Herrera. São todos eles figuras do passado, mas a bola continua a ser redonda. Os jogadores têm agora mais bigodes do que antes, mas ainda não usam calça comprida, antes persistem em jogar de calção, símbolo da brincadeira que, basicamente, o futebol deve constituir, diversão saudável, encontro e festa, desporto sempre, apenas um jogo.

O terceiro homem (além do treinador e do jogador) é o dirigente, responsável pela contratação dos outros dois. E por ele nos chega, ano após ano, a aberração do despedimento do treinador que, sendo o mesmo homem, o mesmo profissional, deixa de ser considerado competente, às vezes, ao fim de poucos meses.

Por isto ou por aquilo, é sempre o treinador a vítima, como se os jogadores fossem perfeitos e impolutos. Assim, já saíram de Belém o belga Henri Dupireux e três brasileiros, Cláudio Garcia, Paulo Roberto e René Simões.

Como dizia Eça, é uma bengalada higiénica, tão cheio está o futebol português de técnicos e jogadores brasileiros. Nomes como os de Otto Glória, Zézé Moreira ou Flávio Costa merecem respeito, mas hoje a quantidade abafa a qualidade e compra-se gato por lebre.

No Paris Saint-Germain, aconteceu uma coisa curiosa, com uma despromoção para cima. Devido aos maus resultados, o técnico Gerard Houiller (antigo professor de inglês) foi afastado do comando da equipa, mas promovido a manager, passando a supervisar toda a organização do futebol. Há dois anos foi campeão de França e elogiado não só pelo título mas igualmente pela forma como conduziu a equipa, com espírito de união e conquista, solidariedade e ambição. Porém, os resultados não perdoam e o mesmo homem, com os mesmos métodos, é agora afastado…

A propósito deste tema, recordei-me de duas notícias que li há pouco tempo. Em Paris comentava-se abundantemente a atitude de Artur Jorge, frio e distante para com os seus jogadores, após a derrota em Cannes.

Ao mesmo tempo, um jornal português informava que, no início desta época, o treinador desejado pelos jogadores do Benfica era Quinito.

Achei curioso este paralelo e, porque o tema é interessante, aqui deixo o meu ponto de vista, tanto mais que conheço bem os dois treinadores em questão.

No relacionamento com os jogadores não há receita única. O treinador é um homem, um indivíduo, com o seu temperamento, o seu carácter, as suas convicções, os seus princípios, os seus valores. E cabe-lhe dirigir vinte ou trinta homens que são outros tantos indivíduos com as suas particularidades. Daí, a evidente dificuldade da função de treinador.

Saía eu de Coimbra, em Junho de 1965, quando o Artur Jorge chegou. Não chegámos a ser companheiros de equipa, fomos apenas adversários. Quanto ao Quinito, foi meu companheiro no Belenenses, em 1971.
Já nesse tempo, Quinito era um hedonista, dentro e fora do futebol que encarava como uma actividade eminentemente lúdica, na sua acepção pura de jogo, brincadeira, representação, pantomina, fonte de prazer. Evidenciava uma alegria permanente e contagiante que não o impedia de ser um belíssimo jogador e um bom colega. Como treinador, não perdeu a fantasia nem o sorriso. Acrescenta-lhe alguma poesia, um grãozinho de loucura calculada, e aí temos o belo Quinito que consegue criar um clima agradável, com a adesão e a cumplicidade dos jogadores que lhe são dedicados, um bocado no estilo Robin dos Bosques e companhia.
Artur Jorge é diferente, tem o perfil ideal para treinador, formado em boa escola, e assenta os seus conhecimentos técnicos num passado de futebolista de eleição.

Nas relações com os jogadores, Artur Jorge passa por ser distante, pouco dado a intimidades. Neste cotejo benigno, há quem veja na toada familiar, no tom coloquial de Quinito um estilo de outro tempo em que o futebol era uma romaria dominical, quando os jogadores eram modestamente pagos e se vivia do amor à camisola, do bairrismo, da carolice, do espírito de sacrifício. Era o tempo da palmadinha nas costas, da vibração intensa, do ideal poético, era a Académica da laranjada como prémio de jogo.

Hoje o futebol é uma máquina poderosa e infernal que movimenta milhões e que não se compadece com nem recorre a sentimentalismos piegas. O treinador não tem que andar de braço dado com os jogadores. Estes são profissionais bem pagos, às vezes a peso de oiro, e a única coisa que se lhes pede é profissionalismo. Não há lugar a cumplicidade de larachas nem copos, não há choradinhos mas sim e apenas aplicação total de profissionais a quem se exige o cumprimento de uma missão. Só isso.

Depois, são os resultados que falam e aprovam ou reprovam os métodos. Virtualmente, pode haver cambiantes mas, na prática, processos bons são os que levam à vitória. E amanhã, os mesmos processos poderão ser banidos se não produzirem os mesmos efeitos, se não conduzirem ao triunfo e à glória.

Por isso, não há fórmula única, e o Espinho não é o F.C. Porto. Quinito terá razão em ser jovial enquanto ganhar, tal como Artur Jorge poderá ser (se o é) distante enquanto conquistar títulos. Os vencedores têm sempre razão…


Nota - Seis meses depois, Quinito assinava pelo F.C. Porto

1987

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 19

Fado

António Cagica Rapaz

O sol entra tarde na estreita rua da Esperança onde as manhãs frescas trazem consigo um cheirinho a maresia. Na taberna do Manel o fado substitui o sol preguiçoso, e o Toni de Matos canta os amores difíceis da Maria do Céu (que nasceu e cresceu na Madragoa) com o Chico que mais ama o mar do que o Céu da Maria.

Enquanto a tia Lucília pendura a gaiola dos canários à porta, os miúdos partem para a escola, assobiando, e o Tonecas, ainda a mastigar o papo-seco matinal, dirige-se para a oficina do sô Silva, bate-chapa e retoques na pintura. É uma manhã de Lisboa…

À hora de almoço, o Tonecas corre para casa onde a mãe já fritou os carapaus. A rua adquire a sua animação habitual, com as vizinhas em diálogos cruzados de janela a janela, entre duas camisas penduradas. Na taberna do Manel é ainda o fado, quente e aristocrático, de Maria Teresa de Noronha, até ao noticiário da uma, na Emissora.

Depois de comer, o Tonecas mete duas tangerinas nas algibeiras largas do fato-macaco e vai sentar-se ao sol, no passeio, em frente da casa da Mariana. É um namora discreto, quase envergonhado…

Quando a noite começa a cair sobre Lisboa, a luz da tasca do Manel recorta-se nas pedras da rua e ouve-se a voz do Carlos Ramos pedindo a alguém para não vir tarde.

A vida decorria tranquila e rotineira quando, um dia, na taberna do Manel, à hora do vinho e à luz de um fado do Tristão da Silva, o sôr Alfredo (sócio dos Águias da Luz e conhecedor em coisas de bola) se abeira do Tonecas e o convida para um treino, à experiência, com os craques do seu glorioso clube. O Tonecas olha-o, surpreendido e intimidado, incrédulo e desconfiado. Ele num treino com as vedetas do futebol?! E então? – replica o sôr Alfredo que o observara dias a fio, à hora do almoço, após o paleio e o galanteio. Jeito não faltava ao Tonecas, disso ninguém duvidava, só ele próprio descria. O sôr Alfredo insiste, afiança, garante, aposta, seguro da sua experiência e do seu faro infalível.

O Tonecas, de garrafa na mão e cabeça à roda, passa diante da casa da Mariana sem dar os dois habituais toques na vidraça, mais em jeito do que em ousadia…

Enquanto come o feijão com arroz e o pão com chouriço, vai imaginando, através da garrafa mágica de tinto da quartola do Manel, o que irá ser o treino com os ídolos da sua juventude. Até aqui o futebol tem sido a sua grande e única paixão, mas uma adoração distante, marcada pela timidez e pela modéstia de filho de um embarcadiço que se esqueceu de regressar, e pelas nódoas de óleo no fato-macaco de bate-chapa de bairro.

Depois de jantar, vai dar uma volta, desce à beira do Tejo e contempla os horizontes que a eventualidade imprecisa de um treino já traça no seu espírito alterado. Depois de beber um bagaço arrojado ao balcão do Manel, e mais tarde do que o costume, volta a casa onde a mãe ficara a ouvir o teatro da Emissora.

Mal adormece e já se vê de camisola vermelha, correndo, driblando, marcando golos no estádio vazio onde só o sôr Alfredo e meia dúzia de adeptos ferrenhos aplaudem com entusiasmo. No final do treino, os craques felicitam-no, antes do melhor duche da sua vida. Sorri e regala-se sob a água quente, sente-se um herói. A mão treme-lhe ao desenhar o risco ao lado nos cabelos molhados que descem sobre um rosto iluminado por um sorriso resplendente. Dois directores esperam-no ao lado do sôr Alfredo e, ali mesmo, fica combinado um jantar no fim do qual, entre o charuto e o uísque, ele assina o contrato. No seu devaneio onírico, o Toneca vê-se ao volante de um carro descapotável como nunca entrara na oficina do sô Silva, tendo ao lado uma loiraça bem diferente da doce mas modesta Mariana. Num apartamento moderno, para as bandas de Benfica, anda numa roda viva, sem tempo para uma saltada à rua da Esperança nem memória para a mãe, os amigos ou a Mariana. Esqueceu o fado, as guitarras vibrantes e o tinto do Manel, tendo passado a frequentar cabarés duvidosos, com música ruidosa, mulheres espampanantes e champanhe de segunda.

Até que dá por si a esbanjar dinheiro e saúde, afastado da equipa, desterrado para divisões secundárias, no soturno esquecimento de tabernas tristes, sem fado nem amigos. Vê a sua pobre mãe envelhecida e prostrada, Mariana resignada e infeliz, casada com outro, enquanto o sô Silva trespassa a oficina.

Ao acordar, salta vigorosamente da cama, aperta nos braços e beija repetidamente a mãe surpreendida, e corre a casa da Mariana. Grita-lhe que quer casar com ela e, ao chegar ao trabalho, exige que o sô Silva lhe garanta que nunca há-de trespassar a oficina. Nesse dia há mais fado no ar, o sol brilha com mais fulgor na rua da Esperança, o Tonecas faz malabarismos com a bola de borracha, depois do almoço, no meio da rua, e é levado em ombros pelos colegas, contagiados pela sua alegria.

E tudo isto para grande espanto do sôr Alfredo que continua sem perceber por que motivo o Tonecas não quer ir ao treino e se recusa a ouvir os prognósticos doirados sobre o seu futuro de vedeta dos Águias da Luz…

PS – O Tonecas e a Mariana casaram, tiveram muitos meninos e foram muito, muito felizes.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 18

Eles não sabem

António Cagica Rapaz

Só a partir dos anos setenta os salários dos futebolistas começaram a subir de forma sensível. Em 72, salvo erro, o peruano Cubillas veio ganhar, no Porto, uns escandalosos 150 contos por mês, imagine-se…

Progressivamente, foi ficando mais funda a vala que separa o vencimento médio, digamos assim, da população e o ordenado das vedetas de futebol. Por outras palavras, até àquela altura, o que ganhava um jogador de futebol, mesmo dos melhores, não impressionava, não chocava nem causava incompreensão face à realidade das condições de vida no nosso País.

Também nesse tempo, e por força da lei da opção, eram raras as transferências dos jogadores mais emblemáticos que permaneciam toda a vida no mesmo clube de que se tornavam verdadeiros símbolos. Tal sucedeu com José Águas, Hernâni, Travassos ou Artur Vaz, por exemplo. Outros ainda acabaram por sair, em final de carreira, mas ficaram para sempre ligados ao seu clube de origem, como sucedeu com o Matateu ou o Eusébio.

Talvez por estas razões, as relações entre adeptos e jogadores eram de uma natureza afectiva diferente, havia admiração, claro, era como se fossem da família, mas, ao mesmo tempo, havia distância, certa forma de pudor, algum mistério, cada um no seu lugar. O adepto não ia para a bancada exibir-se, não era actor, apenas espectador, vibrante, apaixonado, mas apenas figurante.

Nos anos sessenta, fui testemunha de um episódio que nunca esqueci. Jogando contra um dos grandes, no seu estádio, perfilámo-nos para a habitual saudação ao público numeroso que aplaudia delirantemente os seus ídolos. Momentos depois, apercebi-me de que alguns deles, enquanto agitavam os braços, agradecendo os aplausos, pronunciavam palavras de desprezo e escárnio para os adeptos que, naturalmente, lá longe, nas bancadas, nada podiam ouvir, apenas viam gestos e sorrisos postiços.

Admito que houvesse boa dose de irreverência e chalaça, mas ficou-me essa imagem de sobranceria e desrespeito pelos ingénuos admiradores…

Por isso me causa uma impressão estranha ver homens, mulheres e crianças, autenticamente mascarados, com a cara e o cabelo pintados, com ornamentos bizarros, chifres e guizos de bobo. E são as bandeiras, os cachecóis, as faixas, as gaitas, tudo em nome de uma ilusão de adesão, de uma pretensa pertença, de uma gigantesca comunhão com ídolos mercenários e milionários que nenhum laço afectivo liga ao clube e, menos ainda, aos adeptos. Que pensará deste carnaval um jogador que ganha vinte ou trinta mil contos por mês? Jogador que actua hoje no Porto, amanhã estará no Sporting, a seguir no Benfica? Que quimeras, que motivações levam o português médio, de emprego precário, a contribuir com dinheiro para clubes geridos por dirigentes de integridade tantas vezes duvidosa, a entregarem-se de corpo e alma àquelas celebrações surrealistas?
Que frustrações, que desesperanças, que recalcamentos se escondem por baixo das pinturas e dos bonés com chifres ou guizos? Será, porventura, o fascínio do futebol que, de forma insólita, discutível, mas sempre apaixonante, ajuda a esquecer angústias e desencantos.

A televisão, a rádio e os jornais só fazem eco de palavras estudadas, de discursos estereotipados e monocórdicos dos ídolos. Mas o que eles realmente pensam e dizem em privado, do alto dos seus milhões, isso os ingénuos adeptos não sabem. Nem sonham…

quarta-feira, 13 de julho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 17

Djalma vinha gentil

António Cagica Rapaz

Djalma vinha gentil como todos os brasileiros que nos chegam com o colorido do sotaque e a facilidade mágica no toque de bola.

Um dia aterrou em Portugal, acompanhado do fino José Morais, com destino a Guimarães, berço da nacionalidade e terra prometida para futebolistas brasileiros de qualidade. Nunca será de mais lembrar o trio maravilha formado por Carlos Alberto, Ernesto e Edmur que precedeu Caiçara, do pé direito estrondoso, e Lua, até chegarmos aos actuais Lúcio, Nivaldo e Jeová.

Pois o nosso Djalminha lá vestiu o calção preto e a camisola branca dos vimaranenses e cedo deu nas vistas pelo seu sentido de oportunidade e empenho posto na luta. Enquanto Zé Morais era um elegante executante, o Djalma era feio a jogar, mas de uma eficácia assinalável. A evidência de ambos despertou o apetite dos grandes, e o Zé Morais foi juntar-se ao João Morais, com a camisola às riscas horizontais do Sporting, enquanto o Djalma preferiu as riscas verticais do Porto onde trabalhou sob as ordens de Pedroto que, hoje em dia, está em vias de descobrir o caminho de Guimarães para a Europa. Caprichos do futebol…

Tive o Djalma primeiro como adversário e, depois, como companheiro, fugazmente, em Belém. Como adversário foi o mais sujo que encontrei, em pensamentos (imagino), palavras e obras. Nele, o insulto, a cuspidela (é eufemismo) e a cotovelada eram armas que utilizava com a mesma frequência e constância que o drible, a simulação ou o remate.

O recurso a toda a espécie de golpes baixos fazia parte da sua bagagem, do seu estilo, do seu temperamento. Usava-os como outros usam as meias caídas ou a camisola fora dos calções. Era um hábito, um vício, uma peça do seu todo de jogador. O único mérito que lhe reconheço é a coragem desassombrada de mal se portar tanto em casa como fora. Tinha ele a arte e a ratice de cometer as faltas na maré vazia, ou seja, quando a bola andava longe, monopolizando as atenções de árbitro e fiscais de linha. Ou então em lances de bola já perdida em que metia os pitões no defesa que aliviava a sua área.

Depois, havia por parte dos árbitros uma certa complacência que alimentava a lenda Djalma. Como toda a gente sabia que ele era duro e mau, não havia razão para espantos se cuspia ou agredia à socapa. Uma vez, nas Antas, pregou uma bofetada ao Durand, outro amor de criança. O árbitro, Aníbal de Oliveira, zangou-se, ralhou-lhe asperamente, com o dedo indicador em riste, mas o Djalma ficou em campo e continuou a fazer diabruras que levaram o amorável Durand a perder as estribeiras e a devolver a estalada ao remetente. Aí, o dedo indicador do Aníbal voltou a funcionar mas para apontar ao Durand o caminho das cabinas. Critérios…

Como muitos outros, o Djalma defendia a teoria de que dentro do campo vale tudo (até, às vezes, jogar lealmente) mas, cá fora, entre dois copos, somos todos bons rapazes e amigos.

Pela parte que me toca, nunca consegui converter-me a essa religião estranha, com metamorfoses duvidosas. Para mim, um patife lá dentro não pode ser um anjo cá fora. Mas cada um é como é, o juiz supremo não sou eu e não me movem preocupações maniqueístas. Se aqui o evoco é porque me lembrei dele, por acaso, ao correr o pano do palco das recordações onde o Djalma só podia representar o papel de mau da peça. Um mau transparente, não enganava, não escondia os seus instintos, não dissimulava as armas nem atacava pela calada da cobardia. Cuspia de frente, metia o pé, rijo e teso, descarado e sem rebuço. E (que eu saiba) nunca provocou qualquer lesão grave a adversários, enquanto que outros, de falinhas mansas e gestos discretos, foram partindo, regular e impunemente, a sua perna. Sua deles, adversários…

Infelizmente para ele, ficou como o exemplo do jogador indisciplinado, desregrado e imprevidente. O que ganhava de dia gastava à noite, em cabarés soturnos, nos tentáculos do vício. Por ironia do destino, Djalma, que foi o terror dos guarda-redes, acabou por cair entre as mãos dos guardas da prisão onde foi metido por lhe ter sido reconhecida culpa grave num acidente de viação de mortais consequências.

Djalma foi o anti-herói, o pirata da grande área, o emboscado das barreiras e das aglomerações nos pontapés de canto, o conspirador do contra-ataque, a cobra cuspideira da desmoralização do inimigo, o marujo americano do Cais do Sodré, o cliente ruidoso dos apartamentos da Reboleira, o aventureiro sem raízes.

Ficou como o exemplo a não seguir, a caricatura amarga do jogador da bola, do tipo acabado do homem sem réstia de ilusões, um suicida a prazo, um condenado voluntário, coveiro de uma carreira irregular. Para ele o jogo da vida só teve uma parte, e ele jogou-a como os jogadores que correm sem convicção, sabendo antecipadamente que a partida está perdida. E vão queimando o tempo com gestos escusados, irritantes, revoltantes.

Djalma, o triste exemplo, para meditação, do jogador com passado, mas sem futuro…

1981

quarta-feira, 6 de julho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 16

Calcanhar daqueles

António Cagica Rapaz

Toda a gente sabe que se o nariz de Cleópatra tivesse sido diferente, a História teria sido escrita de outra forma.

A memória colectiva dos povos tem os seus símbolos, as suas referências, como são a arca de Noé, os trabalhos de Hércules, o cavalo de Tróia, a caverna de Platão, a banheira de Arquimedes. Ou o calcanhar de Aquiles.

Os heróis modernos também têm os seus sinais distintivos, os seus pontos fortes e fracos, a boca de Brigitte Bardot, os olhos de Elizabeth Taylor ou a mão do Maradona.

E temos agora o calcanhar de Madjer que lançou o Porto para a vitória na Taça dos Campeões Europeus.

O realismo mostra que os golos é que garantem os triunfos, e o importante é levar a bolinha a ultrapassar completamente a linha de baliza. Para tanto, podem os jogadores utilizar todas as partes do corpo, à excepção dos braços e das mãos, não sendo sequer proibido o recurso ao pé (mesmo chato) e à cabeça.

No pé, podemos identificar cinco ângulos de disparo. Primeiro, temos o bico, geralmente utilizado para a vulgar biqueirada, gesto pouco ortodoxo, próprio de rematador barato que chuta para onde está virado. Se no râguebi a biqueirada é atitude estudada e milimetricamente calculada, no futebol é, em geral, sinónimo de nabice e aselhice. A vantagem que oferece é a de surpreender toda a gente, a começar pelo próprio chutador e a acabar no guarda-redes. Porém, nem sempre a biqueirada é cega. Por vezes, assistimos a bicos inteligentes, como um que o genial Susic nos ofereceu, recentemente, no Parque dos Príncipes, frente ao Marselha. Foi um toque subtil, com o bico, sim, mas cheio de intenção e classe…

A seguir, temos a parte de dentro do pé, a concha, que é a mais utilizada para controlar a bola, para a afagar e para executar o passe curto, pela certa.

O peito do pé serve para o passe comprido, o despacho vigoroso e o remate forte mas nem sempre feio.

O exterior do pé é todo ele um poema, marca de talento, assinatura dos predestinados, toque de classe, efeito garantido, gesto inscrito na passada, sem quebra de ritmo, sempre em progressão, com elipses envolventes e certa displicência.

O grande mestre, o executor de obras raras, de lances sublimes, era Franz Beckenbauer, o até hoje insuperado Kaiser.

Tive a felicidade de ter jogado ao lado de um segundo Beckenbauer que se chama Rui Rodrigues, maravilhoso jogador a quem faltou apenas ambição para atingir alta craveira internacional. O Rui era um mago do futebol, dois pés perfeitos, todo ele suavidade, leveza, arte pura no toque da bola, desarme subtil, passe infalível, curto e à distância (exterior do pé), uma elegância rara, um principezinho do futebol. Não há hoje (retirado que está Beckenbauer) um libero que chegue aos calcanhares de Rui Rodrigues. E por falar em calcanhar…

O quinto ângulo de disparo é o menos usado e o mais ousado, delicado, sensível, colocado na retaguarda do pé, sem ângulo de visão. O toque de calcanhar é o golpe a só tentar pela certa, sem arriscar, porque se quando resulta é bonito, aplaudido e sublimado, ao contrário, quando falha provoca risada e recriminações.

Por isso, a responsabilidade de Madjer era enorme naquele lance memorável. Se hoje o cobrem de flores e elogios, imagine-se o que seria se a bola sai ao lado e o Porto perde a final!

É assim o futebol, obriga a reflexos apurados, a reacções instintivas, a pensamentos ágeis. O calcanhar de Madjer foi a rampa de lançamento do Porto no espaço sideral das constelações refulgentes do futebol, num lance de genial audácia que resgatou uma época, que colocou o Porto nos cornos da lua, nos píncaros da fama.

Mas seria injusto esquecer a equipa, pois foi o triunfo do colectivo, sendo de sublinhar a acção de Artur Jorge que pôs em campo um esquema perfeito, lançando os seus golpes na altura apropriada. Mérito seu igualmente a força moral que animou a equipa, ambição consciente, vontade de ir mais além.

O calcanhar de Madjer fica na história porque deu golo, porque foi a viragem do jogo, porque foi o princípio do triunfo, mas sobretudo porque foi um gesto insólito, teve o cunho do artista rebelde, do poeta incompreendido, do matador arrojado.

Foi uma aposta tremenda, o pescoço no cepo, dobrado contra singelo, tudo por tudo, atrevimento inaudito. Jogou e ganhou, para bem de todos nós, parabéns Madjer.

Paradoxalmente (como nos filmes que acabam mal) o treinador vai sair do Porto e o herói argelino quer deixar as Antas. Mas talvez Madjer tenha razão, pois sairia coberto de glória, dificilmente podendo repetir façanha equivalente. De qualquer modo, seria pena o Porto perder um calcanhar daqueles…

1987

quarta-feira, 29 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 15

Laterais ao ataque

António Cagica Rapaz

O futebol português está a ser varrido por uma maré de controvérsia, flagelado por uma guerra acesa entre os principais clubes que convidam, seduzem e aliciam jogadores dos seus mais perigosos competidores, não só para se reforçarem mas também para irem lançando a confusão e a cizânia.

Um dos casos mais badalados é o do defesa-direito portista Gabriel, um homem que foi, anos a fio, titular do seu clube e da selecção nacional, um jogador em evidência pelas suas espectaculares características ofensivas que fazem dele mais um avançado do que um defesa.

E porque se falou no F.C.Porto, vem-me ao espírito a imagem do pujante Virgílio, o lateral-direito por excelência, vigoroso, generoso, leão de Génova e das Antas. Também ele, como Gabriel, foi dono e senhor da camisola 2 da equipa das quinas, um degrau abaixo de Pedroto, no mesmo corredor direito onde armava jogo o maestro e capitão da nossa selecção. Natural do Entroncamento, Virgílio não terá sido um fenómeno nem um fora de série no aspecto técnico. Aliás, o Porto não precisava de tanto pois, para ir à linha centrar para a cabeça demolidora do Jaburu, lá estava o serpenteante Carlos Duarte, um malabarista fulgurante que formava asa com Hernâni, esse inesquecível e talentoso futebolista, dos maiores de sempre do nosso País e que não recearia o confronto com qualquer das vedetas de hoje. A menos teria o bigode, mas sobrar-lhe-ia classe, fibra e génio criador…

No princípio dos anos 60, começaram a surgir os laterais ofensivos, homens que não se contentavam em defender, antes abalavam campo fora. Se não me engano, um dos primeiros foi Gualter que deu nas vistas em Guimarães e acabou prematuramente nas Antas. Antes, porém, houve em Setúbal um esboço de inovação, através das exibições cristalinas de um compadre alentejano chamado Polido, belo executante que brilhou ao lado de jogadores de alta craveira técnica como foram Emídio Graça e o fininho Vaz. No mesmo Vitória dispôs, mais tarde, Pedroto de três laterais desenvoltos (Conceição, Carriço e Rebelo) que transformavam lances defensivos em ataques envolventes, com a cumplicidade e a arte de José Maria, Tomé ou Jacinto João.

Assim foi crescendo a luta das classes lateralizadas onde havia duas escolas opostas. Uma, conservadora, a dos defesas de raiz que preferiam desarmar, cortar, dobrar, interceptar e deixar para outrem a tarefa ofensiva. Outra, moderna, nova raça de laterais que entendiam ser o ataque a melhor defesa, jogando atirados para a frente, saindo das linhas atrasadas de bola no pé e cabeça levantada. O exemplo clássico dos conservadores é o meu amigo Hilário da Conceição, um magnífico defesa-esquerdo, de estatura mundial, dos poucos a quem Garrincha não trocou os olhos nem fez morder o pó. Se Eusébio foi o mais fulgurante dos Magriços, Hilário foi o mais regular, com um padrão elevado de exibições, seguro, maduro, impecável, sem quebras nem hiatos. Mas Hilário não era, propriamente, um homem de ataque e contentava-se em passar a bola ou cruzar (com o pé direito) para o barulho. Por isso, na ponta final da sua brilhante carreira, conheceu as atribulações de um duelo de pergaminhos com um rival da nova escola, o benfiquista Adolfo, de crinas ao vento e um pé esquerdo desinibido, ou não fosse ele um antigo extremo.

O arquétipo do lateral atacante era o famoso italiano Giacinto Fachetti que, em duas passadas, galgava até à área do adversário, lançando o pânico e semeando a perturbação. Não era um primor de técnica, mas tinha umas pernas intermináveis, era eficaz, jogava bem de cabeça e aparecia a rematar. Mais perfeito tecnicamente, mas mais comedido nos avanços, era o alemão Schnellinger, futebolista do mais fino recorte, dos melhores do Mundo, de sempre.

Na CUF, tínhamos um dos bons valores com que o futebol português contou durante muitos anos. Refiro-me ao excelente, ao pendular Francisco Lourenço Ramalho Abalroado, um senhor defesa à antiga, dificílimo de passar, muito rápido, óptima colocação e muita ratice. Atacar não era o seu forte, embora, às vezes, desse o seu saltinho lá à frente. Preferia o nosso Chico a sobriedade e a segurança, entregando de pronto a bolinha no pé esquerdo mágico do Emídio Simões Úria, cinquenta e quatro quilos de raro engenho, talento puro e pólvora na bota franzina.

O Abalroado tem um nome de conotação bélica, daqueles que ficam no ouvido, como Lança, Atraca ou Fragateiro. Talvez por isso, chegou a ter a injusta fama de violento, quando afinal foi sempre correcto. Rijo, abnegado, leal, sentindo a camisola, encorajando os companheiros, o Chico Abalroado nunca foi famoso, mas jogou muitas épocas no escalão maior, sempre titular, sempre em bom plano.

O futebol é cada vez mais polivalência, inspiração e pulmão para correr o campo todo, abaixo, acima, em acordeão, em carrossel, em maratona, sem rigidez táctica nem estatismo suicida. Os laterais (tal como os centrais, aliás) têm de ser os homens do relançamento do jogo, o primeiro compasso do movimento ofensivo, efectuado o desarme ou recebida a bola do guarda-redes. Um lateral como o brasileiro Júnior é defesa, médio, avançado, é um recital de futebol.

É próprio dos laterais abalarem campo fora e voltarem atrás, como eu volto agora ao princípio da crónica, para imaginar que o Gabriel, durante anos nas Antas e tão habituado a avançar, é bem capaz de não travar na linha de cabeceira e só parar em Alvalade, correndo como se fosse um extremo, segundo a expressão imortalizada pelo lendário Nuno Brás do alto do seu laço janota.

E não é impossível que, nesta guerra cruzada entre os mais poderosos, surjam situações curiosas pois todos sabemos que os extremos trocam-se

1983

quarta-feira, 22 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 14

Com musas ou sem elas

António Cagica Rapaz

- Só se nasce poeta!

Foi mais ou menos isto que ouvi ao meu recente amigo Alfredo Farinha, um jornalista que admiro há muitos anos e a cuja mesa só há pouco tempo os caprichos da vida me levaram a sentar. E foi aquele axioma pronunciado beatificamente como remate de uma cavaqueira em que foram evocadas as insuficiências de treino dos rematadores portugueses.

Na opinião de Alfredo Farinha, os treinadores portugueses não consagram o tempo e a atenção que deveriam ao capítulo do remate ao golo. A mesma opinião não tem Peres Bandeira que garante insistir nesse particular.

Nos jogos, a situação é diferente, pelos nervos, pela oposição dos adversários, e, sobretudo, pela severidade do público que não perdoa uma falha.

Daqui arrancámos para uma análise que nos levou até ao campo da poesia, através da sentença de mestre Alfredo e da qual eu, modestamente, discordo…

Contrariamente ao que apressadamente alguns poderão concluir, o futebol e a poesia apresentam aspectos que se tocam, como os extremos. O nó da questão situa-se na primazia a conceder ao dom ou à técnica, ao génio criador ou ao trabalho de preparação. Eu defendo a tese de que não se fabrica um goleador, enquanto Alfredo Farinha preconizava a preparação afincada, o treino insistente, o aperfeiçoamento técnico a esse fim. Como sempre, a virtude está no meio. O treino (quem ousará contestar?) é indispensável, por maior que seja o talento do jogador. Todavia, o goleador tem de possuir o dom, o instinto, a centelha. Para Alfredo Farinha, só o poeta nasce, ou seja, o dom vem do berço, e só o poeta o traz, não o futebolista.

Ora, meu caro Alfredo Farinha, num campo como noutro as opiniões divergem. Mesmo na poesia nem todos os teorizadores concedem o primado ao dom, não sendo o poeta universalmente reconhecido como possuidor de um talento inato. É verdade que Platão assim pensava e, para ele, a criação poética era fruto da inspiração, dádiva do sonho, obra das musas. Todavia, o seu compadre Aristóteles não alinhava nessa equipa e defendia que a poesia era, antes de tudo, um produto da razão, da técnica, do trabalho lúcido, do esforço metódico. Com ele alinhou Horácio, e o exemplo mais flagrante desta linha de pensamento é um poema de Edgard Allan Poe (O Corvo), todo ele construído segundo apuradas regras de lucidez, lógica e cálculo. Hoje, Poe teria utilizado um computador…

Portanto, nem só engenho nem apenas trabalho, nem só musa nem apenas técnica. O poeta e o futebolista estão na mesma situação porque um e outro criam, produzem poemas e golos, evasão, sonho e fuga ao real circundante.

O jogador é um artista cuja exibição não pode ser garantida pelo facto de haver treinado a sério durante toda a semana. O futebolista é um homem que pode não estar inspirado naquele dia, àquela hora, no instante preciso do remate decisivo. Vinte horas de treino não garantem golos nem exibição fulgurante. Cada jogo é uma experiência diferente, não um trabalho de rotina. As condições físicas, materiais, psicológicas, variam de jogo para jogo, a tensão nervosa, o peso do público, o estado do terreno, o vento, um gesto, um grito, um apito, um nada pode prejudicar o toque que se desejaria vitorioso.

A preparação, o treino sério, são indispensáveis mas não suficientes para assegurar o êxito. No caso dos goleadores, as coisas são ainda mais complicadas pela multiplicidade das suas características. Há os especialistas no jogo de cabeça (Águas, Torres, Madeiros) que também marcam com os pés; há os baixinhos, ratos da pequena área (Arsénio, Gaia, Tito); os rematadores de longe (Eusébio, Caiçara, Lúcio, Mendes); os de disparo fácil e imprevisível (Matateu); os calculistas (Néné); os dribladores envolventes (Manuel Fernandes) e os ocasionais (Humberto). Alguns reúnem várias destas características, a panóplia é grande.

Os calmeirões são privilegiados, tanto os gigantes (Torres) como os entroncados, tipo Peyroteo. Os mais espectaculares serão, porventura, os que disparam petardos do meio da rua, obtendo golos de bandeira. Os avançados peitudos, demolidores, mais em força do que em jeito, podem (sim senhor, amigo Farinha) aperfeiçoar a técnica, trabalhar o toque de bola, burilar o estilo, segundo o prisma aristotélico. Mas esses serão sempre rematadores e não forçosamente goleadores, só renderão enquanto a força durar.

Para os caçadores, os ratos da área, como o Arsénio, o Gaio ou, em especial, o Gerd Muller, não há métodos nem treino específicos. Não se aprende, nasce, é o faro, o instinto, o tal dom que lhes permite estar no sítio exacto, no instante preciso para desviar para a baliza o remate torto de um companheiro, para recargar uma bola que o guarda-redes largou, para aproveitar a fífia do defesa. Este sentido de oportunidade não se ensina, está no indivíduo, é o dom da musa de que Platão fala, o dom que Alfredo Farinha reserva aos poetas.

Devemos ainda distinguir os goleadores da bola corrida dos da bola parada. Nos primeiros tem de haver instinto, decisão, cálculo veloz, reflexos apurados. Com a bola parada, é toda uma arte de colocar o esférico numa pequena saliência do terreno, o golpe de vista à barreira, a escolha do pé, a inclinação do tronco, o doseamento do efeito e a aplicação do remate. Curiosamente, neste capítulo há um nome que estava predestinado, Platini, que obviamente é herdeiro de Platão, tem um dom inquestionável, um talento invulgar. Mas também tem de Aristóteles o gosto pelo trabalho esmerado com que ensaia a marcação de livres que, nos seus pés, são mais de meio golo.

No fundo, o ideal é possuir o dom dos deuses ou das musas e trabalhar seriamente. E o que nos vale é que podemos ter opiniões parcialmente divergentes, mas acabamos sempre por nos entender. E isto, meu caro Alfredo Farinha, talvez porque as musas de Platão nos tenham concedido os dons de abertura de espírito, do gosto do diálogo aberto e transparente, da tolerância e do bom senso, sem pretendermos o monopólio nem o exclusivo da razão. Ou, simplesmente, talvez por gostarmos de futebol e de participar em debates que acabam sempre com a vitória da amizade, a derrota da arrogância e o empate das opiniões…

1982

quarta-feira, 15 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 13

Botas de traves

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, o balneário do Desportivo ficava junto à escola dos rapazes, a uns bons cem metros do campo cercado por eucaliptos, junto ao ribeiro. Lá em cima era o terceiro anel, a eira do Valada...

As botas tinham traves que ressoavam no cimento e fascinavam o miúdo que eu era, quando assistia aos treinos do Desportivo. Vindos do mar, os homens trocavam as botas de água pelas botas de traves e lá iam dar umas voltas ao campo, meia dúzia de exercícios, muita ronha na ginástica e, por fim, a bolinha a saltitar, para contentamento do pessoal que lá ia para fazer horas para o almoço e relatar dois lances da barca, à mistura com piadas aos jogadores que vinham de fato-macaco, os que trabalhavam no gelo ou na oficina, outros de camisola grossa. Depois eram todos iguais, de calções e botas com traves arranjadas pelo tio Carlos Soromenho.

Quando a bola ultrapassava a vedação, a rapaziada corria-lhe atrás, para a apanhar, para a acariciar e, a contragosto, a despachar com um débil pontapé, próprio de quem só estava habituado a bolas de borracha e, excepcionalmente, a alguma de catechumbo manhoso das caixas de rebuçados do tio Chico da Cooperativa.

Era uma festa naquelas manhãs que cheiravam a eucalipto, com as maluqueiras do Ilídio, a queixada proeminente do Baeta pé-de-cChumbo, a peitaça do Manel Santana, a cara de pau do Miguel, a leveza do Isidro, o virtuosismo e a fragilidade do Zacarias, a velocidade do Zé Filipe, os petardos do Zé Broa, a presença do Jesus, os dribles do Barlona, as mãos de ferro e a preguiça do Rogério, o massacre do treino aos guarda-redes com que terminava cada sessão...

Ao domingo, mesmo com chuva, cumpria-se o ritual: almoço de bacalhau com grão, ouvindo A Vida é Assim, de José de Oliveira Cosme, no Rádio Clube Português, e corrida ligeira para ainda assistir à segunda parte das reservas. No filme das minhas recordações, o campo está sempre cheio de lama, mal se vêem as marcações e, na baliza, o intrépido Zé do Olho das defesas acrobáticas. O pessoal pouco liga ao João Manão, ao Azoia, ao Carlos Rosa, ao Joel Fartura ou ao Baguinho, as atenções já estão concentradas na primeira categoria. As vedetas aquecem, as reservas arrastam-se na lama, o Carlos Soromenho já tem o balde da cal à feição para compor os riscos, a eira do Valada impacienta-se, as nuvens negras sobem a serra vindas do mar onde ninguém se arrisca em tempo de vendaval.

Finalmente, ei-los que aparecem no topo da escada de madeira, por trás da baliza de baixo, o Santana à frente, o calção branco imaculado, a camisola cerise luminosa, a bola, a laranjinha, nas mãos. O público despede os reservistas e aplaude os heróis que vão enfrentar o Amora, lutar com garra. O Desportivo era uma questão de honra. Do peão chegam os gritos do Algarvio e na bancada soa a voz de trovão do João Mota...

Eu assistia, hipnotizado, só tinha olhos para a laranjinha, para as botas com traves, bem pretas de graxa, botas que me pareciam mágicas, com as de sete léguas ou as de cano alto do Corsário Negro ou do D’Artagnan. Era como se elas possuíssem íman para atrair a bola, bússola para a dirigir e canhão para a disparar à baliza. Calçar aquelas botas com atilhos brancos e traves que ressoavam no cimento era o meu sonho. Afinal, essa experiência viria a ser uma grande decepção. Nos juniores do Desportivo calcei, finalmente, as botas com traves, umas botas duras, remendadas, refugo das reservas, apesar da boa vontade do tio Carlos Soromenho. Mesmo assim, lá fomos percorrendo o distrito com o entusiasmo e o deslumbramento da nossa mocidade, mal dormindo antes de cada jogo, levados pelo sonho e pelos carros mais velhos do Covas. Era o tempo das ilusões, era bonito. Nunca mais haverá outro...

quarta-feira, 8 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 12

A Feira do Líbero

António Cagica Rapaz

Estávamos em 1963 e a tradição impedia os jogadores da Académica de alinhar nos torneios universitários de futebol porque, embora amadores no contexto profissional, éramos considerados profissionais entre os amadores puros. Porém, na Faculdade de Letras de Coimbra a proporção era de dez meninas para um rapaz, e esta escassez de recursos causava enormes dores de cabeça quando se tratava de formar uma equipa. Além disso, os homens de letras eram mais dados às filosofias e à literatura do que ao vulgar pontapé na bola. Por isso, a equipa das Letras era o bombo da festa, o pião das nicas. Fartos de cabazadas monumentais, resolveram nesse ano solicitar a minha ajuda e, para tal, conseguiram uma excepção, aliás só concedida porque os outros sabiam que a minha presença só poderia, no melhor dos casos, limitar a amplitude da tareia. Na baliza, jogava o Raposo, um madeirense que era o menos mau do conjunto. Em terra de cegos, fui acolhido com entusiasmo, e logo pus em prática uma táctica rudimentar mas razoavelmente eficaz. Dispus nove letrados atletas ao monte, à minha frente, ficando eu solto, às deixas, a fazer as dobras, a arrumar a casa, naquela zona crucial entre aquela trincheira atabalhoada e o nosso Raposo, atento e acagaçado. No final, perdemos por poucos e ainda fizemos o gosto ao pé. A parte curiosa da aventura é que no dia seguinte, no treino da Académica, José Maria Pedroso, com um sorriso malandro, disse-me que tinha assistido ao jogo da equipa das Letras. Com alguma surpresa minha, fui convocado para o jogo com o Benfica. Maiores que a surpresa só a minha alegria e o meu deslumbramento quando Pedroto me pôs a jogar na Luz, contra o Benfica, contra o Eusébio, dizendo-me apenas para fazer o que fizera na equipa das Letras. A experiência foi positiva, perdemos injustamente e repetimos o esquema nas Antas, onde empatámos. Foram os meus primeiros passos numa modesta carreira de líbero…

Tanto quanto me lembro, foi a Itália a pátria do sistema defensivo designado por ferrolho, o famoso catenaccio de que Picchi, do Inter, foi o primo signore.

Em Portugal, o Lusitano de Évora usava e abusava da ferrolhada, com uma barreira defensiva muito dura e fechada onde o líbero era, em regra, o Falé que jogava atrás de Teotónio, Polido, Paixão, Garcia, Athos e outros mosqueteiros de barba rija, contando na baliza com um seguro e arrojado Vital. Era aguentar, descascar e esperar o milagre de um contra-ataque providencial quase sempre protagonizado pelo solitário e hábil José Pedro. Mas o modelo era tosco e roçava o anti-jogo sistemático.

A meio dos anos 60, pontificava na Europa o admirável líbero Maldini, capitão do Milan, um futebolista maravilhoso só comparável a Franz Beckenbauer. Com efeito, Cesare Maldini, com o seu risco ao meio, era um jogador fino, elegante e excelente tecnicista. Com ele, o desarme, a intercepção e o corte eram apenas os primeiros movimentos de uma sinfonia atacante, saindo tranquilamente, bola dominada, cabeça levantada, campo fora.

Aqui reside a grande diferença entre o ferrolhista artesanal e o verdadeiro líbero que não se limita a destruir, antes começa a atacar partindo de trás, lançando os companheiros ou avançando em tabelinhas, abrindo jogo e, até, rematando. Assim jogava Maldini, assim nos encantou Beckenbauer.

Jogar a este nível é privilégio de eleitos, aliar a eficácia à beleza do gesto é dom em que os deuses não são pródigos. Temos visto bons defesas centrais, bons ferrolhistas, mas líberos virtuosos são raros. O verdadeiro líbero é o cirurgião de bisturi na ponta da bota, que corta com precisão e subtileza; é o gajeiro sem gávea mas que vê antes e ao longe, dominando com o olhar todo o campo; é o general que começa por organizar a defesa para logo decidir do rumo a dar ao movimento de ataque; é o empregado de café, nas horas de ponta, que resolve arrotear terreno, serpenteando por entre os adversários com a bola na bandeja; é o atirador de elite, com arma de mira telescópica, que escolhe o passe alongado e preciso ou o tiro certeiro à baliza; é o mestre, o maestro, a guilhotina dos ataques contrários e a génese das ofensivas da sua bandeira.

A este nível de exigência, só raros puderam ascender. Por isso, presto a minha homenagem ao talento transcendente de Beckenbauer, um jogador perfeito, um verdadeiro príncipe, jogando de cabeça levantada e bola domesticada, controlada na ponta da bota, submissa e obediente à arte e aos caprichos de mestre Franz.

Entre nós, há uma bela tradição de médios e defesas-centrais. Ouvi amiúde gabar o valor de Artur José Pereira, Augusto Silva e Albino, por exemplo. Recordo-me da finura e subtileza de Félix bem como da classe de Emídio Graça, jogadores de estilo moderno. Nos anos 50, a moda era a do defesa-central possante, vigoroso, como Manuel Passos, Raul Figueiredo, Artur ou Miguel Arcanjo.

O prenúncio da instituição do libero foi a fixação do quarto-defesa, no início dos anos 60. O médio esquerdo, em geral o de vocação mais defensiva, recuou uns metros e postou-se na linha do defesa-central, constituindo assim uma dupla que se opunha à outra novidade que foi a parelha de pontas-de-lança que enterraram o avançado-centro tradicional.

A guerra das estrelas no centro da defesa começou no Sporting, com a rivalidade Lúcio-Morato. Este, talvez por ser canhoto, foi deslocado para quarto-defesa, ficando Lúcio, bombardeiro terrível, dois passos atrás e mais para a direita. Mais tarde, tiveram os leões nova dupla de respeito formada pelo excelente Alexandre Batista e pelo eficaz José Carlos.

Porém, na primeira metade da década de 60, o grande senhor das estepes defensivas europeias chamou-se Germano de Figueiredo e foi um caso ímpar no futebol português. Jogador polivalente, senhor de uma técnica inexcedível, Germano carregou às costas, durante anos, o seu Atlético, venceu a doença, no Caramulo, e ainda arranjou forças para deslumbrar o mundo com a sua classe. Com a sua aura de monge, o ar professoral, foi apelidado de O lobo, talvez pela suavidade e certeza implacável das suas intervenções. Era o artista no meio de uma defesa rude e abnegada, sendo esta combinação indispensável. Porque um líbero, por melhor que seja, precisa de ter a seu lado um ou mais rachadores de lenha que vão à queima, que dão a cara, cabendo ao patrão da defesa entrar em cena no último acto, vibrar a estocada, prender o assassino, arrematar o lance, cortando orelhas, recolhendo as flores e a glória. Raramente é feita justiça aos valorosos e esforçados peões de brega.

Em Portugal, nos anos mais recentes, a par de centrais de marcação, como Eurico ou Freitas, dois jogadores se têm distinguido como líberos, Humberto Coelho e Rui Rodrigues. Humberto, mais atleta, Rui, mais esteta. Humberto cedo se mostrou um jogador altamente influente, eficiente, demolidor, omnipresente na sua área como diante das redes adversas, elemento determinante em termos de regularidade e rendimento. O farmacêutico Rui Rodrigues possuía o elixir do virtuosismo, os sais da serenidade, o ácido da visão, o comprimido do passe certeiro, o álcool da imaginação. O Rui foi um prodígio de classe, pés de veludo, toque requintado, execução suave, graciosidade no movimento, tudo à altura de Beckenbauer menos a personalidade, a ambição e a determinação de vencer.

O trono de Beckenbauer continua vago, apesar do reconhecido valor de homens como o austríaco Pezzey, o holandês Rudi Krol ou o argentino Passarella. As buscas prosseguem, está aberta a grande feira do líbero ou, se preferem à antiga portuguesa, a grande feira do livre…

1981

segunda-feira, 6 de junho de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 61

Chico Cagica

António Cagica Rapaz

A mais longínqua recordação situa-se na rua Amália, ainda eu não morava na paralela rua Monteiro. Andava na escola da Rosa Manão e, num fim de tarde, fui lá a casa. Pelo tempo fora, ocasionalmente, voltei, por cima da loja do Justino das mobílias, depois na avenida e, por fim, lá em cima, junto à estrada nacional. E, de cada vez, lá ficava horas esquecidas, ao ponto de, em véspera de Natal, me ter deixado enredar nas teias luminosas de um pinheirinho que ajudei a enfeitar. Já a minha mãe andava na rua à minha procura, espavorida, quando me lembrei das horas. Em casa do Chico era assim, eu ia e ficava, ficava sempre...

Conservo a lembrança de um universo de serenidade, de suavidade acolhedora e segurança, sobretudo segurança. Era como se aquela casa estivesse ao abrigo de toda e qualquer ameaça, como se o vendaval, a chuva, os lances dolorosos da vida ficassem à porta, passassem ao largo. Era um perfeito porto de abrigo, a vida controlada, só marés cheias, brisa de feição, um cantinho onde nos apetece enrolar e ficar. E eu ficava, ficava sempre...

Do Chico futebolista não me lembro, apenas ouvi elogiosas referências às suas qualidades de extremo-direito. Mais ouvi que era dotado para todos os desportos. No Central, eterno Central, situo o Chico campeão de bilhar de dimensão quase mítica, reforçada pela raridade das suas exibições. Vi-o jogar algumas vezes, poucas, momentos fugazes, parêntesis de meio da tarde, entre a bica e a lota. Ficou-me a imagem da facilidade, o jeito simples e solto, o gesto certeiro de quem sabe, de quem joga como respira, com a naturalidade dos eleitos. E conservei na retina o pormenor do estilo, o taco que deslizava no interior do arco formado pelo indicador com o polegar enquanto, sobre a mesa, apoiava o mínimo afastado do anelar. Este e o médio constituíam o suporte do braço. Era o estilo do Chico, nunca vi outros dedos assim colocados...

Continuo a vê-lo com o casacão escocês de cotoveleiras de cabedal, o sorriso caloroso e discretamente malicioso, certa timidez simpática.

Depois saía a caminho da lota onde foi figura destacada, símbolo de uma profissão e de uma época. Foi um homem sério, trabalhador e generoso. O Chico tinha um dom, um toque mágico, daqueles que as fadas põem em certos berços, tinha uma classe natural, uma aura maravilhosa, verdadeiro encanto. E era um bonito homem, não era, Maria Eugénia?

Revejo a azáfama da lota às onze da noite, o luar de Verão, e o Chico, vindo da praia, com o seu ar desportivo, a chegar à esplanada do Zé Filipe, a beijar a Maria Eugénia que esperou por ele horas a fio, uma vida quase inteira. Diz-se que as pessoas felizes não têm história, mas o Chico e a Maria Eugénia tiveram uma bela história de amor, formaram um casal maravilhoso, eternamente enamorados. Disse Paul Valéry que morre cedo quem os deuses amam, diz-se tanta coisa, mas tudo está por dizer, da vida, da morte, do porquê das coisas, do sentido da existência.

A imagem do Chico continua a evocar verões eternos, com a lota à beira da fortaleza, as esplanadas do Central e do Filipe, a exuberância da Isabel e o fulgor do Pepita, a magia de um tempo bonito, traineiras e gaivotas, o Chanoca, o Chagas, o Benjamim, o Zé Ângelo e o Mário Martelo.

Revejo o Chico remando no “Bambino” minúsculo e arredondado, na praia do tio Abel, com a Ema e o Graciano, a caminho da jangada. Revê-lo-ei sempre com o casacão escocês, com aquele sorriso insinuante e bom. E quando vou lá a casa, ainda fico, fico sempre. Como o Chico ficou em nós...

1996

quarta-feira, 1 de junho de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 11

A Bola

António Cagica Rapaz

Foi a mais bizarra das minhas aventuras como cronista amador, ocorrida nos primeiros anos da década de 80, altura em que eu colaborava simultaneamente na Gazeta dos Desportos e na Rádio Renascença.

Nesta última equipa, a super-equipa da Renascença, havia três jornalistas de A Bola que faziam o favor de ser meus amigos e que tinham palavras muito simpáticas sobre os meus escritos. Eram eles o Alfredo Farinha, o Aurélio Márcio e o Cruz dos Santos.

Com alguma frequência convidavam-me a ponderar a hipótese de passar para A Bola, deixando a Gazeta. Ora, apesar do prestígio do jornal A Bola e da simpatia dos três companheiros (sem esquecer o Carlos Pinhão), eu não queria abandonar a Gazeta onde me tratavam muito bem.

Eles iam insistindo, com alguma regularidade, mas eu ia ficando na Gazeta. Até que me aborreci quando a Gazeta (a braços com dificuldades), por duas vezes deixou de me pagar e, até, de me enviar o jornal. Sucede que, felizmente, eu não escrevia por dinheiro e crónicas houve que eu teria pago para escrever. Contudo, achei deselegante o que fizeram e à segunda, saí…

E assim aconteceu a minha entrada n’ A Bola, tendo começado por escolher um título para a rubrica. No enfiamento da jogada foi o que me ocorreu e que transmiti ao Vítor Santos a quem enviei a primeira crónica que tinha como personagem central Fernando Oliveira, meu companheiro da CUF.

A publicação demorou mais do que seria de esperar, mas acabou por sair, com belo destaque. Entusiasmado, enviei a segunda crónica que versava uma reviravolta estonteante do Dr. Manuel Sérgio na opinião que passara a ter sobre o treinador Meirim. O tempo ia correndo e a crónica não saía. Intrigado, telefonei ao Vítor Santos e acabámos por ter uma discussão acalorada, dado que ele se recusava a publicar a crónica por considerar insultuosas algumas das minhas opiniões.

Em verdade, vim a saber depois, já a primeira demorara a sair porque nela eu tocava no tema proibido das amplas liberdades post-25 de Abril. Pior foi quando, na segunda, eu aludia a convergências esquerdistas para explicar a inesperada amizade entre Manuel Sérgio e Meirim. Resumindo, acabei por desligar o telefone e por escrever duas linhas ao Vítor Santos dizendo-lhe que não valia a pena prosseguir, que tinha ficado muito honrado, mas que saía depois de ter tocado n’ A Bola uma única vez.

Na realidade, na época 69/70, já tinha estado à beira de criar rubrica Hoje escrevo eu, com a cumplicidade do Carlos Pinhão, projecto que só não se concretizou por pruridos idiotas da minha parte. Curioso é que, anos mais tarde, ainda voltei às páginas de A Bola, mais precisamente à última página, a convite e por extrema bondade do mesmo Carlos Pinhão, um jornalista brilhante e um homem maravilhoso.

E é assim que posso, sem mentir, incluir no meu currículo de cronista o prestigiado jornal A Bola