Carta ao Julião*
António Cagica Rapaz
Quando eu fui morar para a Herdade já o Julião lá vivia, ao cimo das escadinhas, mais chegado à rua Amália do que à rua Monteiro. Em frente morava outro Julião, irmão do Bernardo e do Filipe, porta a porta com os Maquinos, o António e o Sebastião.
O Julião era o nosso rato Mickey miúdo, franzino mas vivo como um alho, inexplicavelmente lingrinhas ao pé do pai, o imponente Guilherme Pala-Pala.
O Julião era do Sporting mas o pai era do Belenenses e quis o acaso que nos sentássemos lado a lado no Estádio do Restelo no dia da inauguração, em 1955, talvez. Nesse tempo jogávamos à bola todos os dias e tinha uma equipa de respeito na qual o Julião tinha lugar certo, com os seus dribles curtos, o seu repentismo e a sua genica. Era o tempo das grandes jogatanas, em frente da escola de St.ª Joana, que duravam até aparecer o João Vai-Vem ou o Alfredo Polícia.
Mal sonhava o Julião que o filho do Polícia Alfredo acabaria por ser o marido da sua irmã Teresa. As voltas que a vida dá…
Nessa equipa o Julião jogava a avançado e o melhor jogador era o Carlos Alberto, senhor de uma habilidade excepcional e que só não foi longe pelo azar que teve no joelho. Era tão bom (ou melhor) no futebol como no ténis de mesa e fica tudo dito.
Já nessa altura o Julião era um rapaz divertido, folgazão, amigo da paródia, adepto da laracha, sempre de sorriso engatado e gargalhada pronta.
Fez a sua quarta classe como tantos outros mas não pôde subir a Rua Monteiro até ao Colégio do Dr. Costa Marques porque a chata do tio Guilherme não dava para tanto. É assim a vida, alguns nascem em enxergas de palha e outros em berços de prata. E o Julião teve de começar a trabalhar enquanto eu e outros íamos às aulas. E lá ia o nosso belo Julião, de fato-macaco, trabalhar para a doca com o Albano, o Tica e toda aquela tropa fandanga de carpinteiros navais que entravam no café do Jeremias. A certa altura o Julião comprou uma motorizada e era um espectáculo ele e a moto, a moto e ele, marginal fora, sempre bem disposto.
Os anos foram passando, o Julião trabalhando, os outros estudando, uns em Setúbal, outros em Lisboa, mas a camaradagem era a mesma. O Julião era dos nossos e nas farras era o número um. No Carnaval o Julião dava recital e à volta da fogueira, nas noites de S. João, era o rei das quadras ao desafio.
A profissão de carpinteiro naval é dura e o Julião não era nenhum Hércules. Um dia surgiu uma oportunidade na Biblioteca Municipal cujo Director era o Dr. António Vitorino (o Tó, meu ídolo do bilhar) que fazia o favor de ser meu amigo. Pedi-lhe para tomar em consideração a candidatura do Julião e foi assim que o nosso ponta-de-lança da Horta trocou a serra pela esferográfica e a doca pelo largo da farmácia.
Ao longo dos anos fomos continuando ligados, fazendo parte de um grupo de malandros onde pontificava o Manel António, meu capicua e amigo do peito. O Julião foi meu companheiro de mil voltinhas ao Espadarte, de patuscadas nas Caixas, de convívio salutar. Com esses anos que passavam a vida modificou-se para nós todos, cursos acabados, tropa, casamentos, o mundo a agitar-se enquanto o Julião ficou sozinho no largo do Central a ver cada um ir para seu lado, sem compreender que não podemos continuar eternamente a dar voltas ao Espadarte e a fazer cegadas pelo Carnaval. O Julião viveu no meio de amigos que evoluíram de forma diferente, saíram de Sesimbra, levados por estudos e, depois, por empregos absorventes. E de repente foi o vazio, o silêncio, a tristeza dos invernos chuvosos e solitários. Um fim de semana passa depressa, os amigos criaram outras obrigações. E o Julião foi ficando sozinho, o seu sorriso permanente murchou, no seu espírito o Carnaval morreu e só ficou a quarta-feira de cinzas, a solidão e o desencanto.
Primeiro foram os amigos a afastarem-se puxados pelas correntes da vida e depois foi ele a fugir, a esconder-se, julgando-se menos digno.
É pena que o Julião tenha perdido o seu sorriso luminoso. Talvez a certa altura ele se tenha fechado um tanto, talvez não tenha feito o esforço necessário para acompanhar o ritmo do grupo. A sociedade é um grupo imenso formado por núcleos mais restritos e a solidez daquela depende da consistência destes. A vida nos une e a vida nos separa porque não temos a força de vontade necessária para nos mantermos unidos. Amigos de infância passam anos sem conversarem dez minutos, sem reencontrarem as recordações, sem evocarem os episódios, a vivência, o tempo que foi.
Cruzam-se de carro, trocam um aceno, lançam uma piada a fugir, mas não arranjam tempo para um passeio na praia, uma tarde de sábado, ao sol de inverno, com o vento a remexer nos cabelos já grisalhos.
O isolamento do Julião é o símbolo do egoísmo de todos nós, mais de uns do que de outros mas, no fundo, de todos os que perderam o culto da amizade, que se preocupam apenas consigo e os seus mais próximos, com o preço das coisas sem se aperceberem do valor das mesmas.
E um belo dia ao dobrar uma esquina esbarramos uns nos outros, olhamo-nos de frente e damo-nos conta de que nos perdemos durante anos, sem sabermos porquê. Por momentos voltamos a ser crianças, voltamos a marcar golos à porta da escola de St.ª Joana, voltamos a acampar no Castelo, a jogar ao pião, a treinar pela mão do velho Carlos Marques. E temos a sensação de ter deixado fugir nas malhas da vida o melhor que havia em nós, a amizade, a cumplicidade, o espírito de corpo, a força de um grupo unido. Não esperem pela idade da reforma para irem sentar-se de bengala e mão trémula no jardim, nos bancos da saudade.
Sem desatarem aos beijos e abraços à porta da praça, é possível e desejável não deixar secar por completo a árvore da amizade.
Os grupos formam-se naturalmente por força das convergências existentes. Não podemos ser unha com carne com toda a gente, mas temos o nosso grupo, os nossos grupos. E esses há que preservá-los.
O Julião é do nosso grupo. Vocês que também são, formem de novo o grupo, puxem por ele, revigorem-no, já dei um toque ao Manel António e temos um projecto esboçado para Fevereiro. E o Julião será dos nossos, não pode faltar. E que esse seja o primeiro passo.
O Manel António está encarregado de lançar as bases e tu, Julião, vais com o teu pé ligeiro pedir explicações ao Manel. Perguntas no Largo do Canino onde mora a Tia Júlia e ela dá o recado ao Manel, como antigamente. Precisamos todos uns dos outros, pouco valemos isolados.
O dinheiro e as ostentações cá ficarão, só os valores espirituais perduram.
São eles que contam e acredita que estão em nós. Vamos encontrar o Julião e vamos sobretudo encontrar-nos.
Então por que não, por que não hei-de ir à Torre de S. Julião ver o Galeão partir? Vamos fazer uma fogueira de amizade, com o fumo da alegria que provoca alguma lágrima teimosa e a lenha picante da irreverência da nossa mocidade. Julião, vamos a isso?
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*Publicado no Jornal de Sesimbra.