quarta-feira, 28 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 21

O homem das Arábias

António Cagica Rapaz

O Boeing 747 aterrou na Portela ao cair da noite, depois de sobrevoar a ponte sobre o Tejo onde os carros se cruzavam como formigas ou pirilampos, contra o relógio e a favor da telenovela.

Os secretários particulares do Xeque trataram das formalidades aduaneiras, e as dezoito malas de Sua Alteza foram de imediato metidas numa carrinha que as levou para o hotel Ritz onde duas suites esperavam a comitiva.

O Rolls cinzento metalizado arrancou suavemente, deixou para trás a Rotunda do Relógio e misturou-se com os outros carros na avenida do Brasil. Sua Alteza o Xeque Ali Aulad honrava Lisboa com a sua presença…

O Xeque tinha as malas em forma de barril, a sua estatura era normal e a gordura super. Ali Aulad fazia acompanhar pelo primo Ben Gala, também ele descendente do venerando emir Al Fayate, irmão do todo poderoso Al Manak.

A notícia da chegada do homem das Arábias fora abundantemente divulgada por todos os órgãos de informação. A televisão instalara todo o material necessário e mobilizara uma equipa de reportagem para transmitir em directo a chegada da eminente personalidade. Entre sorrisos e salamaleques, o Xeque Ali Aulad (via intérprete) declarou que a sua estada entre nós significava para ele um regresso às origens e que tencionava efectuar uma peregrinação a lugares de grande significado histórico e simbólico como Al Piarça, Al Kântara, Al Bufeira e Ben Fika. Em seguida, confirmou o ambicioso projecto de constituir uma sociedade de responsabilidade incalculável destinada à exploração paralela e simultânea do turismo e do futebol, a FUTOTEL.

O seu grande sonho era possuir uma poderosa equipa de futebol capaz de ganhar a Taça dos Campeões Europeus. Por diversas razões, a importação de vedetas em declínio acabara por se revelar desastrosa, sobretudo pelas dificuldades de adaptação ao clima e ao modo de vida. Arábia só dita porque vista e vivida é uma aflição, admitiu o Xeque. Por isso, em vez de aliciar jogadores para torrarem ao sol do deserto, resolveu trazer os petrodólares e fundar uma equipa na Europa, visto que uma formação no Médio Oriente jamais poderia ser campeã europeia, por óbvias razões de ordem geográfica que não escaparam à perspicaz análise de Ali Aulad.

A escolha do nosso País para berço dessa organização e sede do Clube, deveu-se aos laços de sangue existentes entre os dois povos e ao fascínio que Portugal sempre exerceu sobre ele. E mais não se dignou dizer Sua Alteza que, após profunda reverência, se retirou para os sumptuosos aposentos a fim de efectuar a sua oração da noite, virado para a Aldeia do Meco…

No dia seguinte, todos os jornais desportivos apresentavam um anúncio de página inteira que rebentou como uma bomba no meio futebolístico português. O Xeque Ali Aulad propunha-se comprar, perdão, contratar a qualquer preço trinta jogadores, três treinadores, três secretários técnicos, três preparadores físicos e três massagistas, os melhores do mercado, dando-se alguma preferência aos que tivessem nomes de consonância árabe. Sabendo que, fatalmente, todos estariam já ligados por contrato a clubes portugueses, Ali Aulad proponha-se pagar quanto fosse preciso para obter as necessárias desvinculações. Assim se lançava uma operação diabólica de consequências delirantes…

No próprio dia, o hall do Ritz enchia-se de caras conhecidas, jogadores, dirigentes, treinadores, massagistas e endireitas vindos dos quatro cantos do país. Os campos ficaram desertos, ninguém apareceu aos treinos, o futebol português parou, ficou suspenso de uma decisão, de um gesto magnânimo, de um cheque do Xeque.

Os secretários particulares de Sua Alteza convidaram quatro jornalistas da especialidade para constituírem um júri para apreciar as credenciais dos candidatos. Começaram a mover-se influências, cunhas, pedidos, súplicas, um inferno, um atropelo de Al Binos, Al Meidas; Al Banos, Al Fredos, Al Ves, Ben Tos, Al Hinhos, Al Bertos e até um certo Al Iveira que garantia ser craque de respeito. Alguém afiançava que o treinador ideal seria Al Lison, quando fez uma entrada tumultuosa um tal Mourinho que gritava histericamente, que ninguém merecia mais do que ele, porque era mouro, mais que mouro, Mourinho. Poderia ser treinador, mas se fosse preciso ainda fazia uma perninha como guarda-redes, sendo homem para se prestar a vários papéis. Ninguém ficou surpreendido…

O hall do hotel mais parecia a Bolsa, com os valores em órbita, acções em alta e outras em queda, vertiginosa e desesperadamente. Choviam propostas, respostas, contrapropostas e promessas. Jogadores que ganhavam trinta contos por mês já se viam a auferir trezentos, e os desta escala multiplicavam por vinte. Era a caverna do Ali Bábá, só que os ladrões eram muito mais de quarenta.

Do Porto chegou, radiante, Ali Queta que veio descobrir o primo Ali Kate que julgava desaparecido, enferrujado. Estava-se em pleno delírio, quando o craque Al Bino arregalou os olhos. Seria possível? Estaria a sonhar? Seria miragem? Antes que a visão se esfumasse, já a futura estrela petrolífera se apressava a assinar o contrato, sofregamente, sem ler, de cruz, embriagado pelas palavras, deslumbrado, sem se aperceber das areias movediças do documento. Á saída, o ambiente era o mesmo do átrio de um liceu em dia de exames, com a euforia dos aprovados e a tristeza dos chumbados. Os novos ricos da bola desceram ao Fontória e ao Nina, e festejaram o acontecimento com champanhe que lhes soube a petróleo.

Quando, no dia seguinte, acordaram, o sol golpeou-lhes os olhos, o barulho do eléctrico bombardeou-lhes os ouvidos e a boca sabia-lhes a areia do deserto. E foi então que o Al Meida disse ao Al Berto. “Eh, pá, que história é essa de bater com o coirão? Os gajos disseram que a malta tem de dobrar a parada se não suarmos o coirão? Parece que não confiam na gente!”

Quando a Tina e a Dina se levantaram, os rapazes voltaram ao Ritz e pediram para falar com o secretário particular, Al Truísta. Intrigava-os aquela história do coirão porque estavam habituados a dar o litro, a ir a todas, a dar no osso, a esfarraparem-se todos e não admitiam que alguém pusesse em causa a sua entrega ao jogo. Então o Al Truísta sorriu cinicamente e disse-lhes que eles não tinham lido bem o contrato. Com efeito, eles nada tinham lido, assinaram apenas com os números e a visão das notas a bailarem-lhes diante dos olhos. Ora uma cláusula do contrato previa que todo o contratado se comprometia a saber de cor o Alcorão um mês após a assinatura do documento vinculativo. Caso o livro sagrado dos maometanos não fosse devidamente decorado, estava previsto que Sua Alteza Ali Aulad teria direito a uma indemnização por danos e perdas, morais e materiais, igual a dez vezes o valor fixado no compromisso. Só isto. E assim se concretizava uma monumental burla devidamente legalizada, um conto do vigário maior do que o Saará.

A Polícia, alertada de imediato, nada pôde fazer pois os craques haviam assinado de sua livre vontade, e as assinaturas haviam, entretanto, sido reconhecidas. Treinadores, jogadores, dirigentes e massagistas deitavam as mãos à cabeça e batiam com ela nas paredes do Ritz. Os chumbados da véspera vinham gozar o prato e houve cenas certamente chocantes. Intervieram rapidamente advogados para tentar resolver a delicada questão e abafar o escândalo que cobria de vergonha e ridículo o futebol indígena. Por fim, os secretários de Sua Alteza condescenderam e propuseram uma rescisão amigável que, ainda assim, custou a cada um, no mínimo, quinhentos contos. Os mais gulosos, os que pensavam ir ganhar fortunas, tiveram de desembolsar para cima de mil e quinhentos contos.

Sua Alteza jantou em Al Fama, passeou na Mouraria, depois recolheu ao Ritz e nunca mais foi visto. No dia seguinte, as empregadas da limpeza do hotel encontraram nas suites vários turbantes, barbas postiças e um maço de Três Vintes.
Os falsos árabes sumiram-se e ficaram os verdadeiros camelos. O recomeço dos treinos fez-se com beiço caído e risinhos irónicos…


1981

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 70

O fado

António Cagica Rapaz

Eles conhecem o caminho, aproam à Marisqueira, amarram o cabo a uma mesa, aguentam a abordagem de um ou outro pendura de giga pronta a receber qualquer teca de brandy ou Aveleda, dizem “saúde” várias vezes e, quando a caldeira começa a ferver, levantam ferro, rumo ao Espadarte Clube.

Sobre as magníficas lajes, cadeiras e mesas com velas que emprestam ao ambiente a mortiça luz castiçal das noites de fado em que há no ar o ciúme, a paixão, a navalha e o canalha...

Instalado o rebanho dos turistas, surgem os boémios locais para beber um copo e tentar sacar uma lady, ainda que entradota. Com os copos, a partir da uma da manhã, todas elas têm dezoito anos, afiança o Ernesto Corneta.

Corre-se a cortina e entra o Zé Manel que traz o fatinho azul escuro e gravata. Os guitarristas avançam, o fado instala-se na noite. Os turistas olham com curiosidade, os conquistadores ardem de impaciência.

O Zé Manel, como sempre, canta “É tão bom ser pequenino”. Depois, agarra o copo, molha a garganta e segreda qualquer coisa ao guitarrista. Coloca-se no meio da pista, ar gingão, põe-se em bicos de pés e lança, com desdém “Se queres ir embora, vai”. Claro que ninguém vai porque o Zé Manel tem raça e os turistas aplaudem com calor, Fada very good...

Ainda as palmas não cessaram e já o estrangeirame se vê com uma pandeireta na mão e um reco-reco sobre a mesa. É o folclore que chega, aguardado com ansiedade pelos caçadores especiais que, na penumbra, traçaram o seu plano de ataque.

Mal o António do Porto arranca os primeiros acordes da gaita de beiços, eis que os dados estão jogados e os comandos lançados. Qual suicida, o “Gaivota” é o primeiro. Uma ligeira vénia diante do marido, duas palavras que ninguém entente e a mulher já se levanta para dançar. Elas são civilizadas, simpáticas, desinibidas, é festa, férias são férias. Quando a marcha acaba, a dama não tem tempo de se sentar porque os outros passam ao ataque, todos dançam com a disponível senhora. Agora já não há vénia nem outro protocolo. De braços no ar, aproximam-se da mesa, dançando sozinhos, fazendo o gesto clássico com o dedo indicador a circundar e já está, é à balda, estamos com a nossa gente. O marido, quase grosso, toca desajeitadamente a pandeireta e ri-se com cara de parvo...

Corre-se a cortina e todos os olhares convergem para a porta. Entra o Júlio Silva, o meu rico Júlio, o John Português.

O Zé Manel olha para o Valdemar e diz “Está tudo estragado”.

O Júlio avança, Good night para a direita, Hello para a esquerda e ele aí está na mesa de um casal alemão para aceitar o copo que lhe oferecem. Quando lhe perguntam se vai cantar, franze o nariz, encolhe os ombros e diz que não se sente em forma. O folclore acaba. O Pinhal acende bruscamente uma luz branca e crua, ruidosamente contestada pela assistência, põe de novo o Rose Garden numa rotação errada e alguém grita “Vai pr’a casa, vai”. O Pinhal abala porta fora, sem dar as boas noites ao “Trinitá”...

De novo o fado. Há protestos por parte dos conquistadores que preferem música de dança para tentarem aproximações.

O Zé Manel vai no terceiro parafuso e parece mal disposto.

Lá do fundo, uma voz, “Ó Júlio””.

O Júlio, sorri, falsa modéstia, encolhe de novo os ombros, olha pr’ó Zé Manel, olha pr’ó sô Zé Brás, levanta-se, saúda a plateia que repete “Ó Júlio, ó Júlio” e coloca-se atrás dos fadistas. Afinal, o Júlio sempre vai cantar. Murmura ao ouvido do guitarrista o que todos adivinham e prepara-se para cantar (pois o que havia de ser?) o fado do cigano que matou o cavalo na feira da Agualva. A malta faz coro, o Júlio ganha calor. A certa altura, lá do fundo, uma voz “Ah, fadista!”. Os turistas repetem “Ah, fadista!”, o entusiasmo vai alto. O Júlio ataca com vigor e, quando o cigano se prepara para matar o cavalo, uma voz grita: “Mijão!”.

É o desastre. O Júlio fica branco, o Zé Manel ri-se, as nuvens de fumo parecem de chumbo, o fado seca na garganta do fadista, mata o cavalo, não mata o cavalo? A sua expressão é dura, finca os dedos nas costas dos guitarristas, acaba com o cavalo e vai-se embora. Os turistas olham-se, olham-no, sem compreender, o Júlio está a ferver. De repente, o autor da provocação levanta-se e vai ter com o Júlio.

- Boa noite, ó mestre!

- Ah, foste tu? Julgava que era o “Gaivota”...

E o fado continua, ainda a noite é uma criança, é tudo no gozo, para engatar o Júlio. Às tantas, tudo canta, minha gente. O Zé Manel bisa “É tão bom ser cavalo”, perdão, “É tão bom ser pequenino”, e, quando o “Trinitá” fecha a porta, já o chamador gritou pela companha toda...

1983

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 71

Até ao meu regresso*
António Cagica Rapaz
Há muitos anos ouvi contar o caso, não sei se verídico, de uma mulher que abalou, praia fora, em direcção ao mar, gritando, repetidamente, que se ia afogar. Quando a água lhe chegou à cintura, olhou para trás e perguntou: “Então, ninguém me vem salvar?”. Claro, ninguém foi. E ela desistiu de se afogar…
Assim (quase) estou eu, anunciando que deixo de escrever para, afinal, estar de volta, um mês depois. Contudo, não é bem a mesma coisa e passo a explicar.
A minha decisão de interromper a colaboração não foi ditada por uma qualquer crise de vedetismo nem por capricho idiota. Entendamo-nos bem, eu sou apenas um colaborador, não estive na corrida para o Prémio Nobel, não vou passar à posteridade, e a hipotética evidência que estes escritos possam conferir não ultrapassa a curva da Alfarrobeira. A questão é simples, embora algo delicada, pois entra na esfera da susceptibilidade que, como os gostos, não se discute, cada um tem a sua, é assim, acabou-se.
Poderia eu, hoje, retomar as minhas redacções feitas em casa, molhando o aparo no tinteiro e torcendo a língua no canto da boca, como se nada tivesse acontecido. Podia, claro que podia, era mais simples, ninguém me levava preso. Porém, achei que vos devia uma explicação. Não porque os meus estados de espírito sejam importantes para o futuro da humanidade, mas apenas porque me parece normal e salutar esclarecer, e porque o tema se reveste de certo interesse especulativo. Devo, aliás, dizer que considero excessivas as apreciações elogiosas que me fizeram neste espaço, no mês passado, só explicáveis pela bondade dos seus autores. E que elas em nada contribuíram para o meu regresso. Pela simples razão de que nada tinha contra o jornal ou os seus colaboradores. A questão é muito antiga e tem a ver com a atitude de algumas pessoas… Já lá vamos.
Quem me conhece sabe que não sou vaidoso, nunca armei em vedeta nem tenho birras. Apenas sucede que, até hoje, tenho tido o privilégio de escrever em total independência. E por gosto. Mesmo quando era pago, só escrevia o que me apetecia e dava prazer. Gosto de escrever, mas, por vezes, a motivação dilui-se, sinto vontade de parar. Há muitos meses que andava para o fazer. Aconteceu agora. E explico porquê.
Aqueles que têm o hábito e a bondade de me ler, já repararam que pouco falo de mim, apenas o necessário para situar e enquadrar. Falo, sim, dos outros, de pessoas de quem gosto, que admiro ou que, simplesmente, acho interessantes. Tiro-lhes o retrato de corpo inteiro, pinto-as com as cores da minha amizade, da minha fantasia e ofereço-lhes o modesto destaque que está ao meu alcance proporcionar. Recordo-me que o meu primeiro artigo num grande jornal (Diário de Lisboa, 1971) foi dedicado ao Fragata, um jogador excepcional, um gigante, um exemplo e um símbolo do futebol sesimbrense.
Tenho procurado dar prazer às pessoas sobre quem escrevo bom número das minhas crónicas, e também aos leitores para os quais o importante é a qualidade do escrito. Depois, penso igualmente em mim, porque cobro à partida uma parte do prazer que procuro dar. E muitas vezes gosto de ler o que escrevo…
Dizem que amor com amor se paga, mas raramente tenho tido reacções das pessoas a quem consagro as minhas crónicas. Não esperaria agradecimentos, mas uma palavrinha, um sinal de conivência, de cumplicidade, de sintonia afectiva. Perante estes silêncios (e muitos têm sido), fico com a desagradável sensação de estar a errar o alvo, a escrever no vazio, a cumprir uma obrigação, a pregar um sermão que ninguém me encomendou. Dizia a minha mãe que “quem faz festas a galegos mais galego é”. E tinha muita razão, pelos vistos. É estranho que alguém (e não foi só um) a quem dedico um artigo “nem à merda me mande”, como diz o nosso bom povo.
É estranho, desagradável e dá que pensar…
Há, no entanto, quem considere que a pessoa que escreve não deve preocupar-se com as reacções dos outros, nada deve esperar, deve apenas escrever.
Talvez, mas não é assim que vejo e sinto as coisas. Para mim, há uma partilha, uma interacção, uma troca, um movimento circular, uma corrente que se deveria estabelecer entre quem escreve e quem lê. Admito que possa haver certa indiferença, certa distância entre escritor e leitor num universo amplo, numa grande cidade ou à escala nacional.   
Mas, num jornal como o nosso, numa terra pequena, a dimensão afectiva é muito maior e reencontramos o universo ingénuo das representações na Vila Amália, em cada dia 1 de Dezembro da nossa Mocidade extinta. Lá íamos, com emoção com entusiasmo e deslumbramento, perante o olhar embevecido dos nossos familiares e amigos, bondosos e parciais, que aplaudiam ruidosa e orgulhosamente as nossas piruetas no palco. Aqui, escrevo sobre os meus amigos (serão?), sobre vizinhos, parentes, vivemos na mesma terra, na mesma rua, na porta ao lado, é outra coisa, cruzamo-nos a cada esquina. Por isso, a tal dimensão afectiva é tão grande. A reacção dos outros não é só um bálsamo e um estímulo, é também um sinal, uma orientação, diz-nos se estamos a escrever o que gostam de ler, se vale a pena, se estamos no bom caminho. Por estas razões e porque tenho escrito muitas coisas por amizade e por amor, não entendo e dificilmente aceito certas atitudes. Contudo, quero frisar que não me considero pedra essencial. Fazer este jornal é uma cruzada, trabalho de Hércules que exige paixão e sacrifício. Pela minha parte limito-me a escrever ao correr da pena, mas sem o esforço e a prosa vigilante do Carlos Batista não haveria jornal. É ele, de facto, a trave mestra, com a primeira ajuda do Pedro Filipe, é bom não esquecer. Eu só dou um jeitinho para torcer o rabo ao bicho, na molhada…
O jornal é filho de todos nós e quem faz um filho fá-lo por gosto, é bem sabido.
Daí que possa haver da nossa parte (em uns mais do que noutros, não sei) uma sensibilidade exacerbada que pode levar-nos a aceitar menos bem certas reacções. Ou a falta delas.
Há uma pessoa já falecida sobre a qual escrevi várias vezes, sempre com ternura e admiração, repetidamente, o melhor que pude, ao longo dos anos. E nunca, nem uma só vez, um dos familiares me disse, ao menos, que leu. É muito estranho. E há vários casos destes, esquisitos, surpreendentes…
Ora, como só escrevo sobre pessoas de quem gosto, acabo por me encontrar frequentemente com elas, com familiares, com amigos íntimos. Obrigatoriamente. E é este o nó da questão. Perante estes silêncios estranhos, que fazer? Perguntar-lhes se assinam “O Sesimbrense”? Se o lêem? Todo? Mesmo a última página? Se, por acaso, por venturosa coincidência, por miraculoso conjunto de circunstâncias, por virtude da brisa do poente, os seus delicados olhinhos se pousaram na modesta croniqueta que tive a ousadia de consagrar ao paizinho, à tia ou ao avó de Vocência? Ou simplesmente fingir que não sei que eles leram? Fazer como se “O Sesimbrense” não existisse ou eu nunca tivesse escrito? Naturalmente, nada disto é vital, mas desagrada, dá vontade de provocar um incidente diplomático.
Há também quem se sinta na obrigação de dizer qualquer coisa, sabendo que eu sei que leram o que escrevi. E então sai uma alusão elíptica, sintética, magra e insípida. Mas a honra está salva, não posso dizer que não deram sinal. Se eu estivesse longe, como já estive, não teria esta percepção, não sentiria este mal-estar. Porém, eu vejo, falo, sento-me à mesa com estas pessoas, é essa a diferença.
Claro, há o reverso da medalha. E por isso aqui estou, de novo. Porque o Zacarias, de longe, por gestos, me pediu para continuar. Quando há amizade, não são precisos discursos nem palavras rebuscadas, basta um sorriso cúmplice, uma piscadela de olho, o tal sinal de liques.
Volto porque o Luís Rafael Pinto se mostrou desiludido; porque o Xico me escreveu e telefonou de Sines; porque a minha antiga professora no Liceu de Setúbal, a Dra. Auzenda, faz questão de assinar o jornal e é uma pessoa maravilhosa; porque o tio do Afonso Maurício, o Eng. António Fonseca, me recordou a mensagem do general; porque a Micá exigiu que continuasse; porque a minha tia Lucinda me ia dando uma tareia; por isso, por aquilo, porque há pessoas que me dão vontade de escrever, de partilhar com elas esta saborosa aventura de vasculhar o sótão à procura de ideias, e de ajudar a preencher esta última página.
Volto, mas não venho fazer qualquer favor, não penso nem um segundo que faço falta. Ninguém faz verdadeiramente falta, e este episódio é apenas isso, uma peripécia insignificante.
O general disse aos soldados: “Se vocês recuam, morrem. Se avançam, morrem. Então, para quê recuar?”.
Por isso, não recuo. Fico é com mais responsabilidades e cada vez menos temas, menos assuntos, pois as fontes de inspiração não são inesgotáveis. Mas, enquanto for capaz e me der prazer, terão de me aturar. Depois, não se queixem. A culpa foi de todos quantos me ralharam, me pediram, me compreenderam e não me deram tréguas. Até ao meu regresso…
____________
* Publicado em O Sesimbrense de Janeiro de 1997.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 20

Distâncias

António Cagica Rapaz

Um dos temas que maior curiosidade desperta no público é o das relações entre treinador e jogadores. Para uns, o modelo deve ser um Yustrich autoritário, para outros um Cândido de Oliveira professoral ou, ainda, um fantasista tipo Helénio Herrera. São todos eles figuras do passado, mas a bola continua a ser redonda. Os jogadores têm agora mais bigodes do que antes, mas ainda não usam calça comprida, antes persistem em jogar de calção, símbolo da brincadeira que, basicamente, o futebol deve constituir, diversão saudável, encontro e festa, desporto sempre, apenas um jogo.

O terceiro homem (além do treinador e do jogador) é o dirigente, responsável pela contratação dos outros dois. E por ele nos chega, ano após ano, a aberração do despedimento do treinador que, sendo o mesmo homem, o mesmo profissional, deixa de ser considerado competente, às vezes, ao fim de poucos meses.

Por isto ou por aquilo, é sempre o treinador a vítima, como se os jogadores fossem perfeitos e impolutos. Assim, já saíram de Belém o belga Henri Dupireux e três brasileiros, Cláudio Garcia, Paulo Roberto e René Simões.

Como dizia Eça, é uma bengalada higiénica, tão cheio está o futebol português de técnicos e jogadores brasileiros. Nomes como os de Otto Glória, Zézé Moreira ou Flávio Costa merecem respeito, mas hoje a quantidade abafa a qualidade e compra-se gato por lebre.

No Paris Saint-Germain, aconteceu uma coisa curiosa, com uma despromoção para cima. Devido aos maus resultados, o técnico Gerard Houiller (antigo professor de inglês) foi afastado do comando da equipa, mas promovido a manager, passando a supervisar toda a organização do futebol. Há dois anos foi campeão de França e elogiado não só pelo título mas igualmente pela forma como conduziu a equipa, com espírito de união e conquista, solidariedade e ambição. Porém, os resultados não perdoam e o mesmo homem, com os mesmos métodos, é agora afastado…

A propósito deste tema, recordei-me de duas notícias que li há pouco tempo. Em Paris comentava-se abundantemente a atitude de Artur Jorge, frio e distante para com os seus jogadores, após a derrota em Cannes.

Ao mesmo tempo, um jornal português informava que, no início desta época, o treinador desejado pelos jogadores do Benfica era Quinito.

Achei curioso este paralelo e, porque o tema é interessante, aqui deixo o meu ponto de vista, tanto mais que conheço bem os dois treinadores em questão.

No relacionamento com os jogadores não há receita única. O treinador é um homem, um indivíduo, com o seu temperamento, o seu carácter, as suas convicções, os seus princípios, os seus valores. E cabe-lhe dirigir vinte ou trinta homens que são outros tantos indivíduos com as suas particularidades. Daí, a evidente dificuldade da função de treinador.

Saía eu de Coimbra, em Junho de 1965, quando o Artur Jorge chegou. Não chegámos a ser companheiros de equipa, fomos apenas adversários. Quanto ao Quinito, foi meu companheiro no Belenenses, em 1971.
Já nesse tempo, Quinito era um hedonista, dentro e fora do futebol que encarava como uma actividade eminentemente lúdica, na sua acepção pura de jogo, brincadeira, representação, pantomina, fonte de prazer. Evidenciava uma alegria permanente e contagiante que não o impedia de ser um belíssimo jogador e um bom colega. Como treinador, não perdeu a fantasia nem o sorriso. Acrescenta-lhe alguma poesia, um grãozinho de loucura calculada, e aí temos o belo Quinito que consegue criar um clima agradável, com a adesão e a cumplicidade dos jogadores que lhe são dedicados, um bocado no estilo Robin dos Bosques e companhia.
Artur Jorge é diferente, tem o perfil ideal para treinador, formado em boa escola, e assenta os seus conhecimentos técnicos num passado de futebolista de eleição.

Nas relações com os jogadores, Artur Jorge passa por ser distante, pouco dado a intimidades. Neste cotejo benigno, há quem veja na toada familiar, no tom coloquial de Quinito um estilo de outro tempo em que o futebol era uma romaria dominical, quando os jogadores eram modestamente pagos e se vivia do amor à camisola, do bairrismo, da carolice, do espírito de sacrifício. Era o tempo da palmadinha nas costas, da vibração intensa, do ideal poético, era a Académica da laranjada como prémio de jogo.

Hoje o futebol é uma máquina poderosa e infernal que movimenta milhões e que não se compadece com nem recorre a sentimentalismos piegas. O treinador não tem que andar de braço dado com os jogadores. Estes são profissionais bem pagos, às vezes a peso de oiro, e a única coisa que se lhes pede é profissionalismo. Não há lugar a cumplicidade de larachas nem copos, não há choradinhos mas sim e apenas aplicação total de profissionais a quem se exige o cumprimento de uma missão. Só isso.

Depois, são os resultados que falam e aprovam ou reprovam os métodos. Virtualmente, pode haver cambiantes mas, na prática, processos bons são os que levam à vitória. E amanhã, os mesmos processos poderão ser banidos se não produzirem os mesmos efeitos, se não conduzirem ao triunfo e à glória.

Por isso, não há fórmula única, e o Espinho não é o F.C. Porto. Quinito terá razão em ser jovial enquanto ganhar, tal como Artur Jorge poderá ser (se o é) distante enquanto conquistar títulos. Os vencedores têm sempre razão…


Nota - Seis meses depois, Quinito assinava pelo F.C. Porto

1987

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 69

Frank Sintinas

António Cagica Rapaz

Foi o Manel António que me chamou a atenção para o homenzinho discreto, de boné, que guardava as sentinas. De facto, o homem era parecido com o Frank Sinatra, sobretudo de perfil. E desta forma nasceu a figura do Frank Sintinas, assim mesmo, pronunciado à nossa moda, à pexita.

As alcunhas, tão ao gosto da nossa gente, são muitas vezes mordazes, maldosas, cáusticas e raramente exprimem ternura. Neste caso, Frank Sintinas é fruto de inspiração benigna, imagem poética, só entre nós, como para arrancar o homem à banalidade cinzenta de uma existência obscura, através de uma comparação resplendente. Esta alcunha, aliás, nunca chegou a ser divulgada, era apenas uma simpática brincadeira, um sinal de liques, jogo de cumplicidade, sem ponta de maldade. Pelo contrário, o modelo era admirável, Sinatra, o som inesquecível da bossa nova no crepúsculo, naquela hora mágica em que o sol se põe por trás dos mastros altos dos veleiros ancorados na doca, de onde começavam a chegar os veraneantes, lobos do mar raso, vestidos de branco, bronzeados, em busca da noite...

As sentinas são os magníficos azulejos de Sesimbra, testemunhos de um passado que idealizamos, vestígios de um tempo que o ciclone levou e que alguns tentam desenterrar, esgravatando na areia da memória como os pescadores faziam, procurando moedas, fios e medalhas, mal acabava o vendaval.

As sentinas, como o jardim, eram o refúgio de pescadores idosos, remando contra a solidão, tertúlia de nostalgia, loja de companha de velhos de terra. O nosso Frank era o guardião do templo e do tempo, do bom tempo de pescarias fabulosas, do mau tempo de vendavais intermináveis, do tempo que a todos foge em cada maré vazia. O Frank Sintinas, sem saber, era conservador do museu, moderador de debates perpassados de melancolia, o passado eternizado nos azulejos. Frank Sintinas é a ironia inocente que nos leva a contemplar com um sorriso, sem pretensões moralistas, sem dogmas nem ilusões, velhos de terra que nós já somos também...

1992

sábado, 17 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 70

Superveniente*
António Cagica Rapaz
Há tempos a minha tia Lucinda fez-me chegar uma mensagem segundo a qual a tia Líbia gostaria de me ver. No universo já meio quimérico das férias da minha meninice, nas Caixas, a tia Líbia não era figura predominante, talvez por morar muito longe da minha casa, aí a uns bons oitenta ou cem metros, o que era considerável na minha minúscula aldeia. O meu centro de gravidade situava-se algures entre a casa do tio Júlio e da tia Clarisse, por um lado, e a do tio Justino e da tia Conceição por outro.
A tia Líbia tinha duas filhas, um filho e um marido epiléptico. O filho, o Bernardino, não era meu companheiro assíduo de brincadeira nem das fainas agrícolas. O nosso relacionamento era mais distante, não havia a intimidade que tinha com o Julinho, por exemplo.
Os anos passaram, a nossa infância ficou mais longe, diluída na ribeira dos Torrões, e só muito mais tarde voltei a encontrar-me com o Bernardino. E se a tia Líbia agora me queria ver tal se deve em grande parte a esse encontro que ocorreu em meados de 1971 no cenário agreste, ventoso, detestável, do Campo de Tiro da Serra da Carregueira.
Depois de Mafra e do Porto, fui ali colocado e designaram-me para chefiar a Unidade de Mobilização que era, no fundo, a secretaria geral da soldadesca ali incorporada.
Está bem de ver que aquilo para mim era chinês, mas tropa é assim, obedece e desenrasca. Felizmente havia o sargento-ajudante Manso que de facto me ajudou muito, apesar de ser um bocado surdo. Ele é que sabia de requerimentos, notas e outra papelada e, graças às suas indicações, lá fui levando a água ao meu moinho, conservando a escrita em dia, ou melhor, em meio dia porque à tarde eu estava autorizado a sair para os treinos do Belenenses.
A certa altura a minha curiosidade foi espicaçada ao verificar que os vários processos de amparo de família que por ali passavam eram todos, mas mesmo todos, sem excepção, arquivados, caixote do lixo. Admirado, perguntei ao Manso o porquê de tal procedimento e ele explicou-me simplesmente, dizendo que não eram supervenientes. Trocado por miúdos significava aquele palavrão que os rapazolas não tinham metido os papéis na devida altura, “atempadamente” como agora se ouve dizer.
Os processos de amparo deviam ser obrigatoriamente apresentados pelos mancebos (assim era designada a carne para canhão) no dia em que iam à inspecção. Ora está bem de ver que, nesse dia, nenhum mancebo, por mais cebo que tivesse entre os dedos do pé esquerdo, tinha o menor conhecimento das leis, regras, disposições ou regulamentos militares.
Sofridos e amargurados eles iam, com o rabo entre as pernas e a pila à mostra, desfilar diante do júri que lhes aplicava sem hesitar o caminho de apurado nos lombos magrizelas. Alguém imaginava que era logo nesse dia que se tratava do processo de amparo? E o que era isso dos processos de amparo? Eles queriam era fugir dali sem olhar para trás.
Segundo acto: o mancebo, transido de frio e medo, era incorporado no Campo de Tiro onde não aparecia como no arraial da festa das Chagas uma loiraça a perguntar “ó simpático, vai um tirinho?”.
Passado algum tempo começaram a ouvir dizer que havia quem saísse da tropa por amparo de pai ou mãe e, vai daí, alguns apressavam-se a falar com o médico de família, iam à Junta de Freguesia e às Finanças e reuniam os documentos todos que entregavam cheios de esperança na tal Unidade de Mobilização. O Manso mandava-os para a Amadora ou para o Quartel General, já não sei bem, e depois voltava tudo para trás com a menção “arquive-se”. Ponto final, morria ali a esperança. Porquê? Porque, como explicava o sargento-ajudante Manso, não eram supervenientes. Queria ele dizer na sua que a doença do pai ou da mãe só podia ser tida em consideração se tivesse acontecido depois do dia da inspecção. Ora praticamente todas as doenças invocadas e atestadas pelos médicos já tinham anos e anos pelo que deviam ter sido expostas no dia da inspecção. Como nunca era, por desconhecimento natural dos rapazes, vinha tudo para trás, arquive-se, caixote do lixo, inapelavelmente.
Como nunca gostei de pactuar com injustiças, resolvi procurar uma solução, uma artimanha para contornar esta legislação monstruosa e viciada. Com algum receio, o Manso lá me bichanou ao ouvido que a única forma era tornar o caso superveniente, ou seja, posterior à inspecção. Tal significava alterar as datas do atestado médico, da Junta de Freguesia, etc.  
Só que sugerir, aconselhar aos rapazes estas falcatruas era um exercício altamente perigoso. Estávamos em 1971 em plena guerra colonial e o risco era enorme, no mínimo prisão de Caxias, forte de Elvas, sei lá, Tarrafal, não faço ideia.
Na altura, para ser sincero, não me lembro se pesei os prós e os contras. Recordo-me de ter telefonado para a Amadora a um tal tenente Luís perguntando se não podíamos dar um jeito, ajudar os rapazes. A resposta foi agressiva, cínica, avisando-me de que não me metesse nisso porque era perigoso e depois se eles não trataram das coisas a tempo era com eles, paciência, que se lixassem. Se já estava indignado mais revoltado fiquei e foi nessa altura que me veio parar às mãos o processo do Bernardino. Eu nem sabia que ele estava lá na Carregueira, mas ao ver o processo lembrei-me dos ataques epilépticos do pai e decidi fazer qualquer coisa, não pensei no risco, procurei apenas ajudá-los, a ele e à família. Porque era justo, eu sabia que era verdade tudo quanto estava no processo. Por isso havia que torná-lo superveniente. Chamei o Bernardino, expliquei-lhe tudo muito claramente e ele lá foi, antes de tudo, falar com o Dr. Leite, o bom doutor de Santana, que lhe aldrabou novo atestado fingindo que a epilepsia do pai era recente. O resto foi só reajustar as datas dos outros documentos e lá voltámos à carga. Agarrei no novo processo e enviei-o com o coração apertado.
Depois dele foram vários, quatro, cinco, não sei ao certo, desconhecidos, não sei se sinceros se golpistas, pouco me importava. Estava ao meu alcance ajudá-los e foi o que fiz, fiz o que pude, despachando vários processos aldrabados, recauchutados, à graça de Deus. Hoje apercebo-me do risco gravíssimo que corri. Mesmo sem denúncia, bastava que alguém se lembrasse de comparar os processos refeitos com os originais para ver que havia aldrabice. E não teria sido difícil saber quem era o responsável.
Felizmente não houve incidentes. Pelo contrário, meses depois recebíamos na Carregueira notas informando que os soldados tal e tal, já colocados noutras unidades, tinham passado à disponibilidade por amparo de pai ou mãe. Eu ficava contente por eles, apesar de não saber quem são.
O Manso, discretamente, sorria-me.
Feliz também ficou a tia Líbia quando o Bernardino disse adeus às armas e voltou para casa. Agradecida, levou um coelho à minha mãe. em parte também o Manso merecia agradecimento. Por isso, de alguma maneira, foi um coelho Manso…
Estes factos são autênticos, poderão ser verificados se no Quartel General restarem arquivos desse tempo. Apetece-me contá-los depois da visita que a tia Líbia me fez na Aiana, para me abraçar com a força dos seus 82 anos de sofrimento e labuta permanentes. E sentida gratidão, decerto.
Hoje tenho uma consciência mais nítida dos riscos enormes que corri. Uma denúncia ou uma olhadela mais atenta aos processos poderia ter tido consequências gravíssimas para mim. Não sei se na altura reflecti seriamente, só sei que senti o dever moral de fazer o que estava ao meu alcance para combater uma dupla injustiça, a guerra e uma regulamentação viciada.
Foi a minha maneira de lutar contra um sistema iníquo e hoje sinto, se não orgulho, pelo menos a consciência do dever cumprido. Estava ao meu alcance e fiz. Não encolhi os ombros nem pactuei activamente como esse tal tenente Luís (por sinal também miliciano), antes agi e, felizmente para aqueles rapazes, com sucesso positivo.
Não me considero um herói, não peço à Câmara uma rua ou beco com o meu nome, basta-me a recordação da emoção da tia Líbia. Por ela e por todas as outras mães valeu a pena.
Mas também é verdade que, apesar de não ter na lapela o emblema nem constar da lista dos heróicos lutadores antifascistas, provavelmente terei feito mais que muitos conjurados da bica e bagaço que andaram tão escondidos em luta clandestina que ninguém deu por eles, ninguém descobriu rasto dos seus actos.
No fundo não mereço recompensa por que me limitei a aldrabar. É certo que se tratava de um poder injusto, mas não é bonito mentir. Por outro lado, a tia Líbia deu-me um coelho, é mais do que suficiente.
E já agora terminemos com um sorriso sobre a atitude de muitas pessoas e com uma alusão à guerra colonial: “Mesmo que viremos a casaca, a gola é nossa…”

____________
*Publicado em O Sesimbrense de Dezembro de 1995.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 19

Fado

António Cagica Rapaz

O sol entra tarde na estreita rua da Esperança onde as manhãs frescas trazem consigo um cheirinho a maresia. Na taberna do Manel o fado substitui o sol preguiçoso, e o Toni de Matos canta os amores difíceis da Maria do Céu (que nasceu e cresceu na Madragoa) com o Chico que mais ama o mar do que o Céu da Maria.

Enquanto a tia Lucília pendura a gaiola dos canários à porta, os miúdos partem para a escola, assobiando, e o Tonecas, ainda a mastigar o papo-seco matinal, dirige-se para a oficina do sô Silva, bate-chapa e retoques na pintura. É uma manhã de Lisboa…

À hora de almoço, o Tonecas corre para casa onde a mãe já fritou os carapaus. A rua adquire a sua animação habitual, com as vizinhas em diálogos cruzados de janela a janela, entre duas camisas penduradas. Na taberna do Manel é ainda o fado, quente e aristocrático, de Maria Teresa de Noronha, até ao noticiário da uma, na Emissora.

Depois de comer, o Tonecas mete duas tangerinas nas algibeiras largas do fato-macaco e vai sentar-se ao sol, no passeio, em frente da casa da Mariana. É um namora discreto, quase envergonhado…

Quando a noite começa a cair sobre Lisboa, a luz da tasca do Manel recorta-se nas pedras da rua e ouve-se a voz do Carlos Ramos pedindo a alguém para não vir tarde.

A vida decorria tranquila e rotineira quando, um dia, na taberna do Manel, à hora do vinho e à luz de um fado do Tristão da Silva, o sôr Alfredo (sócio dos Águias da Luz e conhecedor em coisas de bola) se abeira do Tonecas e o convida para um treino, à experiência, com os craques do seu glorioso clube. O Tonecas olha-o, surpreendido e intimidado, incrédulo e desconfiado. Ele num treino com as vedetas do futebol?! E então? – replica o sôr Alfredo que o observara dias a fio, à hora do almoço, após o paleio e o galanteio. Jeito não faltava ao Tonecas, disso ninguém duvidava, só ele próprio descria. O sôr Alfredo insiste, afiança, garante, aposta, seguro da sua experiência e do seu faro infalível.

O Tonecas, de garrafa na mão e cabeça à roda, passa diante da casa da Mariana sem dar os dois habituais toques na vidraça, mais em jeito do que em ousadia…

Enquanto come o feijão com arroz e o pão com chouriço, vai imaginando, através da garrafa mágica de tinto da quartola do Manel, o que irá ser o treino com os ídolos da sua juventude. Até aqui o futebol tem sido a sua grande e única paixão, mas uma adoração distante, marcada pela timidez e pela modéstia de filho de um embarcadiço que se esqueceu de regressar, e pelas nódoas de óleo no fato-macaco de bate-chapa de bairro.

Depois de jantar, vai dar uma volta, desce à beira do Tejo e contempla os horizontes que a eventualidade imprecisa de um treino já traça no seu espírito alterado. Depois de beber um bagaço arrojado ao balcão do Manel, e mais tarde do que o costume, volta a casa onde a mãe ficara a ouvir o teatro da Emissora.

Mal adormece e já se vê de camisola vermelha, correndo, driblando, marcando golos no estádio vazio onde só o sôr Alfredo e meia dúzia de adeptos ferrenhos aplaudem com entusiasmo. No final do treino, os craques felicitam-no, antes do melhor duche da sua vida. Sorri e regala-se sob a água quente, sente-se um herói. A mão treme-lhe ao desenhar o risco ao lado nos cabelos molhados que descem sobre um rosto iluminado por um sorriso resplendente. Dois directores esperam-no ao lado do sôr Alfredo e, ali mesmo, fica combinado um jantar no fim do qual, entre o charuto e o uísque, ele assina o contrato. No seu devaneio onírico, o Toneca vê-se ao volante de um carro descapotável como nunca entrara na oficina do sô Silva, tendo ao lado uma loiraça bem diferente da doce mas modesta Mariana. Num apartamento moderno, para as bandas de Benfica, anda numa roda viva, sem tempo para uma saltada à rua da Esperança nem memória para a mãe, os amigos ou a Mariana. Esqueceu o fado, as guitarras vibrantes e o tinto do Manel, tendo passado a frequentar cabarés duvidosos, com música ruidosa, mulheres espampanantes e champanhe de segunda.

Até que dá por si a esbanjar dinheiro e saúde, afastado da equipa, desterrado para divisões secundárias, no soturno esquecimento de tabernas tristes, sem fado nem amigos. Vê a sua pobre mãe envelhecida e prostrada, Mariana resignada e infeliz, casada com outro, enquanto o sô Silva trespassa a oficina.

Ao acordar, salta vigorosamente da cama, aperta nos braços e beija repetidamente a mãe surpreendida, e corre a casa da Mariana. Grita-lhe que quer casar com ela e, ao chegar ao trabalho, exige que o sô Silva lhe garanta que nunca há-de trespassar a oficina. Nesse dia há mais fado no ar, o sol brilha com mais fulgor na rua da Esperança, o Tonecas faz malabarismos com a bola de borracha, depois do almoço, no meio da rua, e é levado em ombros pelos colegas, contagiados pela sua alegria.

E tudo isto para grande espanto do sôr Alfredo que continua sem perceber por que motivo o Tonecas não quer ir ao treino e se recusa a ouvir os prognósticos doirados sobre o seu futuro de vedeta dos Águias da Luz…

PS – O Tonecas e a Mariana casaram, tiveram muitos meninos e foram muito, muito felizes.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 68

Galé

António Cagica Rapaz

Estava-se nos fins da década de 60 e o Desportivo vivia o período mais eufórico da sua existência, numa luta apaixonante para subir à 2ª divisão tendo pela frente o poderoso Farense e atrás de si uma vila inteira louca de entusiasmo e de fé. Era um espectáculo permanente, uma alegria contagiante de toda uma população orgulhosa dos seus rapazes capitaneados pelo lendário Valdemar e embalados pelas melodias do Mário Regalado e seus comparsas que punham Sesimbra a vibrar ao ritmo do “Ribolé, ai leva, leva lé, olha a Sesimbrense, olha a Pastorinha”, festa rija, de sabor autenticamente popular, bem da nossa terra, a cheirar a sardinha assada em ruas perfumadas com alecrim.

A música dos Galés tinha essa coisa maravilhosa que é a pureza, sabia a Sesimbra, tinha a cor do mar, o fulgor do nosso sol, um coro de gaivotas, falava das nossas traineiras, tinha ritmo e raízes, era nossa. Os Galés assentavam arraiais no Café Martelo, na Galé, ao tempo nas mãos do Hermínio Pinhal, antigo jogador do Desportivo, que não se fazia rogado para pegar nos ferrinhos ou dar uns toques na bilha do Mantas...

A Galé é um local privilegiado, primeiro balcão bem de frente para o espectáculo deslumbrante e permanente que é o mar.

Naquele tempo, as barcas e as traineiras vinham, ao cair da tarde, juntar-se diante da lota e era um quadro bonito e cheio de vida, com as cores vistosas das embarcações, as camisolas aos quadrados dos pescadores, o vaivém das chatas, a cantilena dos vendedores, o gelo do Chanoca, o café do Zé Maria, um cenário colorido, o mais belo cartaz de Sesimbra.

Hoje, da Galé, vejo os pescadores que passam com um balde de plástico na mão. Andam devagar como os figurantes de uma peça de teatro que atravessam o palco. Ali em frente, junto ao muro, passam caras conhecidas, casais que não trocam palavra, que cumprem um ritual, como se fossem atrás da procissão, em passo lento, levados pela cadência das ondas.

À boca da noite, o mar fica mais azul e o ar mais fresco. Na varanda da Galé ficamos a sós com o oceano infinito, testemunha do tempo. É a magia do anoitecer, a hora a que, noutro tempo, as mães chamavam pelos filhos que brincavam nas ruas estreitas. O jantar na mesa, a telefonia só conhecia o fado, os barcos baloiçavam docemente em frente à praia. Hoje, da Galé, avista-se o novo pontão que uma traineira dobra no silêncio do crepúsculo, uma luzinha no mastro.

Na linha azul do horizonte recorta-se a sombra da “Pastorinha” e, ao longe, ouve-se a melodia suave da gaita de beiços do bom António do Porto. Cai a noite na Galé...

1994

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 69

Antero do Quintal*

António Cagica Rapaz

A língua portuguesa é um mar profundo onde por vezes naufragamos quando nos aventuramos insuficientemente apetrechados, mas é também um mar rico, com marés cheias de termos e expressões curiosas, interessantes, por vezes carregados de ambiguidade e duplos sentidos que nos atiram de gargalhete para a praia da malandrice e do trocadilho.

Costumo ler com muito agrado os escritos esclarecedores do Dr. Manuel Nabais no Jornal de Sesimbra e aplaudo a feliz iniciativa que tomou em tão boa hora.

A sua recente evocação da figura de Antero de Quental nasceu da observação de uma incorrecção detectada no nome do poeta, mais concretamente na partícula de erradamente substituída por do.

A abordagem que faz é correcta e teve o condão de me segredar meia dúzia de ideias irreverentes que de vez em quando me atravessam um espírito por norma cândido, ingénuo e inocente…

Ora (aqui começa a viagem atrevida) a mim não me choca que o poeta açoreano se chame Antero do Quental. Vou mesmo mais longe, ele deveria chamar-se Antero do Quintal. Primeiro porque na nossa terra já houve um Antero da horta, da horta da Aninhas (ali ao pé da Marconi). Era o Antero da Aninhas, bem o conheci.

Depois, é mais apropriado para um poeta ser Quintal e não Quental. E quem tal negar é porque não sabe rimar. Quintal evoca natureza, árvores de fruto, beleza de hortaliça, capoeiras, passarinhos a cantar, aquela lengalenga bucólica do costume. Por isso cada vez mais me convenço de que Quintal é bem mais adequado. Portanto, desculpe lá Dr. Nabais, o engano não está na partícula mas no apelido. Está certo do mas não é Quental e sim Quintal, Antero do Quintal.

Posto isto (que me parece lógico e perfeitamente demonstrado) restam-me dúvidas e ainda esta noite dei comigo a pensar com os meus botões de punho”António, deixa os poetas em paz, assim NABAIS longe”. Mas agora já está, os dados estão lançados, prossigamos no raciocínio delirante mas não tremente.

Por esta ordem de ideias, o Antero do Pão acaso seria Antero de Pão? E já agora, ambiguidade por ambiguidade, não seria Antero do Pau como o pirata da perna de dito?

E a localidade será Cruz de ou do Pau?

A partícula de confere sentido mais lato e mais lata preciso eu de ter para vos dizer que Joaquim do Moinho é só daquele, não é de todos os moinhos. Antero do Quintal é só de um enquanto Zé das Abóboras é de todas, sem excepção. Mais rigoroso e exacto era o “Quilo e meio de papas”, nem mais um grama (e não uma grama como vulgar e erradamente por aí se ouve).

Esta polémica é antiga e atravessou fronteiras. Inspirou até uma canção, nos anos cinquenta, a um cantor sul-americano, não sei se o Lucho Gatica se o António Machin. Na sua versão original intitulava-se “Olá Quintal”, mas desvirtuou-se e acabou em “Olá que tal”, como te vás, etc. e tal, olá que tal”.

Estamos perante uma questão de grande subtileza, pois dizer o Zé do Central” não é o mesmo que referir “o Zé de Central”. Neste último caso pode maldosamente pensar-se em prisão central ou banalmente em bancada central, se o peão estiver esgotado.

Dizem as más línguas que esta confusão entre do e de teve a sua origem num conhecido defeito de pronúncia de um antigo (que deseja ser futuro) chefe de Estado o qual, ao ler o nome do poeta, disse “Antero de Quental”onde estava “Antero do Quental”.

Enfim, é informação que dou um tanto à socapa, sob sérias reservas, visada pela comissão de censura e a bem da Nação. Sim, porque é complicado. Se não, reparem: António do Olho (Qual?) não é o mesmo que António de Olho (à Belenenses? à Benfica?).

Isto tem que se lhe diga, para falar de de e do é preciso dedo, não é coisa fácil.

Por exemplo, há muitas caras de bacalhau, mas só uma é cara do Bacalhau, aquele calmeirão da praça do peixe que aliás deveria ser de peixe pois não é só um mas todos ou quase. Mas quem vê caras não vê corações e até o Ricardo era Coração de Leão e não do Leão porque esse assa frangos saborosos ao pé do Canino. E por aí fora se poderia ir na busca incessante de trocadilhos mais ou menos conseguidos. Mas haja mesura e fiquemos por aqui, não sem antes pedir desculpa ao Dr. Nabais pela brejeirice com que entrei no seu quintal linguístico tão bem cultivado.

E já agora uma última laracha que me surge a propósito dos jogos de palavras e dos jogos de futebol. O treinador do Sporting afinal não sai do Clube. Pelo menos os adeptos leoninos, cansados de tanta contrariedade, não esperam mais essa de Queirós…


*Publicado originalmente em O Sesimbrense.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 18

Eles não sabem

António Cagica Rapaz

Só a partir dos anos setenta os salários dos futebolistas começaram a subir de forma sensível. Em 72, salvo erro, o peruano Cubillas veio ganhar, no Porto, uns escandalosos 150 contos por mês, imagine-se…

Progressivamente, foi ficando mais funda a vala que separa o vencimento médio, digamos assim, da população e o ordenado das vedetas de futebol. Por outras palavras, até àquela altura, o que ganhava um jogador de futebol, mesmo dos melhores, não impressionava, não chocava nem causava incompreensão face à realidade das condições de vida no nosso País.

Também nesse tempo, e por força da lei da opção, eram raras as transferências dos jogadores mais emblemáticos que permaneciam toda a vida no mesmo clube de que se tornavam verdadeiros símbolos. Tal sucedeu com José Águas, Hernâni, Travassos ou Artur Vaz, por exemplo. Outros ainda acabaram por sair, em final de carreira, mas ficaram para sempre ligados ao seu clube de origem, como sucedeu com o Matateu ou o Eusébio.

Talvez por estas razões, as relações entre adeptos e jogadores eram de uma natureza afectiva diferente, havia admiração, claro, era como se fossem da família, mas, ao mesmo tempo, havia distância, certa forma de pudor, algum mistério, cada um no seu lugar. O adepto não ia para a bancada exibir-se, não era actor, apenas espectador, vibrante, apaixonado, mas apenas figurante.

Nos anos sessenta, fui testemunha de um episódio que nunca esqueci. Jogando contra um dos grandes, no seu estádio, perfilámo-nos para a habitual saudação ao público numeroso que aplaudia delirantemente os seus ídolos. Momentos depois, apercebi-me de que alguns deles, enquanto agitavam os braços, agradecendo os aplausos, pronunciavam palavras de desprezo e escárnio para os adeptos que, naturalmente, lá longe, nas bancadas, nada podiam ouvir, apenas viam gestos e sorrisos postiços.

Admito que houvesse boa dose de irreverência e chalaça, mas ficou-me essa imagem de sobranceria e desrespeito pelos ingénuos admiradores…

Por isso me causa uma impressão estranha ver homens, mulheres e crianças, autenticamente mascarados, com a cara e o cabelo pintados, com ornamentos bizarros, chifres e guizos de bobo. E são as bandeiras, os cachecóis, as faixas, as gaitas, tudo em nome de uma ilusão de adesão, de uma pretensa pertença, de uma gigantesca comunhão com ídolos mercenários e milionários que nenhum laço afectivo liga ao clube e, menos ainda, aos adeptos. Que pensará deste carnaval um jogador que ganha vinte ou trinta mil contos por mês? Jogador que actua hoje no Porto, amanhã estará no Sporting, a seguir no Benfica? Que quimeras, que motivações levam o português médio, de emprego precário, a contribuir com dinheiro para clubes geridos por dirigentes de integridade tantas vezes duvidosa, a entregarem-se de corpo e alma àquelas celebrações surrealistas?
Que frustrações, que desesperanças, que recalcamentos se escondem por baixo das pinturas e dos bonés com chifres ou guizos? Será, porventura, o fascínio do futebol que, de forma insólita, discutível, mas sempre apaixonante, ajuda a esquecer angústias e desencantos.

A televisão, a rádio e os jornais só fazem eco de palavras estudadas, de discursos estereotipados e monocórdicos dos ídolos. Mas o que eles realmente pensam e dizem em privado, do alto dos seus milhões, isso os ingénuos adeptos não sabem. Nem sonham…

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 67

O tio Nuno

António Cagica Rapaz

Ao Luís Filipe

Os rapazes da minha geração foram à catequese na igreja de cima, com o padre João, fizeram a comunhão solene, alguns a confirmação ou crisma, e construíram um ideal de vida assente na família, com a mística das novenas, a Festa das Chagas, a procissão imponente e comovente, o pitoresco profano dos santos populares e a ternura do presépio envolto em cânticos celestiais na missa da meia noite.

A família não se compra como as figuras do presépio que construíamos com cortiça das armações e o musgo do ribeiro. Bem teria gostado de ter tido uma família com muitos irmãos, primos, avós, gente boa e amiga à volta da mesa, ao pé da chaminé. Mas não tive. Quis, porém, o destino que tivesse vivido, em épocas e lugares diferentes, junto de famílias à imagem da minha idealização.

Durante alguns anos, na minha adolescência, na noite de Natal, fui à missa do galo e partilhei a consoada em casa do senhor Nuno Cardoso que era, para todos nós, o tio Nuno, um homem maravilhoso, de rara qualidade, bondoso, gentil, generoso, tolerante, de gosto apurado e com uma pontinha de malícia deliciosa.

O seu presépio era um universo de harmonia, mesura e poesia, numa recriação inspirada no amor que punha em cada gesto. Naquela noite, o tio Nuno era o Pai Natal que tinha uma prendinha para cada um de nós. Mas a dádiva maior era a sua amizade, delicada e pura, o seu sorriso e a sua bondade.

Durante anos tive a felicidade da sua convivência, em particular na Cotovia, em domingos inesquecíveis iluminados pela espiritualidade da sua presença, do seu fino humor, da sua irreverência benigna.

O tio Nuno deixa-nos uma recordação luminosa, o apurado sentido estético e ético da existência, a suavidade do trato e a pureza de sentimentos. Com o tio Jojó e a D. Stella, formava uma trindade maravilhosa.

Quando passardes no largo da igreja de cima, olhai as janelas da casa de esquina. Ali viveu um homem admirável que partiu na Primavera de 1976. Treze dias depois foi-se-lhe juntar a minha mãe que tanto apreciava a sua companhia nas tardes da Cotovia. Quem, como ele, era bom, generoso e gentil, só podia partir na Primavera, tinha de ser em Abril...

1982

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 68

Elegância no falar*
António Cagica Rapaz
A minha mãe tinha uma caligrafia admirável que costumava designar por letra gótica. De facto era bonita, elegante, sem demasiados floreados, um regalo para a vista. Não sei se foi aplicação e esmero se foi o receio das palmatoadas da dona Beatriz Palmela, o que sei é que a dona Amália escrevia que era um primor.
Bem também, embora com outro estilo, escreve a minha tia Lucinda, não só quanto à forma mas igualmente quanto ao fundo, toda ela sensibilidade e poesia acompanhadas por um temperamento vibrante e apaixonado, mulher de pincel e espada, artista na alma, dedos de fada.
Eu bem fui aluno da dona Beatriz mas a minha caligrafia é pobrezinha, pouco prendada, mediocridade que não vos é possível observar nesta letra de imprensa, capa que me salva.
Mas letras são tretas e cada um de nós tem à sua disposição as 23 letras do alfabeto que permitem milhões de arranjos e composições. Temos, além disso, dicionários carregadinhos de palavras, temos gramáticas e prontuários, selectas e sebentas, todo um arsenal capaz de nos levar a escrever coisas de belo recorte estilístico, com metáforas aos montes e alegorias a dar com um pau da roupa.
O pior é o resto, é a maldita folha branca que olha para nós a gozar, desafiando-nos para descobrir uma ideiazinha, um assunto, um tema a desenvolver. Que vou eu arranjar, inventar desta vez?
Começo a olhar à minha volta e de repente lá surge ao longe, sempre ao longe, um esboço de ideia.
Esta é a quem me ocorreu e que vos estou agora a expor, falando de pessoas que falam ou escrevem bem.
Outras há que nem escrever sabem e que no entanto são inteligentes, sublimes, possuem uma riqueza interior espantosa, um vocabulário rico, saboroso, variado, que nos ensinam coisas admiráveis a cada passo. Sobretudo aprecio-as quando falam com imagens coloridas, expressivas, enraizadas na nossa cultura ancestral, quando vão buscar essas imagens à nossa terra, ao nosso mar, às coisas boas, à nossa herança colectiva, recordações, evocações, nomes, situações, piadas, repentes, ditos, contos da noite velha, mas coisas nossas, que nos tocam cá sentro, que nos sabem a mar, que nos sabem amar, que nos aquecem a alma.
No campo fala-se de forma diferente, «parece mintira», como diz o António do Reza que tem lenha (salvo seja) que é um amor. O António é uma enciclopédia de frases espirituosas, ditos e trocadilhos, um verdadeiro jogral. Quando canta (o que é raro) a caldeirada à portuguesa é um hino nacional em lume brando. É um regalo ir à Cotovia comprar lenha ao António porque a sua melodia verbal é uma delícia.
O irmão, o Zé do Reza, não gosta de favas e é pena. Esta alusão é uma piscadela de olho para a Carmelinda e para o nosso Jorge que foi o maior trovador, o filósofo mais fino que conheci neste perímetro saudoso.
Ora, onde é que eu ia? Ah, nas diferenças entre o falar do campo e o dos pexitos. É de facto outra coisa, o ritmo da frase, a musicalidade, o sotaque, o acento, no campo é outra coisa. Não vou enfiar por aí, é tema para os amantes da linguística e tenho mais que fazer. Em tempos fiz um trabalhinho jeitoso com alguma ajuda do mestre Rafael Monteiro (outro filósofo, outro saber) e que me foi encomendado pelo muito ilustre professor Dr. Lindley Cintra, no ano da graça de 1969.   
Nesse tempo tive o privilégio de ter sido aluno do maravilhoso contador que era Vitorino Nemésio e bem me lembro como era bom ouvi-lo. Era um deleite, um encantamento, as palavras certas, vivas, encadeadas, coloridas, agrupadas em frases perfeitas, tudo fácil, tudo simples, tudo bem feito, como dizia o meu compadre Alves dos Santos que continua a ser uma referência no domínio do esférico e da língua portuguesa.
Ora as línguas não são estáticas nem estátuas de mármore. Nós damos à língua e a língua dá-nos, com o tempo, palavras novas, expressões diferentes, mais ou menos interessantes, mais ou menos úteis, mais ou menos felizes. Mas surgem, é assim, acontece, é inevitável.
Hoje parece-me estar a língua portuguesa doente, atacada pelo vírus dos brasileirismos que nada de valorizante nos trazem. Nada de gratificante, como se ouve agora dizer, a torto mais do que a direito. Paralelamente vão aparecendo termos diferentes para exprimir as mesmas ideias ou conceitos que outras palavras já exprimiram até melhor, de forma mais justa e apropriada. De repente começou a dizer-se postura em vez de atitude quando, no sentido habitualmente buscado, o melhor é utilizar atitude já que postura se refere mais ao físico do que ao mental.
O mais chocante não é tanto a imperfeição relativa do termo agora utilizado, mas sim a verdadeira inundação, a diarreia verbal com postura para aqui, postura para ali, toda a gente a repetir como papagaios uma moda que alguém lançou talvez para se distinguir, para se elevar através do que julga ser um discurso diferente, moderno, na crista da inovação.
Com esse vieram protagonizar, atempadamente, implementar, potenciar, indiciar, potencializar e outros. Alguns não existem sequer na língua portuguesa como o atempadamente que nenhuma falta fazia já que sempre se disse a tempo e horas, oportunamente, em devido tempo, na altura própria, enfim, mil maneiras que dispensavam esta barbaridade presunçosa, tão inútil quanto postiça.
É a minha opinião, apenas isso e quem não concordar pode ir queixar-se à Capitania, ao Posto de Turismo, à porta da praça ou ao largo do Canino. Desde que o faça «atempadamente»!
Naturalmente a língua tem de evoluir. O Mundo muda, altera-se, não sei se progride mas avança, surgem coisas, ideias, objectos, técnicas, conceitos novos e por isso é natural que surjam também neologismos. Pirosa é a repetição cansativa, monocórdica, macaqueada, de pretensas inovações por pessoas que julgam adquirir um estatuto mais elevado quando dizem indiciar em vez de revelar, sugerir, mostrar, deixar entrever, etc. Indício existe e é correcto, indiciar não sei nem me interessa ir ao dicionário verificar. Até pode ser que exista mas recuso-me teimosamente a utilizá-lo porque me desagrada o facto de ouvir tanta gente a dizer apenas, sempre e só indiciar deitando para o lixo todas as outras formas de exprimir a mesma ideia. É pedante, é postiço e sobretudo a nossa língua sai mutilada, perde muito mais do que ganha. Ninguém hoje diz que o dia está lindo, resplendente, maravilhoso, deslumbrante, fabuloso, etc. Hoje, para qualificar tudo o que tem sinal positivo só se diz óptimo. Só. O resto vai fora, fica no saco e desta forma o nosso vocabulário fica mais pobre, mirrado, reduzido a expressões simples, telegráficas, sintéticas, esqueléticas, despidas de cor e sabor, feitas de plástico. E isso não é óptimo, desculpem lá.
Há poucos anos um dirigente desportivo teria dito a propósito dos jogadores: – «vamos acompanhar a evolução destes rapazes para os ajudarmos a aperfeiçoar as qualidades que revelam».
Hoje, qualquer adjunto do técnico auxiliar do treinador principal dirá com ar convencido: «A equipa técnica vai monitorizar o itinerário do grupo de trabalho por forma a potenciar as potencialidades que indiciam».
Toma lá que já almoçaste, quem fala assim não é gago!
Tento imaginar o mestre Adelino nos dias de hoje, na sua barbearia, e não sei se ele alinharia nesta verborreia de plástico.
A verdade é que não acredito que o mestre Adelino pusesse a sua «ténica» de retórica ao serviço destas macacadas. Sim porque, prontos, não sei se, prontos, ele, prontos, estaria pelos ajustes…
Boas são as nossas expressões alegóricas, típicas, bem enraizadas na nossa terra, na nossa vila, é o mar ao bote, o mar da névoa, o arrebater como uma chaputa, o safa já a giga e tantas outras.
Boa é a tradição oral, os ditos, as expressões, as frases feitas que nos ficaram e que se adaptam, se encaixam, nos vêm à memória a propósito desta ou daquela situação. São em geral saborosas, expressivas e impressivas, ás vezes picantes, muito ligadas a pessoas, acontecimentos e coisas que são nossas, que nos são próximas, que nos dizem muito, que mexem connosco, têm o nosso cheiro, a nossa marca, são cá das nossas, em suma.
Da minha mãe ficaram-me inúmeras frases, historietas, quase provérbios. A minha irmã transmitiu ao marido e aos filhos e hoje o João Pedro sabe o que teria dito a avó se lhe falassem em meias.
A Judite até se ruça quando lhe falam em andorinhas porque ela conservou, tal como a minha tia Lucinda, essa herança, essa memória colectiva que outras famílias possuem também, felizmente.
Não creio que o meu tio Justino aprovasse a «postura que indicia potencialidades abrangentes». Imagino que, se ouvisse fraseado tão oco e postiço, pretensamente moderno e elitista, ele remataria jocosa e filosoficamente: – Vai cagar, vai!
É português, está no dicionário e, com toda a franqueza, às tantas é o que apetece responder.
Que me perdoem as almas mais sensíveis, os espíritos mais delicados, mas por vezes, de facto, sabe bem dizer. E fazer.
____________
*Publicado originalmente em O Sesimbrense.