sexta-feira, 17 de junho de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 63

Segundo andamento*

António Cagica Rapaz

O senhor Camilo José Cela é um maravilhoso escritor galego que, em 1989, conquistou o Prémio Nobel, graças ao seu estilo admirável, todo ele originalidade, ritmo poético, imaginação, fantasia, subtileza e humor fino, numa fluência mágica que faz das palavras seixos cantantes que vão rolando riacho abaixo para nosso deleite e encantamento.

E tem também uma pontinha de loucura, atrevimento e irreverência que bem me agrada, porque nenhum de nós é um bloco inteiriço e compacto, antes temos esquinas, becos insuspeitos, arestas e fendas, caves secretas, gavetas misteriosas e sótãos por arrombar.

Por isso, podemos fazer um discurso sério, sisudo, sentido, sofrido e doloroso para logo soltarmos uma saudável laracha, das que provocam sonoras gargalhadas capazes de rebentar com os cós das calças como gostaria que este fosse. Todos temos em nós a melancolia do Outono, a poesia da Primavera, o fulgor do Verão e os arrepios do Inverno…

Pois o nosso Camilo José pregou-me uma partida que bem vos conto.

Embalado pela excentricidade poética, pela fantasia deslumbrante dos seus “Onze contos de futebol”, atirei-me como gato a bofe à “Cruz de Santo André”. Imaginem a minha surpresa ao deparar com frases que me fizeram corar de (muito pouco) vergonha. Já lá vamos.

Todos sabemos que o peso das palavras, o seu impacte, a sua carga emocional dependem, fundamentalmente, do contexto, do enquadramento. Há coisas que passam com naturalidade quando são ditas, mas as mesmas palavras já nos chocam quando as vemos escritas, impressas no papel. Num jornal é menos grave, vai e vem, leva-o o vento, acaba no caixote de lixo. Mas um livro é coisa séria, pode ficar para a posteridade, entrar na História.

Vejam só o meu espanto ao ler, da autoria de Camilo José Cela, estas coisas alucinantes:

“…por vingança, mijou e cagou-lhe na roupa” (p. 36).

“e a pilinha escura de mais, além de ser de baixo de cu” (pág. 62); “…o don Alfonso era  mais de bufas do que de peidos” (pág. 87). 

Garanto que estas passagens são das mais suaves, havendo outras infinitamente mais chocantes, num universo de putas e proxenetas. É uma edição da DIFEL – Difusão Editorial – 1994.

Lembrei-me logo de um parente meu cujas tiradas coloridas ficaram célebres. Ora, depois do que li (e aqui não reproduzo), chego à conclusão de que, bem vistas as coisas, ele era um aprendiz na arte de cultivar a brejeirice. De facto, é de se ficar boquiaberto, incrédulo e abananado.

Ninguém se admira quando um bufão como o Herman José diz graçolas mal cheirosas, mas um poeta sublime como o nosso bom Camilo! É de bradar aos Cela da família toda cujos antepassados devem ter dado voltas e mais voltas nos jazigos.

Voltas de gozo, imagino, rindo a caixões despregados porque, provavelmente, aquilo já vem de longe, é hereditário, tudo malandragem, farsantes e desavergonhados.

No fundo, tudo isto é bem pouco significante, sendo porventura benigno e até salutar. Porque se Camilo José cela nos delicia com o seu talento e a sua imaginação delirante que nos levam ao êxtase, ao sonho e ao encantamento, ao mesmo tempo, chama-nos à realidade, bate-nos no ombro para nos recordar que artifícios e rigores postiços são ridículos.

Os preconceitos, a parcimónia, as convenções sociais, a etiqueta, a ética, a moral, o bom gosto, o bom tom e, sobretudo, a hipocrisia ditam e condicionam o comportamento público das pessoas. Em privado, sabe Deus… 

Se não acreditam, peçam ao Julião para contar a proeza épica do Diogo que, apenas com um sopro fulminante, levantou duas filas na geral do Parque. Diz a lenda que, na taberna da Maria “Antónia”, tiveram que perfumar com alecrim.

Não vos dou pormenores porque não fui testemunha olfactiva e também porque a minha mãezinha sempre me desaconselhou temas escabrosos. Ah, muito haveria a contar sobre o Parque! Que era ao ar livre. O que faria se fosse no tempo da ópera bufa…

Estas reticências e pruridos só existem porque levamos a vida demasiado a sério, esquecendo que estamos todos, desde que nascemos, condenados à morte.

Naturalmente, nada justifica nem deve ficar impune qualquer atentado ao próximo, à sua dignidade, às suas convicções, aos seus princípios, embora não seja fácil estabelecer padrões ou normas em coisas tão subjectivas como o bom gosto, o humor ou o sentido do ridículo.

Não gosto de hipocrisia nem de abusos, embora reconheça que os limites sejam, como referi, difíceis de estabelecer. A brejeirice pode até ter elegância e finura, e, por vezes, será mesmo aceitável algum excesso, mas em circunstâncias que só no contexto próprio nós sentimos poder definir.

Chocam-me a falsa nota, a derrapagem, o cabelo na sopa, o arroto à mesa, o “coiso” entalado na virilha, por exemplo. Cá está, não fui capaz de escrever o que queria, por pudor, por acanhamento, não sei. Ainda tenho muito que treinar para adquiri a espontaneidade dos desinibidos. Mesmo assim, não fui desajeitado de todo porque coiso tem um arzinho maroto e insinuante enquanto “testículo” é vocábulo técnico e insípido. Foi o que consegui arranjar, pois não escreveria “colhão”, palavra feia que alguém pudico como eu jamais usaria nem ousaria…

Por outro lado, estas coisas têm muito de cultural, embora não pareça.

Por exemplo, os fleumáticos britânicos são conhecidos por serem o suprasumo dos cavalheiros e disso vos dou um exemplo verídico.

Há um bom par de anos encontrou-se o meu amigo V. na casa de banho, mais propriamente nos urinóis, do Hotel do Mar, no primeiro andamento do “allegro despejato”.

Ora, está cientificamente provado que é nessa fase de arranque para a expelição inicial que a 92,7% dos homens sai o esforço furado, ou seja, a desejada saída sofre um duplo revés. Mais concretamente, faz-se não pela frente mas pelas traseiras e não no estado líquido mas no gasoso, sob forma de ventosidade, em geral sonora (os investigadores são formais).

Foi o que sucedeu ao meu amigo V. que, na calamitosa e funesta circunstância, fez o que 99% dos homens fazem, ou seja, olhou em volta, na esperança (defraudada, claro) de que não houvesse testemunhas ou, se houvesse, que os eu descuido tivesse passado despercebido.

Já agora, para cultura geral, é bom saber que os que não olham em redor só não o fazem por estarem com um torcicolo. Impedidos dessa verificação, ficam ainda mais aflitos e repetem a dose…

Portanto, resumindo e abreviando, sem mais salamaleques, o meu amigo V. estava a mijar e, como já estão a adivinhar, deu um pum, um traque, um peido, pronto, seco, conciso, bem aviado.

Posto o que, ao executar o inevitável movimento de rotação da envergonhada cabecinha, o seu olhar se cruzou com o de um indubitável súbdito de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, que estava, por seu turno, no segundo andamento da sacudidela. O meu amigo V. ficou para morrer. Desesperada e inutilmente, ainda apertou as nádegas, mas era tarde, já lá ia, o mal estava feito. Pior que isso, a expressão sonora dispensava tradução, é linguagem (salvo seja) universal, onomatopeido, com todas as letras.

Corado até à raiz dos cabelos encrespados, o meu amigo V. encolheu o resto, porque uma desgraça nunca vem só, arrumou a ferramenta e preparou-se para ouvir um raspanete azedo do “gentleman”. Para sua grande surpresa, de súbito, o súbdito virou-se, com um sorriso prazenteiro e cúmplice, dizendo:

- "It’s the right place to do it!” – ou seja, (para quem não sabe paquistanês) “é o sítio indicado para fazer estas coisas».

Foi uma cena comovedora e não garanto que não se tenham cumprimentado (depois de terem lavado as mãos, claro) e que não tenham ensaiado uma desgarrada, afinados que estavam os instrumentos.

Quem me perdoem as almas mais sensíveis, irmãs da caridade, antigos professores, amigos do peito e sócios do Arrifanense, mas de poeta e de louco todos nós temos um pouco.

Porém, graças à inspiração das musas, céleres como o vento norte, logo traçamos as nossas capas românticas, saudamos com gesto vago de chapéu de abas largas, fazemos amorável reverência e retomamos a nossa pose digna e irrepreensível.

Sede condescendentes, somos simples seres humanos, com as nossas fraquezas e os nossos jardins secretos onde nem sempre cheira a rosas.

Depois, a vida continua, estamos no Outono, deixamo-nos levar pela sensibilidade, as folhas secas nos bosques habitados por faunos e duendes, em tardes pálidas perpassadas de melancolia, na brisa doce do entardecer…

Ah, esta nossa alma de poetas, só ternura e requebros meigos!

Somos assim, enquanto dormita o mafarrico que está em nós. E então…

Camilo, faz mais daquilo!!!

____________ 
* Publicado em O Sesimbrense de Outubro de 1996.   

1 comentário:

  1. Razão tinha eu, há uns dias, quando apelidei de "maroto" o autor desta saborosíssima crónica...
    MUITO me ri eu agora ao lê-la!
    Calculo que aconteceu o mesmo a Sesimbra inteira, em 1996.

    Não é nada comum conseguir a proeza de dizer ou escrever tudo isto, sem perder a elegância.
    Era assim o nosso Cagica.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    Ana

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