A banhos
Após esta charla à borda d'água, e porque a dita está "à maneira", Boa Noite, Ó Mestre! vai a banhos e volta em Setembro.
sexta-feira, 15 de julho de 2011
AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 67
À maneira*
António Cagica Rapaz
Para dizer a verdade, eu andava há muito com intenção de escrever um apontamento sobre expressões que me chocam. Não se trata de pesquisa nem ensaio, apenas breve alusão, abordagem ligeira, um caso ou outro. Desta vez, resolvi avançar porque encontrei uma dessas expressões em prosa de pessoa que me habituou a mais elegância no estilo.
Já várias vezes mostrei cartão bem vermelho a expressões brasileiras que nada têm a ver connosco, que não são fato à nossa medida, mas agora não se trata disso.
Quem ouve com alguma atenção o que se diz na rua, nas rádios e na televisão, já reparou com toda a certeza no “perguntou a eles” e nos incontornáveis “é assim”. Se a primeira é um erro estrondoso, a segunda é uma expressão correcta que só me choca por ser utilizada a torto e a direito, para introduzir, para intercalar, até para interrogar, como já ouvi. E é precisamente este excesso despropositado que torna a expressão quase ridícula e cansativa.
O caso do “óptimo” é semelhante. Não é erro dizer que a água estava óptima. O que é triste é verificar que o vocabulário das pessoas vai ficando cada vem mais reduzido, mais pobre, porque se utiliza sempre e só “óptimo” em vez de saboroso, deslumbrante, melodioso, admirável, etc.
Se bem observarem, notarão que os políticos não conseguem construir duas frases sem dizer dez vezes “nesta matéria” e cinco vezes “situação”. Para já não falar no delicioso “atempadamente” e no excelente “pronto”…
Agora, uma que me caiu no goto foi “à maneira”. A intenção, ao que me parece, será exprimir um alto grau de qualidade ou de satisfação, certa forma de excelência. Mas a expressão apresenta-se incompleta e a sua estrutura fonética é algo manhosa.
“À maneira”, mas à maneira de quem, de onde ou de quê?
Seria correcto e faria sentido falar de uma caldeirada à maneira do Capitão Domingos. Mas dizer-se que as sardinhas estavam “à maneira”, é uma fórmula rasca, do calibre do “meu”, do “bué”, do “bazar” e do “curtir”.
Existem, é verdade, têm o seu lugar, mas esse lugar não será no quadro de honra da língua portuguesa. Não me parece que enriqueçam a nossa língua nem que façam a menor falta.
Esta é apenas a minha percepção das coisas, um bocado maldosa, admito, mas, de facto, “à maneira” soa-me mal, é pimba, lembra-me expressões como “de maneiras que”, “amaneirado” ou “maneirinho”.
Mas isto, repito, é apenas a minha opinião, sem qualquer pretensão elitista nem dogmática. Não me compete elaborar códigos de conduta linguística, não sou purista por vocação nem detenho o monopólio do bom gosto. Apenas há coisas de que gosto e outras que me desagradam. E , sobre elas, pronto, é assim, tenho o direito de me pronunciar, aproveitando o tema para uma charla à borda d’água. Água que, por sinal, está à maneira…
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* Publicado originalmente em O Sesimbrense.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
LÍBERO E DIRECTO, 17
Djalma vinha gentil
António Cagica Rapaz
Djalma vinha gentil como todos os brasileiros que nos chegam com o colorido do sotaque e a facilidade mágica no toque de bola.
Um dia aterrou em Portugal, acompanhado do fino José Morais, com destino a Guimarães, berço da nacionalidade e terra prometida para futebolistas brasileiros de qualidade. Nunca será de mais lembrar o trio maravilha formado por Carlos Alberto, Ernesto e Edmur que precedeu Caiçara, do pé direito estrondoso, e Lua, até chegarmos aos actuais Lúcio, Nivaldo e Jeová.
Pois o nosso Djalminha lá vestiu o calção preto e a camisola branca dos vimaranenses e cedo deu nas vistas pelo seu sentido de oportunidade e empenho posto na luta. Enquanto Zé Morais era um elegante executante, o Djalma era feio a jogar, mas de uma eficácia assinalável. A evidência de ambos despertou o apetite dos grandes, e o Zé Morais foi juntar-se ao João Morais, com a camisola às riscas horizontais do Sporting, enquanto o Djalma preferiu as riscas verticais do Porto onde trabalhou sob as ordens de Pedroto que, hoje em dia, está em vias de descobrir o caminho de Guimarães para a Europa. Caprichos do futebol…
Tive o Djalma primeiro como adversário e, depois, como companheiro, fugazmente, em Belém. Como adversário foi o mais sujo que encontrei, em pensamentos (imagino), palavras e obras. Nele, o insulto, a cuspidela (é eufemismo) e a cotovelada eram armas que utilizava com a mesma frequência e constância que o drible, a simulação ou o remate.
O recurso a toda a espécie de golpes baixos fazia parte da sua bagagem, do seu estilo, do seu temperamento. Usava-os como outros usam as meias caídas ou a camisola fora dos calções. Era um hábito, um vício, uma peça do seu todo de jogador. O único mérito que lhe reconheço é a coragem desassombrada de mal se portar tanto em casa como fora. Tinha ele a arte e a ratice de cometer as faltas na maré vazia, ou seja, quando a bola andava longe, monopolizando as atenções de árbitro e fiscais de linha. Ou então em lances de bola já perdida em que metia os pitões no defesa que aliviava a sua área.
Depois, havia por parte dos árbitros uma certa complacência que alimentava a lenda Djalma. Como toda a gente sabia que ele era duro e mau, não havia razão para espantos se cuspia ou agredia à socapa. Uma vez, nas Antas, pregou uma bofetada ao Durand, outro amor de criança. O árbitro, Aníbal de Oliveira, zangou-se, ralhou-lhe asperamente, com o dedo indicador em riste, mas o Djalma ficou em campo e continuou a fazer diabruras que levaram o amorável Durand a perder as estribeiras e a devolver a estalada ao remetente. Aí, o dedo indicador do Aníbal voltou a funcionar mas para apontar ao Durand o caminho das cabinas. Critérios…
Como muitos outros, o Djalma defendia a teoria de que dentro do campo vale tudo (até, às vezes, jogar lealmente) mas, cá fora, entre dois copos, somos todos bons rapazes e amigos.
Pela parte que me toca, nunca consegui converter-me a essa religião estranha, com metamorfoses duvidosas. Para mim, um patife lá dentro não pode ser um anjo cá fora. Mas cada um é como é, o juiz supremo não sou eu e não me movem preocupações maniqueístas. Se aqui o evoco é porque me lembrei dele, por acaso, ao correr o pano do palco das recordações onde o Djalma só podia representar o papel de mau da peça. Um mau transparente, não enganava, não escondia os seus instintos, não dissimulava as armas nem atacava pela calada da cobardia. Cuspia de frente, metia o pé, rijo e teso, descarado e sem rebuço. E (que eu saiba) nunca provocou qualquer lesão grave a adversários, enquanto que outros, de falinhas mansas e gestos discretos, foram partindo, regular e impunemente, a sua perna. Sua deles, adversários…
Infelizmente para ele, ficou como o exemplo do jogador indisciplinado, desregrado e imprevidente. O que ganhava de dia gastava à noite, em cabarés soturnos, nos tentáculos do vício. Por ironia do destino, Djalma, que foi o terror dos guarda-redes, acabou por cair entre as mãos dos guardas da prisão onde foi metido por lhe ter sido reconhecida culpa grave num acidente de viação de mortais consequências.
Djalma foi o anti-herói, o pirata da grande área, o emboscado das barreiras e das aglomerações nos pontapés de canto, o conspirador do contra-ataque, a cobra cuspideira da desmoralização do inimigo, o marujo americano do Cais do Sodré, o cliente ruidoso dos apartamentos da Reboleira, o aventureiro sem raízes.
Ficou como o exemplo a não seguir, a caricatura amarga do jogador da bola, do tipo acabado do homem sem réstia de ilusões, um suicida a prazo, um condenado voluntário, coveiro de uma carreira irregular. Para ele o jogo da vida só teve uma parte, e ele jogou-a como os jogadores que correm sem convicção, sabendo antecipadamente que a partida está perdida. E vão queimando o tempo com gestos escusados, irritantes, revoltantes.
Djalma, o triste exemplo, para meditação, do jogador com passado, mas sem futuro…
1981
segunda-feira, 11 de julho de 2011
NOVENTA E TAL CONTOS, 66
Pepita
António Cagica Rapaz
A minha mais remota recordação do Mário Martelo situa-o num recinto de cimento, com tabelas, junto ao velho balneário do Desportivo, nos primeiros anos da década de 50, onde os adultos jogavam voleibol e os miúdos se esfalfavam atrás de bolas de borracha saídas na farinha Amparo ou nos rebuçados das cadernetas.
Volvidos anos, habituei-me a vê-lo entre o Central e o Filipe, em fins de tarde, em noites de lota, junto do Chico Cagica e da Maria Eugénia.
O fim do dia era bonito na esplanada do Central, na suavidade do entardecer, com as senhoras arranjadas, refeitas da praia, o bronzeado a sobressair na alvura das blusas, toda uma atmosfera de elegância preguiçosa, sem pressas, a noite era uma promessa renovada em cada maré.
À discrição e certa timidez do Mário respondia a Pepita com desassombro, vitalidade fulgurante, temperamento de fogo e aura vibrante. A Pepita é a franqueza absoluta, sem rodeios, sem trejeitos nem pruridos, entusiasmo e omnipresença, um vulcão que o tempo não adormeceu. Deu o nome a uma traineira, encheu a baía, encheu Sesimbra, com a sua graça, a sua raça, a sua alegria luminosa, mulher de pirata que não receia o rugir dos canhões nem o fogo de Santelmo. A seu lado, do alto do torreão da Galé, o Mário contempla com enlevo a Pepita que volta do mar carregada de sardinha, festejada por mil gaivotas endiabradas, em voos circundantes, recortadas no céu azul de manhãs que só existem no vértice mais puro e sublime das nossas recordações. Ou das nossas ilusões...
As traineiras já não vêm ancorar junto da fortaleza, a lota esconde-se na doca. Ficou a nostalgia da festa dos archotes, do recorte difuso das barcas ali a duas braçadas da praia, do gelo do Chanoca, do burburinho da lota, do perfume das férias, da magia do Verão, do sortilégio da noite, com botas de água e saltos altos.
O Mário e a Pepita simbolizam uma época, um estilo de vida muito partilhada, muito convivida, na praia, na lota, na esplanada, na rua, sempre com calor, com amigos à volta, com certa exuberância saudável e colorida, porventura a alma espanhola a abanar a melancolia lusitana...
1997
sexta-feira, 8 de julho de 2011
AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 66
A nossa terra, a nossa gente*
António Cagica Rapaz
A França tem sido ao longo dos séculos berço de cultura em sentido lato, farol de artes e letras, correntes de pensamento, filosofia e reflexão.
A Revolução Francesa, os Direitos do Homem, a História passa pela França. Ora esta mesma França atravessa actualmente um problema de identidade, em grande parte resultante do figurino que a ideologia impôs ao País. Dir-me-á o meu primo Leopoldino, lá de trás do balcão da loja do Luís Borges, que lhe dá maior preocupação a descida do Belenenses à segunda divisão do que os problemas sociais em França. E assiste-lhe perfeitamente esse direito. Porém, as vagas da realidade internacional acabam por chegar à Fortaleza, mesmo se Portugal fica no fim da Europa e Sesimbra está protegida por pontões e muralhas de má morte.
Por norma, no nosso jornal, que é só para a malta da nossa rua, concentro as atenções na nossa terra, na nossa gente. Contudo, de vez em quando, não será mau alargar os horizontes, olhar para lá do mar da Pedra.
A França está a ser sacudida por tensões e escândalos que põem a nu um mal estar pronunciado. A França está doente, está a eructar, não por causa da maldita corvina, mas dos excessos de condimentos ideológicos que azedaram. E o mal vem, entre outras razões, do facto dos responsáveis políticos (de esquerdas e direitas, note-se) terem como preocupação não o bem estar geral, mas os seus interesses, privilégios e conveniências pessoais.
No poder ou na oposição, o tacho está garantido, a taluda sai sempre aos mesmos, ora agora governas tu, ora agora oponho eu.
Na minha opinião, meu caro Leopoldino, a França (e outros países) é governada por pessoas que não conhecem nem querem conhecer a realidade quotidiana, terra a terra. Só descem do alto da sua pirâmide de cristal em vésperas de eleições. Nessas alturas afivelam a máscara da simpatia, vão aos mercados, andam na rua, falam a este, cumprimentam aquele, sorriem ao outro, na caça ao voto. Depois nunca mais alguém os vê, adeus ó população…
Em 81 Miterrand foi eleito basicamente porque prometeu mudar a vida aos franceses. Que os choques petrolíferos eram invenção da direita para justificar a austeridade e desculpar uma má gestão. E, sobretudo, iria a acabar com o desemprego, criaria um milhão de postos de trabalho para os jovens.
Prometeu este mundo e o outro, sem pudor nem mesura.
Dez anos volvidos, um milhão, mais que isso, é o número de desempregados que a gestão socialista acrescentou aos que já existem. Os jovens revoltam-se, o desencanto é visível, o mal estar alastra, agravado pela ostentação da sociedade de consumo em que vivemos, com a exibição quase provocante de mil artigos aliciantes à mão de ceifar, mas longe do miserável poder de compra da maioria desses jovens.
A juventude dos arredores de Paris, na sua maioria de origem árabe, do norte d’África, tem vindo a atacar lojas e centros comerciais, incendiando carros, pilhando estabelecimentos. É a revolta através da violência, a explosão do descontentamento, perante a passividade de um poder que confunde tolerância com abandalhamento, que dá mais apreço aos delinquentes do que às vítimas.
É compreensível a desorientação, a angústia dos jovens sem trabalho e sem perspectivas de futuro, mas não é admissível, num país de livre expressão democrática, que o descontentamento se manifeste através de assaltos, de agressões que já causaram mortes, de violência bestial.
Há alguns anos, um homem de raça negra que vivia em Sesimbra, dizia na sua simplicidade «o respeitinho é muito bonito». É simples e bem verdade. Um pai não deixa de gostar do filho só porque é obrigado a dar-lhe uma palmada no rabo. A mão que castiga apropriadamente não deixa de ser generosa e amiga. É uma filosofia simples que a ideologia socialista não aceita. Um grupo de vândalos agrediu há dias uma senhora e o filho que é diminuído físico. A senhora morreu e os agressores estão à solta. A televisão ignorou totalmente o drama, mas se a vítima é um ladrão cai o Carmo e a Trindade. Sucedeu recentemente e até o Primeiro Ministro foi visitar a família da «vítima» que assaltara, roubara, incendiara…
Ninguém pode regozijar-se com a morte de um jovem, mas a autoridade não pode desaparecer. A repressão justa não impede a prevenção. Todos temos direitos, mas também temos deveres. O Mundo está doente, foi a guerra do Golfo, o drama dos kurdos, a Etiópia, o assassinato de Ghandi, é a fome, é a sida, é o caos. Amanhã virão os famintos de África e de Leste à procura de pão. A ideologia é uma droga, transfigura a realidade. Durante anos esconderam-nos o que se passava a Leste e a verdade está à vista.
O capitalismo é assustador quando só visa o lucro, provocando despedimentos dramáticos, quando incita à competição desalmada, deixando pelo caminho os menos aptos. Vive-se numa sociedade em que há cada vez mais exclusão.
Vai longe o tempo do empregozinho garantido, da tranquilidade. Hoje é a angústia do dia de amanhã, a degradação da qualidade de vida, em toda a parte, em Sesimbra também. Por isso, meu caro Leopoldino, prefiro evocar tempos recuados, com certa nostalgia, alguma pieguice, uma pontinha de lirismo, um raminho de melancolia ou um toque de malandrice, conforme as circunstâncias. Bem basta o que basta…
Claro, não é com raminhos de salsa que vamos endireitar o Mundo. Precisamos de gente honesta, só isso e não é fácil. Se houvesse verdade e honestidade, não haveria Oposição mas Aposição, todos juntos a trabalhar para o bem comum. Mas Homens dessa dimensão perturbam, incomodam, estragam os arranjinhos. São afastados, perseguidos e, às vezes, acontece-lhes um azar, um acidente de avião, por exemplo…
Desculpa se hoje andei noutros mares. Na próxima, voltarei ao reminho pela borda d’água até encalhar de gargalhete na praia da Califórnia.
O Mundo está doente, valha-nos a nossa terra, a nossa gente…
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* Publicado em O Sesimbrense de Junho de 1991.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
LÍBERO E DIRECTO, 16
Calcanhar daqueles
António Cagica Rapaz
Toda a gente sabe que se o nariz de Cleópatra tivesse sido diferente, a História teria sido escrita de outra forma.
A memória colectiva dos povos tem os seus símbolos, as suas referências, como são a arca de Noé, os trabalhos de Hércules, o cavalo de Tróia, a caverna de Platão, a banheira de Arquimedes. Ou o calcanhar de Aquiles.
Os heróis modernos também têm os seus sinais distintivos, os seus pontos fortes e fracos, a boca de Brigitte Bardot, os olhos de Elizabeth Taylor ou a mão do Maradona.
E temos agora o calcanhar de Madjer que lançou o Porto para a vitória na Taça dos Campeões Europeus.
O realismo mostra que os golos é que garantem os triunfos, e o importante é levar a bolinha a ultrapassar completamente a linha de baliza. Para tanto, podem os jogadores utilizar todas as partes do corpo, à excepção dos braços e das mãos, não sendo sequer proibido o recurso ao pé (mesmo chato) e à cabeça.
No pé, podemos identificar cinco ângulos de disparo. Primeiro, temos o bico, geralmente utilizado para a vulgar biqueirada, gesto pouco ortodoxo, próprio de rematador barato que chuta para onde está virado. Se no râguebi a biqueirada é atitude estudada e milimetricamente calculada, no futebol é, em geral, sinónimo de nabice e aselhice. A vantagem que oferece é a de surpreender toda a gente, a começar pelo próprio chutador e a acabar no guarda-redes. Porém, nem sempre a biqueirada é cega. Por vezes, assistimos a bicos inteligentes, como um que o genial Susic nos ofereceu, recentemente, no Parque dos Príncipes, frente ao Marselha. Foi um toque subtil, com o bico, sim, mas cheio de intenção e classe…
A seguir, temos a parte de dentro do pé, a concha, que é a mais utilizada para controlar a bola, para a afagar e para executar o passe curto, pela certa.
O peito do pé serve para o passe comprido, o despacho vigoroso e o remate forte mas nem sempre feio.
O exterior do pé é todo ele um poema, marca de talento, assinatura dos predestinados, toque de classe, efeito garantido, gesto inscrito na passada, sem quebra de ritmo, sempre em progressão, com elipses envolventes e certa displicência.
O grande mestre, o executor de obras raras, de lances sublimes, era Franz Beckenbauer, o até hoje insuperado Kaiser.
Tive a felicidade de ter jogado ao lado de um segundo Beckenbauer que se chama Rui Rodrigues, maravilhoso jogador a quem faltou apenas ambição para atingir alta craveira internacional. O Rui era um mago do futebol, dois pés perfeitos, todo ele suavidade, leveza, arte pura no toque da bola, desarme subtil, passe infalível, curto e à distância (exterior do pé), uma elegância rara, um principezinho do futebol. Não há hoje (retirado que está Beckenbauer) um libero que chegue aos calcanhares de Rui Rodrigues. E por falar em calcanhar…
O quinto ângulo de disparo é o menos usado e o mais ousado, delicado, sensível, colocado na retaguarda do pé, sem ângulo de visão. O toque de calcanhar é o golpe a só tentar pela certa, sem arriscar, porque se quando resulta é bonito, aplaudido e sublimado, ao contrário, quando falha provoca risada e recriminações.
Por isso, a responsabilidade de Madjer era enorme naquele lance memorável. Se hoje o cobrem de flores e elogios, imagine-se o que seria se a bola sai ao lado e o Porto perde a final!
É assim o futebol, obriga a reflexos apurados, a reacções instintivas, a pensamentos ágeis. O calcanhar de Madjer foi a rampa de lançamento do Porto no espaço sideral das constelações refulgentes do futebol, num lance de genial audácia que resgatou uma época, que colocou o Porto nos cornos da lua, nos píncaros da fama.
Mas seria injusto esquecer a equipa, pois foi o triunfo do colectivo, sendo de sublinhar a acção de Artur Jorge que pôs em campo um esquema perfeito, lançando os seus golpes na altura apropriada. Mérito seu igualmente a força moral que animou a equipa, ambição consciente, vontade de ir mais além.
O calcanhar de Madjer fica na história porque deu golo, porque foi a viragem do jogo, porque foi o princípio do triunfo, mas sobretudo porque foi um gesto insólito, teve o cunho do artista rebelde, do poeta incompreendido, do matador arrojado.
Foi uma aposta tremenda, o pescoço no cepo, dobrado contra singelo, tudo por tudo, atrevimento inaudito. Jogou e ganhou, para bem de todos nós, parabéns Madjer.
Paradoxalmente (como nos filmes que acabam mal) o treinador vai sair do Porto e o herói argelino quer deixar as Antas. Mas talvez Madjer tenha razão, pois sairia coberto de glória, dificilmente podendo repetir façanha equivalente. De qualquer modo, seria pena o Porto perder um calcanhar daqueles…
1987
segunda-feira, 4 de julho de 2011
NOVENTA E TAL CONTOS, 65
É melhor assim
António Cagica Rapaz
- Vai um churro?
Era ao princípio da noite, na meia lua da rampa, junto ao velho Espadarte. Ela aproximou-se, sorridente e maliciosa. Teria talvez uns quarenta anos, belo pedaço de mulher. Ele olhou-a, entre surpreendido e desconfiado.
- Um churro?
- Sim, um churro, já não te lembras? Foi assim que meteste conversa comigo, há uns vinte anos, numa noite de Verão.
Ele tinha boa memória e, enquanto ouvia, ia vasculhando todas as gavetas das suas recordações. Em vão. Não se lembrava da cara nem da voz. Menos ainda do nome, claro. Mas não se desmanchou.
- Meu Deus, como o tempo passa. Ainda parece que foi ontem...
Tinha horror às banalidades, às frases feitas, mas não conseguiu arranjar melhor do que aqueles desajeitados lugares comuns. Sentia-se embaraçado, mas precisava de ganhar tempo, pesquisar com subtileza.
- Olha, se o tempo passa, em ti não deixou marcas, estás na mesma.
Agora era ela a cair na trivialidade. Ninguém está na mesma vinte anos depois. Mas enfim, vamos ver o que sai daqui...
- Ora, de noite todos os gatos são pardos.
Outra banalidade. Decididamente não se sentia em forma, era como um aluno chamado a uma lição que não preparou.
- Não me fales da noite, do sortilégio, do fascínio, das mil aventuras que ela traz consigo. A noite que correm em busca da madrugada.
- É bonito, continua.
- Então, dá-me uma deixa...
- O dia nasce quando morre a madrugada...
- E o mar chama por ele todas as manhãs.
- Como é que sabes?
- Ora essa, eu assino “O Sesimbrense”. É uma maneira de continuar a ouvir o mar, de sentir o perfume da maresia, de prolongar o sonho.
- Devias escrever, dizes coisas muito bonitas.
Nada, não tinha a menor recordação. Mas precisava de ir alimentando o diálogo, não dar o flanco, procurar indícios, cábulas para resolver o enigma daquela desconhecida que continuava a sorrir, divertida, segura de si, com um pontinha de perfídia no olhar.
- Foi uma pena, é verdade, mas a vida nem sempre corre como nós queremos.
- Sofri muito quando deixaste de me escrever.
Ainda por cima chegara a escrever-lhe! O nevoeiro permanecia espesso, nem sombra de ideia, o vazio absoluto.
- Éramos muito novos, Lisboa era longe, naquele tempo, mais valia não alimentar esperanças.
De novo os lugares comuns, as frases de circunstância. Que inépcia, que falta de jeito e de inspiração, era desolador, sentia-se cada vez menos à vontade.
- Eu percebi. De facto, não voltámos a fazer férias em Sesimbra, passámos a ir para o Algarve. Mas nunca te esqueci, aqueles dias foram maravilhosos. Na primeira noite, depois de comermos um cartuxo de churros, passeámos ao longo da marginal e tu propuseste que fôssemos dançar. Fomos...
- Ao “Forno”.
- Ena, não te esqueceste, lindo menino!
Pudera, esta não podia falhar. O “Forno” era passagem obrigatória nos caminhos da noite. Marcara um ponto, aparentemente, mas não avançara um milímetro na identificação da bela desconhecida.
- Era bem agradável, o “Forno”.
- Lembro-me que o dono era teu amigo...
- Sim, o Vítor Marques, é verdade, um tipo muito interessante.
- E acabámos a noite, sabes onde?
- No “Pinto & Pinto”.
- Isso é que é memória!
Mentira, foi uma carta jogada pela certa. O “Forno” e o “Pinto & Pinto” faziam parte do percurso do combatente, do itinerário marialva das noites daquele tempo.
- Já mudou de dono, está muito diferente, como a própria Sesimbra.
Sentia-se melhor agora, mais confiante, depois de marcar dois pontos. Mas a névoa persistia...
- Ainda é vivo aquele homenzinho do boné?
- O Charuto? É vivo e não envelhece, é um filho da noite, está bem conservado. Mas, diz-me lá, como foi a tua vida? Casaste, imagino...
- Casei, tenho dois filhos e agora estou divorciada. Coisas que acontecem...
- Todos podemos enganar-nos, só sai a quem joga. Mas está com belíssimo aspecto.
- É muita gentileza tua...
- Olha, a propósito de gentileza, não leves a mal, mas tenho de confessar uma coisa. Não fiques magoada nem ofendida, mas, na realidade, eu não... enfim, não...
- Não sabes quem eu sou, pois não?
- Já tinhas percebido?
- Não é bem isso. Agora sou eu que te peço que não te zangues. Na verdade, desde o início eu sabia que não poderias lembrar-te de mim. Pela simples razão de nunca me teres visto.
- Confesso que não percebo.
- É simples. Uma prima minha veio passar férias a Sesimbra e conheceu-te. Teve uma paixoneta e contou-me vezes sem conta o vosso romance que durou pouco mas que a marcou muito. Mais tarde casou, mas continuou a assinar “O Sesimbrense” porque se sentia ligada a esta bela terra. Por curiosidade, comecei por ler e acabei por me tornar também assinante. Por isso, conheço certos trechos de cor. Depois, combinámos pregar-te esta partida inocente, vingançazinha suave. Ouvi-a com atenção, decorei o meu papel, preparei-me, localizei-te e o resto já tu sabes.
- Bem jogado, sim senhora. Já agora, como se chama a tua prima?
- Ah, isso não estou autorizada a revelar, deixemos as coisas como estão. O “Forno”, o “Pinto & Pinto”, o Verão, os sonhos, tudo isso foi muito bonito, foi vosso, mas acabou, é um romance que ficou por escrever.
- Eu sei, mas... e tu... e nós...?
- Não, meu lindo, não vim à procura de aventuras. Na nossa vida há marés, há um tempo para cada coisa. O que não aconteceu, o que ficou por viver é irrecuperável, o passado pertence ao mar. Acredita, é melhor assim...
1998
sexta-feira, 1 de julho de 2011
AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 65
Ilusões*
António Cagica Rapaz
Vem de longe, da fundura dos tempos, a ideia de que tudo é ilusório, de que mais não conhecemos que a aparência das coisas, como no mito da caverna de Platão.
Olhando à nossa volta, sem precisarmos de grande reflexão, nem pesquisa, verificamos que reina a falsidade, a hipocrisia e a mentira, na religião, na política, no desporto, no trabalho, nas famílias.
A maioria das pessoas admite ser crente, mas poucos são praticantes. E o que fazem, no seu dia a dia, pouco ou nada tem a ver com a doutrina que dizem professar.
O desporto é constantemente envergonhado por notícias sobre corrupção e doping, manobras e manipulações que os milhões explicam. Iludidos e patetas continuamos a fingir (sabe-se lá porquê) que acreditamos no amor à camisola, na imparcialidade dos árbitros, na honestidade dos dirigentes, na isenção dos comentadores, etc.
A democracia, sendo embora o mal menor, é outra farsa. O povo pensa que é quem mais ordena, apenas porque vota. Só que os políticos, depois das eleições, fazem o que bem entendem, o que lhes convém, esquecendo as promessas feitas. Na véspera de novas eleições recomeça a mascarada, com os partidos a impingirem-nos os candidatos em quem temos de votar, com mais promessas, apertos de mão flácidos e falsos, tacho a quanto obrigas.
Isto, à escala interna, para já não falar no que vai pelo mundo, nas guerras humanitárias, nos ataques cirúrgicos e nos danos colaterais com cujo fumo nos toldam a visão.
Nas famílias vive-se sem se conseguir falar abertamente sobre as coisas, porque é difícil e porque não convém. Importa manter a aparência da união e fraternidade, disfarçando desavenças, ocultando raivas, engolindo patifarias.
As empresas, em nome da competitividade, da produtividade e da globalização, utilizam eufemismos como “reestruturação” ou “plano social” para despedirem à vontade, reduzindo os efectivos e multiplicando os lucros, indiferentes aos milhões de excluídos, marginais, sem abrigo, sem perspectivas, sem ilusões.
Como se tanta mentira, tanto engano e tanta mistificação não bastassem, a tecnologia ainda achou necessário criar a chamada realidade virtual…
Entretanto, neste universo de progresso interactivo imparável, sustentado e estruturante, continuamos a cuspir para o chão, a atirar maços de cigarros pela janela do carro, a deitar lixo no chão ao lado de contentores que não fechamos, a armazenar fogões, sofás e carros velhos à porta de casa, a poluir mares, rios, lagos, o ar, e a morrer alarvemente nas estradas.
A autoridade criou uma imagem de ausência, de ineficácia ou, então, de acção vergonhosa de caça à multa, longe da ideia que nos vendem os políticos de prevenção e presença protectora.
É este o mundo em que vivemos e, infelizmente, nem é caricatura.
No seu último filme (Instinto), Anthony Hopkins desempenha o papel de um antropólogo que encontrou o seu lugar, a paz que buscava na selva, junto dos gorilas que o aceitaram como ser humano, não como um deles. O psiquiatra que foi chamado a “tratá-lo”, acabou por se tornar seu aluno, por o admirar e amar. E por confessar que, nesse contacto, nessa experiência, perdeu algo de essencial: as suas ilusões. Sobre a vida, sobre os valores desta sociedade em que vivemos. Naturalmente…
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*Publicado em O Sesimbrense de 31 de Agosto de 1999.
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