Lisboa dos sete calinas
António Cagica Rapaz
A noite caíra, sem qualquer empurrão suspeito, na grande área de Lisboa, com o Tejo a espreguiçar-se até Cascais, os carros no vaivém da Ponte e os sete calinas a prepararem-se para ir à vida. O mais novo acordara os outros e todos tomaram um banho sumário, havendo a registar que só um não utilizou o sabonete Lix. Seis de cada sete calinas usam Lix, o sabonete das estrelas da noite lisboeta.
Os calinas são primos dos califas e sete como os pecados capitais (normal, para quem vive e actua em Lisboa), sete como os dias da semana, as partidas do Mundo e os mercenários da coboiada.
O Ildefonso Refractário afivelou o cinto de crocodilo manhoso, ajustou a camisa às riscas (onde se destacava uma gravata de seda com flores) e vestiu o casaco aos quadrados, lenço vermelho na algibeira e inglema do Benfica na lapela. Antes de sair, deitou uma vista de olhos ao jornal que a vizinha Manuela enfiara por baixo da porta. É Verão, o defeso assentou arraiais, é tempo de ler anúncios.
O dedo indicador deteve-se num recanto onde aparecia uma inserção designada Lista Desclassificada que mostrava os complementos de guarda. Lá figuravam chuva, fatos, fios, fiscal, florestal, freio, jóias, livros, marinha, napos, redes e republicana. Sublinhou dois e virou a página…
Enquanto o Alfredo Candongueiro aparava a ponta dos bigodes e o Raul Canhoto cuspia na biqueira dos sapatos de verniz, o Ildefonso detinha-se num anúncio que rezava assim: “Empresário jugoslavo de férias no Algarve tem ainda disponíveis quatro elementos em excelente estado de conservação – VIGARICH, armador de jogo, MATOBICH, ponta de lança, ATAVIC, guarda-redes e KAXOTELICH, ponta esquerda. Enviar propostas a TIANIC – Loulé”.
Como o primo da cunhada do seu vizinho do quarto dianteiro é adjunto do assessor do treinador do Lisboa A7, o Afonso Maurício começou logo a calcular percentagens com uma máquina gamada num supermercado “Pão com azeitonas”.
Os calinas tinham por hábito descer a escada à hora da novela brasileira, quando o silêncio reina no prédio e as ruas ficam desertas. Mas nessa noite já o genérico estava no ar e o Ildefonso nada de dar ordem de saída. O Chico Apolo desligou o receptor e dirigia-se para a porta quando o Ildefonso o deteve, num gesto brusco. O grupo reuniu-se à volta dele para soletrar a seguinte oferta: “ AOS CLUBES APOSTADOS NA EUROPA – Não sou brasileiro, nem jugoslavo, mas português; não tenho joanetes, nem bicos de papagaio; não bebo, não fumo, não frequento lupanares, bares, cafés, pubs, drugstores, sociedades de recreio, filarmónicas, filantrópicas, casinos nem outros antros de perdição. Deito-me antes das 22 horas, não tenho bigode nem cabelo encaracolado à força, não exibo camisas berrantes, não acelero em carros espalhafatosos, não sustento mamonas e, como não bebo, é-me fácil dar o litro. Não me drogo e chuto com os dois pés. Sou dinheiro em caixa, se não como goleador, pelo menos como peça de museu. Respostas ao desapartado 10 A”.
O Diogo Bombeiro um dia largou uma andorinha na loja da Maria Antónia que a obrigou a perfumar a casa com alecrim. De outra vez, no Parque, levantou quatro filas. Às tantas, começou a queixar-se da barriga e já estava a causar pânico quando o Ildefonso deu um salto na cadeira. Tinha ali a melhor do ano. O Rafael Charuto arregalou o olho guloso e leu com crescente entusiasmo a oferta invulgar: “Tenho os dedos finos, longos e ágeis, as unhas arredondadas, cuidadas, envernizadas. Deliro com os contactos humanos, anseio pelo ambiente viril dos balneários onde evoluem na sua nudez máscula atletas de perfil grego; não receio os apertos nas bichas nem no metropolitano em horas de muita ponta; não refilo quando me beliscam e garanto que suportaria com donaire as cargas de avançados machões; tenho braços esbeltos e sólidos, nunca apanhei raios infravermelhos nem ondas curtas no rádio, apenas levei no cúbito; não uso brinco mas brinco com usos obsoletos e costumes aburguesados; adoro os direitos dos homens, gosto deles livres, directos, atrevidos, desinibidos e assumidos; quando me sinto numa boa, agarro com as duas mãos. Se acreditam que posso dar um bom guarda-redes, escrevam ao Zázá Doçura – Beco dos Requebros Meigos – Lisboa, boa, boa”.
O Ildefonso rapou da esferográfica e sublinhou repetidamente. Com outro gesto senhorial reuniu o grupo. Em silêncio trocaram beijos nas faces bem barbeadas, apertaram-se nos braços vigorosos e, um a um, saíram escada abaixo, rua fora, noite adentro. Começava a vida na estranha Lisboa dos sete calinas…
Preito ao bom malandro do Mário Zambujal…